Agência Brasil

🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Maio de 2023. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Telegram distorce pontos do ‘PL das Fake News’ em nota crítica ao projeto

Por Amanda Ribeiro, Ethel Rudnitzki, Gisele Lobato e Luiz Fernando Menezes

9 de maio de 2023, 20h43

Em nota encaminhada a todos os usuários brasileiros nesta terça-feira (9), o Telegram usou uma série de argumentos com base em interpretações distorcidas para criticar o PL 2.630/2020, conhecido como “PL das Fake News”. Na mensagem, a empresa afirma que a aprovação do projeto é um perigo para a democracia e que ele “matará a internet moderna”.

O Aos Fatos analisou os argumentos centrais da nota encaminhada pelo Telegram e também encontrou inconsistências e distorções, que dividimos em quatro tópicos:

  1. O ‘PL das Fake News’ está sendo discutido desde 2020
  2. O PL não concede poderes de censura ao governo
  3. O PL só prevê suspensão temporária em casos graves, e o Judiciário poderá intervir
  4. O PL não determina que empresas assumam o papel do Judiciário

A iniciativa da empresa foi criticada por ministros e parlamentares da base do governo

  • A Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor), órgão do Ministério da Justiça que na semana passada questionou posicionamentos semelhantes de Google e Meta, enviou uma notificação;
  • O MPF (Ministério Público Federal) de São Paulo também cobrou explicações;
  • Google e Meta divulgaram notas em que negam endossar o texto do Telegram;
  • “Somos citados sem qualquer autorização e não reconhecemos seu conteúdo”, disse o Google;
  • “A Meta refuta o uso de seu nome pelo Telegram na referida mensagem, e nega as alegações no texto”, afirmou a controladora de Facebook, Instagram e WhatsApp;
  • A votação do projeto estava prevista para ocorrer na terça-feira passada, mas o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), retirou o texto da pauta e não há previsão de nova data.
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1. O ‘PL das Fake News’ está sendo discutido desde 2020

A nota enviada pelo Telegram diz que o projeto teria incluído artigos sem que houvesse um debate sobre eles. Por mais que a empresa não especifique quais seriam esses trechos, o texto omite que o “PL das Fake News” vem sendo discutido desde 2020 e que o relator, deputado Orlando Silva (PC do B-SP), tem reiterado que pretende construir um texto que tenha consenso entre os parlamentares.

A empresa provavelmente distorce uma informação divulgada pelo ITS Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade) de que a versão mais recente do texto, apresentada no final de abril, possuía 28 itens alterados (cerca de 44% do texto). Fabro Steibel, diretor do instituto, no entanto, explicou ao Aos Fatos que essas alterações não necessariamente significam que os trechos não foram debatidos: “alguns artigos não estavam no debate, como o direito autoral, mas a interpretação de alguns é que os temas foram tão discutidos que os artigos novos são uma consequência desse debate”.

“O projeto foi apresentado em 2020, estava no Senado, foi pra Câmara, foi objeto de diversas audiências públicas e também é resultado de uma inspiração na legislação europeia. Alguns artigos foram acrescentados na fase mais recente de tramitação, mas eles têm sido objetos de debate. Inclusive, esse foi um motivo para o adiamento da votação do PL”, explicou ao Aos Fatos Camila Leite, advogada e pesquisadora no Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).

Desde o início da tramitação, o PL 2.630/2020 foi tema de 15 audiências públicas, 14 delas no âmbito do grupo de trabalho do projeto e uma no CCTCI (Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicações e Informática).

Além disso, o projeto seguiu a tramitação usual desse tipo de proposta no Congresso:

  • Ele foi apresentado em maio de 2020 pelo senador Alessandro Vieira (PSDB-SE) e aprovado dois meses depois no Senado;
  • O texto, então, seguiu para a Câmara, onde teve sua votação travada até os atos golpistas de 8 de janeiro e as ameaças a escolas. No dia 25 de abril, a Casa aprova a urgência do PL, fazendo com que ele não precise passar por comissões;
  • Dois dias depois, o relator Orlando Silva apresenta o parecer final;
  • No dia 2 de maio, o PL entra na pauta de votação mas acaba sendo retirado a pedido do próprio relator, que argumentou que seria necessário mais tempo para analisar as sugestões dos congressistas;
  • Hoje, o texto se encontra em renegociação.

Isso significa que o parecer final apresentado pelo relator não será o projeto que será votado pela Câmara. Logo após a retirada de pauta, Silva disse que pretende conversar com seus colegas e fazer um debate aberto e franco para ganhar apoio. O relator disse que uma “proposta mais convergente” deve ser apresentada em duas semanas.

O texto, portanto, ainda deve passar por mudanças e novas negociações junto às bancadas do Congresso para facilitar a sua aprovação. Uma alteração já ventilada pelo próprio relator — mas ainda não confirmada — foi a retirada de trechos que tratam da remuneração das empresas de jornalismo.

Vale lembrar ainda que, caso seja aprovado, o PL volta para o Senado, onde deverá passar por uma nova votação antes de seguir para sanção do presidente da República.

2. O PL não concede poderes de censura ao governo

O artigo 3º do PL 2.630/2020 garante “a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, o acesso à informação, o fomento à diversidade de informações no Brasil e a vedação à censura no ambiente online”, entre outros. Apesar de reconhecer esse dispositivo, o Telegram diz que “os artigos subsequentes enfraquecem severamente essas proteções”.

Na nota enviada aos usuários, a plataforma afirma que o PL vai “forçar os aplicativos a removerem proativamente fatos ou opiniões que ele [o governo] considera ‘inaceitáveis’”.

O argumento contém duas distorções. Primeiro, a redação adotada pela empresa dá a entender que qualquer conteúdo que incomode o governo pode ser alvo de remoção, o que não é verdade. A maior atenção da moderação das plataformas deverá ocorrer apenas para uma lista de crimes já previstos em lei:

Opiniões contrárias ao governo, por si só, não se enquadram em nenhuma das categorias listadas no projeto.

Os crimes contra o Estado Democrático de Direito mencionados pelo decreto 2.848/1940 são dois: tentar aboli-lo ou promover golpe de Estado contra governo legítimo, em ambos os casos, com “violência ou grave ameaça”.

“Crime é aquilo que está tipificado na regra penal. Existe crime contra o Estado Democrático de Direito? Existe. E a doutrina vai definir ainda a especificidade dele. Não é para o ‘tio do zap’. Não dá para dizer que o que se falar vai virar crime”, explicou Steibel, do ITS Rio.

Além disso, o Telegram também exagera ao dizer que as empresas serão forçadas a remover proativamente fatos ou opiniões. O texto da lei prevê que, na maior parte do tempo, as plataformas cumpram um “dever de cuidado” para evitar a disseminação em massa e o impulsionamento de conteúdos que promovam os crimes listados no projeto. As consequências, no entanto, existem em caso de negligência sistêmica, não em situações pontuais.

Caso haja a constatação de que a empresa não está agindo de forma mais ampla para combater a disseminação em massa de conteúdo criminoso ou se houver uma situação de crise — como ocorreu, por exemplo, com a onda de ameaças de ataques às escolas —, a autoridade que será responsável por aplicar a lei também poderá acionar um protocolo de segurança, medida que aumenta o controle sobre posts individuais. A situação, porém, é excepcional e restrita aos crimes listados acima.

Alguns especialistas do direito digital argumentam, porém, que é possível que as plataformas pratiquem autocensura para evitar problemas com o cumprimento da lei, removendo mais posts do que o necessário. Para evitar esse cenário, o texto prevê a obrigação de as empresas justificarem as medidas que adotarem e reforçarem os canais para os usuários contestarem essas decisões. Hoje, se um perfil é removido, muitas vezes o usuário não tem canais oficiais para apelar.

3. O texto só prevê suspensão temporária em casos graves, e o Judiciário poderá intervir

Embora o artigo 47 do PL cite a “suspensão temporária das atividades” como uma das sanções administrativas que podem ser aplicadas aos provedores em caso de descumprimento de suas obrigações, esta é colocada como a mais grave das medidas. Outras sanções mais amenas, como advertências e multas, também estão previstas. O mesmo artigo garante ainda que a aplicação das sanções será proporcional à gravidade da falta, e que o processo deve possibilitar a oportunidade de ampla defesa por parte dos provedores.

As empresas que se considerarem prejudicadas por uma decisão administrativa poderão recorrer ao Judiciário para contestar. Isso já costuma ocorrer, por exemplo, quando um órgão do governo aplica uma multa ambiental ou trabalhista após processo administrativo.

“A esfera judicial é inafastada. Nunca se pode dizer que não vai ter esfera judicial. A ideia de você criar uma esfera administrativa é pela celeridade do processo”, explica Steibel.

O Telegram, em uma nota de rodapé de seu comunicado, reconhece ser possível entrar com uma ação judicial para reverter tal decisão, mas pondera que “mesmo que o tribunal eventualmente decida que a suspensão foi ilegal, até lá o serviço poderia ter permanecido bloqueado por meses ou até mesmo anos”.

A afirmação, porém, não considera a possibilidade de magistrados emitirem decisões liminares, um mecanismo comum ao longo de ações judiciais que pode reverter eventuais punições administrativas antes do julgamento final.

Além disso, as sanções administrativas não partirão do governo, mas de uma autoridade do Estado ainda não definida. Todas as discussões têm reforçado a necessidade de que esse órgão seja autônomo e multissetorial — ou seja, composto também por representantes da sociedade civil e também representantes das empresas.

Esse ponto ainda está sendo discutido, pois não existe consenso sobre quem deveria ser o órgão, mas uma das alternativas que vem ganhando força nos últimos dias é a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações):

  • A agência reguladora possui cinco diretores, que são indicados pela Presidência da República e aprovados pelo Senado;
  • Como apenas um diretor é substituído por ano, a composição do comando da agência não tem necessariamente relação com o governo atual;
  • Atualmente, comandam o órgão um diretor indicado por Michel Temer (MDB) e quatro por Jair Bolsonaro (PL).

4. O PL não determina que empresas assumam o papel do Judiciário

O Telegram afirma ainda na mensagem que o projeto torna as “plataformas digitais responsáveis por decidir qual conteúdo é ‘ilegal’ em vez dos tribunais” e fornece definições muito amplas sobre o que não deve circular, o que acaba criando um sistema de vigilância similar ao de países antidemocráticos.

Especialistas consultados pelo Aos Fatos, no entanto, afirmam que as alegações são exageradas e que o objetivo do projeto é apenas ampliar uma responsabilidade que já pertence aos provedores, não excluir o Judiciário das instâncias decisórias.

De acordo com o Telegram, o PL 2.630/2020 traz definições amplas e imprecisas sobre os tipos de conteúdos que devem ter sua circulação coibida nas redes. A versão mais recente do texto estipula que os provedores devem atuar de forma a prevenir e mitigar a publicação de conteúdos que configuram crimes já tipificados em lei, como atentados contra o Estado Democrático de Direito, terrorismo, racismo e violência contra a mulher.

A afirmação da empresa de que as definições são “amplas e imprecisas” encontra ressonância no debate existente sobre que tipo de conteúdo poderia ser classificado como crime ou não. Entretanto, o projeto prevê que essa discussão seja aprofundada em regulamentação posterior. A versão atual do texto, por exemplo, atribui ao CGI.br (Conselho Gestor da Internet no Brasil) a tarefa de “apresentar diretrizes para a elaboração de código de conduta para os provedores de redes sociais”.

A fim de evitar que conteúdos criminosos sejam disseminados, as plataformas devem exercer um monitoramento próprio, que estará sujeito à supervisão de um órgão independente cuja estrutura ainda será discutida pelo Congresso. Esse “dever de cuidado”, no entanto, não garante aos provedores poderes similares aos do Judiciário, como afirma o Telegram. Ele apenas determina o espectro de conteúdos que devem ser monitorados nas redes e exige que as plataformas cumpram o estipulado em suas próprias diretrizes de comunidade.

Yasmin Curzi, professora e pesquisadora do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV (Fundação Getúlio Vargas), afirma que o objetivo da proposta é trazer transparência aos processos de monitoramento de conteúdo que na prática já são realizados pelas plataformas.

“O que o PL faz é trazer algum tipo de parâmetro com base no ordenamento constitucional. Ele está parametrizando como que elas devem proceder, está trazendo para o debate legitimidade democrática para essas ações das plataformas”, ela explica.

Steibel, do ITS Rio, lembra que esse dever de monitoramento já está previsto em casos específicos no Marco Civil da Internet. O artigo 19 determina que as plataformas só podem ser responsabilizadas por conteúdos postados por usuários se descumprirem uma ordem judicial que determinou sua remoção, à exceção de casos como pornografia de vingança ou conteúdos que violem o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).

O comunicado do Telegram omite ainda que o projeto também prevê que o Judiciário atue para coibir a disseminação de conteúdo ilegal nas redes. O projeto indica, por exemplo, que as plataformas também podem ser instadas a remover conteúdo ilegal mediante ordem judicial.

Aos Fatos questionou nesta terça-feira (9) o Telegram sobre as conclusões da reportagem e está aberto a eventuais manifestações da empresa, que serão incluídas neste espaço.

Referências:
1. Telegram
2. UOL (1 e 2)
3. Twitter (@wadih_damous, Senacon)
4. Aos Fatos (1, 2, 3 e 4)
5. G1
6. Senado Federal
7. Câmara dos Deputados (1, 2 e 3)
8. Mobile Time
9. O Globo
10. Presidência da República (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8)
11. CGI.br

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