Fraude vacinal às claras expõe descontrole na política de moderação do Telegram

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Aviso: este texto é uma análise e foi publicado originalmente na newsletter O Digital Disfuncional.

Quando a AGU (Advocacia-Geral da União) anunciou nesta quinta-feira (5) ter acionado o Telegram na Justiça para que banisse canais e grupos que ofertam certificados falsos de vacinação, chamou minha atenção a facilidade com que esse tipo de crime vem sendo praticado nos últimos meses. Pela maneira descrita pelos advogados na representação, não havia qualquer tentativa de ocultar do usuário comum que ali se organizava, sem pudor, uma rede que vendia charlatanismo no atacado para faturar com a ignorância alheia no varejo.

Foi uma reportagem do Aos Fatos publicada em 25 de setembro que revelou o esquema denunciado pelo governo. Por meio do Telegram, criminosos vendiam cartões de vacinação fraudados a partir dos registros oficiais do SUS (Sistema Único de Saúde). Com acesso à base de dados de imunização do Ministério da Saúde, alteravam o cadastro do governo para fazer constar como aplicadas vacinas que nunca foram tomadas.

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Ocorre que, à diferença do que o senso comum nos faz acreditar, os golpistas dos passaportes vacinais eram figurinhas repetidas na plataforma e agiam às claras:

  • Operavam com nomes facilmente identificáveis na ferramenta de pesquisa do Telegram, atendendo por “Venda comprovante de vacinação”, “PASSAPORTE VACINAL COMPLETO COM TODAS AS DOSES”, “Cartões e certificados de vacinas do SUS” ou até, pura e simplesmente, “@vacina”;
  • Havia sobreposição de pautas antivacina e temas comumente associados ao extremismo de direita sem qualquer cerimônia. E não estamos falando apenas de grupos como “@derrubandodemocracia”, de orientação golpista antidemocrática, mas organizações antissemitas ou abertamente nazistas, como “@derrubandoaspedrasguiasdageorgia”, “@hitlervive” e “@obrasdeartedeadolfhitler”.

captura de mensagens supremacistas em grupos de Telegram
Às claras. Grupos no Telegram com conteúdos antivacina e venda de certificados de imunização falsos também disseminam pautas supremacistas

É incontestável a falência da política de moderação do Telegram*, em cujas dependências Aos Fatos já mostrou inúmeras vezes que grassam conteúdos de incitação à violência e a golpe de Estado. Suspensa pelo Judiciário duas vezes entre 2022 e 2023 sem reagir a determinações de remoção de conteúdo golpista e neonazista, a plataforma empenhou-se recentemente em se evadir de pressões regulatórias. (*Nota de transparência: a empresa Telegram mantém uma parceria comercial com Aos Fatos em um projeto de combate à desinformação.)

De acordo com a ação da AGU, “os ilícitos praticados por meio do Telegram frequentemente deixam de receber a adequada atenção daquela empresa, que, salvo exceções pontuais (relacionadas à prática de terrorismo ou à violação de direitos autorais), aparentemente tolera toda sorte de uso para o serviço por ela disponibilizado, a pretexto de proteção à liberdade de expressão”.

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O que acontece ali, no entanto, é também a repetição do que se viu, nos últimos anos, em outras plataformas com regras frouxas e delírios elásticos de liberdade de expressão. Em seu auge, grupos que promoviam teorias conspiratórias QAnon, que pregam a existência de uma rede de “satanistas pedófilos” integrada por políticos, personalidades e organizações de inserção mundial, se aproveitaram da paranoia trumpista para vender charlatanismo científico no nicho antivacina.

Coletivos desse tipo tiveram seu auge durante a pandemia, foram depois banidos do Facebook, radicalizaram-se em redes de nicho, invadiram o Capitólio em 6 de janeiro de 2021, foram novamente retaliados pelas plataformas e, agora, como qualquer outro movimento alimentado por desinformação em ambientes menos regulados, volta repaginado com novas nomenclaturas para continuar a defender velhas ideias.

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Basta ver que alguns dos grupos que há pouco vendiam certificados falsos de vacina no Telegram já haviam sido banidos durante as eleições de 2022 e defendiam pautas supremacistas. Conforme aponta a AGU, o bloqueio de um canal pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) não impediu que seus administradores continuassem espalhando desinformação e conteúdo criminoso — a ação, inclusive, estimulou sua fragmentação em comunidades temáticas, com nomenclaturas mais ou menos claras sobre a intenção de cada um dos grupos. O canal “@derrubandodemocracia” passou a ter filhotes como “@derrubandoaspedrasguiasdageorgia”, “@terraplanaderrubando”, “@derrubandoclones”, “@derrubandohibridos”, “@acessoatodososcanaisderrubando” e até, veja bem, “@anunciantesdoscanaisderrubando”.

Captura de mensagens mostram canal de Telegram burlando moderação
Ouroboros. Grupo banido pelo TSE rearranja estratégia de retorno ao Telegram para continuar disseminando desinformação.

“Isto demonstra que a suspensão de um único grupo/canal não é suficiente à cessação do ilícito, sendo necessário agir em face da rede como um todo para desestruturar a teia desinformacional. Apenas assim é possível inabilitar que a rede continue sendo usada para a causação de prejuízos à política de imunização vacinal conduzida pela União, bem assim que os correspondentes crimes de inserção de dados falsos em sistema de informações (art. 313-A do Código Penal), charlatanismo e curandeirismo (art. 283 e art. 284) continuem sendo praticados por meio daqueles grupos/canais que a integram”, afirma a AGU.

Se é claro para especialistas e governos o caráter cíclico das campanhas de desinformação, e que atores mal intencionados em geral recorrem a estratégias mais ou menos sofisticadas para evitarem ser pegos no pulo, causa espécie que esses grupelhos voltem à carga abertamente e de modo tão literal. É a prova de como os donos do ambiente digital, às vésperas de um ano importante para democracias em todo o mundo, confundem deliberadamente liberdade com descontrole. Vivemos um ecossistema tão ou mais degragadado do que quando uma certa consultoria britânica teve uma ideia, quase uma década atrás.

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