Marcelo Casal/Agencia Brasil

🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Março de 2021. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Por que não se pode dizer que tratamento precoce contra Covid-19 funciona

Por Priscila Pacheco e Luiz Fernando Menezes

23 de março de 2021, 19h16

Não acredite em correntes de WhatsApp e postagens nas redes sociais que defendem os chamados “tratamento precoce” ou “preventivo” como combate à Covid-19: eles não existem. Apesar de municípios distribuírem hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e vitamina D, entre outras substâncias, com a promessa de evitar o agravamento da pandemia, nenhum estudo científico sólido comprovou que tais drogas curam ou previnem a infecção.

Para que um remédio seja considerado eficaz contra uma doença, ele precisa passar por pesquisas com rigor metodológico e que podem atestar seus reais benefícios e riscos. Até o momento, nenhum dos remédios usados indiscriminadamente contra a Covid-19 que foi submetido a esse nível de escrutínio foi aprovado por cientistas para evitar ou tratar casos leves da doença.

Mas, se o tratamento precoce não funciona, como explicar casos de pessoas que tomaram determinados remédios e se recuperaram da infecção? E as histórias de cidades que zeraram dados de mortes e internações após adotarem os medicamentos como protocolo? O Aos Fatos responde essas e outras perguntas abaixo:

  1. Hidroxicloroquina e azitromicina funcionam contra a Covid-19?
  2. A ivermectina é eficaz contra a infecção?
  3. E os outros remédios e vitaminas que são usados como "tratamento precoce"?
  4. Quais os riscos do tratamento precoce?
  5. Quando é possível dizer que um remédio é eficaz contra uma doença?
  6. Por que a experiência de uma pessoa ou cidade não serve como prova de eficácia?
  7. Algum medicamento já demonstrou resultado positivo contra a Covid-19?

1. Hidroxicloroquina e azitromicina funcionam contra a Covid-19?

Não. A hidroxicloroquina, indicada para lúpus e malária, não funciona para prevenir a Covid-19 ou tratá-la em diferentes fases, seja sozinha ou combinada ao antibiótico azitromicina. Diversos experimentos já mostraram a sua falta de eficácia. A OMS (Organização Mundial da Saúde) e a Cochrane, entidade especializada em revisões de estudos, publicaram inclusive análises sobre os resultados dessas pesquisas.

A azitromicina também não apresentou resultados positivos em experimentos com humanos. Por ser um antibiótico, o medicamento pode ser usado para tratar vítimas de Covid-19 que tenham desenvolvido pneumonia bacteriana.

2. A ivermectina é eficaz contra a infecção?

Os estudos sobre a eficácia do vermífugo ivermectina no tratamento da Covid-19 ainda são iniciais e, por isso, ainda não é possível dizer que o medicamento é eficaz contra a infecção. A Merck, criadora da droga, alerta que ainda não existem evidências para permitir a indicação do antiparasitário no combate à doença.

A falta de evidências conclusivas não significa, no entanto, que você pode se tratar com o remédio por conta própria ou tomá-lo de forma preventiva. Entidades médicas como a FDA (Foods and Drugs Administration, órgão americano semelhante à Anvisa), a Agência Europeia de Medicamentos e a Sociedade Brasileira de Infectologia não recomendam sua administração regular porque grandes doses tornam a ivermectina tóxica para os seres humanos.

Reportagem publicada pelo Estadão reportou, por exemplo, casos de pessoas que tiveram hepatite medicamentosa após tomarem ivermectina e que agora estão na fila de um transplante de fígado.

3. E os outros remédios e vitaminas que são usados como "tratamento precoce"?

Alguns médicos receitam vitamina C, vitamina D, zinco, nitazoxanida e o anti-inflamatório colchicina com a falsa promessa de que evitam ou curam a Covid-19. Assim como acontece com a ivermectina, algumas dessas substâncias estão sendo estudadas como terapias potenciais contra a infecção. No entanto, nenhum deles é comprovadamente eficaz contra a Covid-19 e seu uso indiscriminado pode causar danos à saúde.

4. Quais os riscos do tratamento precoce?

As bulas dos remédios que são adotados como tratamento precoce apontam quais são os efeitos colaterais causados pelas substâncias. A da hidroxicloroquina, por exemplo, recomenda cautela com pacientes com doenças hepáticas ou renais e com problemas cardíacos, gastrointestinais e neurológicos. A ivermectina, por sua vez, não deve ser usada por crianças menores de cinco anos ou com menos de 15 kg ou ainda por gestantes.

Esses efeitos, no entanto, foram reportados nos estudos que aprovaram os medicamentos para o uso que está recomendado em sua bula. Ou seja, em uma determinada dosagem. Tomar esses remédios de forma exagerada ou para finalidades não previstas na bula pode agravar essas reações adversas.

Em São Paulo, por exemplo, cinco pacientes que tinham tomado medicamentos sem comprovação contra a Covid-19, como a ivermectina, foram para a fila de transplante de fígado. Os seus exames mostram que o problema no órgão foi causado por reação medicamentosa.

Além de causar danos à saúde, o consumo indiscriminado de antibióticos — caso da azitromicina — também pode estimular o aparecimento de superbactérias resistentes aos medicamentos, o que dificultaria o tratamento de doenças no futuro.

5. Quando é possível dizer que um remédio é eficaz contra uma doença?

A eficácia de uma substância, seja um remédio ou uma vacina, só pode ser validada por meio de estudos conhecidos como “padrão ouro”, que seguem métodos científicos rígidos, como:

Grupo de controle: pesquisadores recrutam voluntários que são divididos em grupos. Uma parte recebe a droga estudada e a outra toma uma substância sem efeito. Essa divisão em grupos permite descartar o chamado efeito placebo, quando um paciente apresenta uma melhora que não tem relação com uma substância, mas com um efeito psicológico de achar que ele está tomando um medicamento eficaz, por exemplo.

Randomização: voluntários com características similares, como faixa etária, são incluídos nos grupos de forma aleatória — sem escolha do pesquisador —, para evitar influências de outros fatores que não seja o objeto de teste nos resultados. Isso elimina o risco de, por exemplo, o pesquisador selecionar pessoas mais saudáveis para facilitar a aprovação de um medicamento.

Duplo-cego: os pesquisadores e os voluntários não sabem quem recebeu a substância pesquisada ou o placebo (sem efeito). Desta forma, são evitados vieses nos resultados como, por exemplo, que cientistas tratem com mais cuidado pacientes que receberam o medicamento para influenciar no resultado do estudo.

Publicação: uma vez concluído, o estudo é publicado de forma preliminar, o chamado “preprint”, para ser revisado por pesquisadores independentes. Nessa fase, algumas inconsistências nos dados podem ser corrigidas. Somente após a avaliação feita por pares é que o medicamento ou vacina pode ser usado pela população fora do ambiente de pesquisa.

6. Por que a experiência de uma pessoa ou cidade não serve como prova de eficácia?

O potencial de um medicamento no tratamento ou prevenção de uma doença não pode ser medido com impressões pessoais ou especulações. Há relatos de pacientes que supostamente se curaram após tomar hidroxicloroquina e de pessoas que tomaram a droga e morreram. Portanto, para determinar se ela funciona ou não é necessário fazer pesquisas controladas como explicado acima.

Além disso, esse tipo de experimento pessoal não leva em conta todas as outras características dos pacientes: idade, presença ou não de comorbidades, gravidade da infecção, ou se ele está tomando outros medicamentos, por exemplo. Sem essas informações, não é possível saber se o remédio influenciou ou não a recuperação.

Por esses mesmos motivos, o fato de uma cidade ter identificado a redução do número de internações e óbitos por Covid-19 após a adoção de "tratamentos precoces" não prova que uma coisa tenha relação com a outra. Para estabelecer essa relação são necessários dados sólidos sobre a distribuição e o consumo do remédio. É preciso saber, por exemplo, quantas pessoas entre as que tomaram ou não a droga tiveram agravamento da doença. Em geral, os municípios sequer fazem esse tipo de acompanhamento.

As características das cidades também mudam a forma de disseminação do vírus, como a quantidade de idosos, de pessoas com comorbidades, a densidade populacional, o uso de transporte público, entre outras. Municípios com a maioria da população em área rural, por exemplo, já têm uma população que vive mais isolada do que os que contam com população mais concentrada em área urbana.

Além disso, há municípios que anunciaram o uso de medicamentos para "tratamento precoce” e que registraram agravamento da pandemia mesmo assim. Itajaí (SC), por exemplo, distribuiu ivermectina para a população, mas apresenta uma das maiores taxas de mortalidade entre as cidades de Santa Catarina com mais de 100 mil habitantes. Uberlândia (MG) distribuiu cloroquina mas continuou com o número de mortes por Covid-19 em crescimento.

7. Algum medicamento já demonstrou resultado positivo contra a Covid-19?

Até o momento, apenas as vacinas desenvolvidas contra a infecção e aprovadas após uma série de testes em humanos são capazes de impedir a Covid-19.

Como dito anteriormente, a ciência não identificou nenhum remédio que possa evitar ou tratar precocemente a Covid-19. Foram descobertos apenas medicamentos que podem tratar complicações específicas da Covid-19 em pacientes já internados, mas não curar a doença.

O corticoide dexametasona, por exemplo, reduziu a mortalidade de pacientes com casos graves e críticos e que necessitam de ventilação mecânica. O remdesivir, por sua vez, diminuiu o tempo de recuperação de adultos hospitalizados e foi aprovado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para ser usado nestes casos no Brasil. Nenhum desses dois remédios, no entanto, evita a Covid-19 ou a internação por conta da doença e, por isso, não podem ser usados de forma preventiva.

Uma boa maneira de conferir as últimas atualizações sobre as terapias que são estudadas contra a infecção é acompanhar o guia da OMS e o portal de evidências da Universidade de Oxford.

Referências:

1. Aos Fatos (Fontes 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8)
2. The BMJ
3. Cochrane
4. The Lancet
5. OMS (Fontes 1, 2 e 3)
6. FDA
7. Sociedade Brasileira de Infectologia
8. CEBM (Fontes 1 e 2)
9. OPAS
10. NEJM
11. Prefeitura de Itajaí
12. NSC
13. Folha de S. Paulo
14. Estadão (Fontes 1 e 2)
15. El País Brasil
16. UOL
17. Revista Piauí


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