A panela de pressão que cozinhou os ânimos dos invasores das sedes dos Três Poderes foi aquecida ao longo dos últimos dois anos por uma série de chamados à violência distribuídos por mensagens em aplicativos, influenciadores em redes sociais, ideólogos da extrema-direita estrangeira e autoridades oficiais. Aos Fatos construiu esta cronologia sobre a tentativa de golpe remontando à invasão do Congresso dos Estados Unidos, ocorrida em 6 de janeiro de 2021.
A partir de declarações do ex-presidente Jair Bolsonaro e de sua equipe de governo, além de investigações em várias plataformas, comentários em programas de TV conservadores americanos e uma crescente retórica militarista nas convocações para atos antidemocráticos, Aos Fatos separou em três pilares fundamentais as principais forças motrizes que levaram ao desfecho violento de 8 de janeiro e o ataque à democracia brasileira:
O PAPEL DE BOLSONARO
“Se nós não tivermos o voto impresso em 22, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”, disse Bolsonaro apoiadores no dia seguinte à invasão do Capitólio. Após seguidos embates com o Poder Judiciário, principalmente em razão do combate à pandemia, dos ataques ao sistema eleitoral e da instauração de inquéritos que investigam aliados seus, foi ali, em 6 de janeiro de 2021, que Bolsonaro viu a oportunidade de vestir de vez a carapuça do golpismo e passou a sugerir uma intervenção contra o STF (Supremo Tribunal Federal) e o TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Até setembro de 2021, os ataques foram seguidos de convocações para ato que ocorreria em Brasília no Sete de Setembro daquele ano: “Nunca uma outra oportunidade para o povo brasileiro foi tão importante ou será tão importante” e “chegou a hora de, no dia 7, nos tornarmos independentes para valer” foram algumas das declarações feitas pelo ex-presidente em 31 de agosto.
No Dia da Independência, Bolsonaro fez discursos golpistas com fortes ataques a membros do Judiciário. “Não podemos ter eleições onde pairem dúvidas sobre os eleitores. Não posso participar de uma farsa como essa patrocinada pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral”, disse a uma multidão de bolsonaristas em São Paulo. Apesar da retórica presidencial e dos cartazes que clamavam intervenção militar, o golpe só existiu na cabeça dos caminhoneiros que bloquearam a Esplanada dos Ministérios e acreditaram que Bolsonaro havia decretado estado de sítio no país.
A má repercussão dos discursos fez com que Bolsonaro recuasse nos ataques mais explícitos às instituições. Ele, assim, passou a repetir aos seus seguidores que não teve volta atrás, mas avanços, pois as Forças Armadas haviam sido convidadas pelo TSE para participar da Comissão de Transparência Eleitoral.
A trégua acabou no ano seguinte, quando disputas públicas entre o Ministério da Defesa e o TSE fizeram ressurgir as teorias de fraude nas urnas. “Imagine acabarmos as eleições e pairar, para um lado ou pro outro, a suspeição de que elas não foram limpas?”, disse Bolsonaro, aos berros, em 16 de maio. Como sempre, a cada nova declaração inflamada contra o sistema eleitoral, as redes sociais eram inundadas de desinformação que respaldavam as acusações do então presidente.
Entretanto, o ápice da cruzada golpista do presidente contra a realização de eleições livres em 2022 se deu em 19 de julho deste ano, quando Bolsonaro convocou embaixadores para uma apresentação no Palácio do Planalto em que lançou dúvidas sobre as autoridades eleitorais brasileiras e o sistema de votação, baseado em informações infundadas ou patentemente falsas.
“Porque sempre ouvimos, em especial da esquerda, que ‘democracia não tem preço’. Por que uma declaração como essa? Será que já está antevendo que o candidato dele, que ele tornou elegível, vai ganhar as eleições? E do lado de cá teria uma reação?”, disse o presidente na ocasião. Mais adiante em seu discurso, ele ainda afirmou que “nós [governo] não queremos que, após as eleições, um lado ou outro questione os resultados”.
O favoritismo de Lula na campanha eleitoral fez com que Bolsonaro subisse ainda mais o tom dos ataques antidemocráticos. Mais do que uma eleição, aquela era para ele uma luta “do bem contra o mal”. Seu adversário, complacente com ladrões e defensor do aborto e da legalização das drogas, era um bandido ligado ao crime organizado, e jamais poderia se sentar na cadeira presidencial. “Precisamos de coragem para decidir. Nós juramos dar a vida pela pátria. Nós, brasileiros, juramos a vida pela liberdade”, disse, em discurso em Contagem (MG) em setembro.
Em meio a essa escalada, o então presidente sinalizou em mais de uma ocasião que poderia não passar a faixa presidencial em caso de derrota. Questionado a respeito disso em agosto, permaneceu em silêncio. Ao programa do Ratinho em setembro, ele condicionou a entrega à realização de eleições limpas.
A estridência golpista das falas de Bolsonaro cessou em um momento político conveniente para ele. Isolado no Palácio da Alvorada após perder a eleição, o presidente em fim de mandato contribuiu com silêncio e omissão para a escalada do extremismo. A ausência era normal, diziam administradores de grupos bolsonaristas no Telegram e no WhatsApp, porque Bolsonaro estaria tramando uma estratégia para reverter a derrota e precisava de 72 horas para acionar o artigo 142 e declarar um golpe de Estado. Essa e tantas várias teorias conspiratórias disseminadas desde o fim das eleições não se concretizaram.
Quando finalmente apareceu para cumprimentar apoiadores, em 9 de dezembro, Bolsonaro limitou-se a afirmar que quem decidia o futuro dele e o das Forças Armadas era o povo: “Não podemos esperar chegar lá na frente e olhar pra trás e dizer: o que eu não fiz lá trás para chegarmos a essa situação de hoje em dia?”, disse, enigmático.
Em seguida, integrantes do governo entraram em cena para alimentar o fanatismo. Em 18 de novembro, ao ouvir reclamações de manifestantes, o ex-ministro da Defesa e candidato a vice-presidente, Walter Braga Netto (PL), disse: “Vocês, não percam a fé. É só o que eu posso falar agora”. Augusto Heleno, ex-GSI (Gabinete de Segurança Institucional), quando questionado por um apoiador se o “ladrão subiria a rampa”, afirmou que “não”.
Depois que Bolsonaro deixou o Brasil rumo aos Estados Unidos, em 30 de dezembro, mensagens sugerindo reações violentas ao resultado das urnas ficaram mais frequentes em redes sociais abertas: “Selva é o caralho, agora é guerra civil, vamos tomar Brasília até essa porra funcionar”, escreveu um usuário no Twitter, no dia 30.
A FAMÍLIA E O MILITARISMO
Ao contrário dos convites para manifestações golpistas marcadas ao longo da segunda metade do governo Bolsonaro, a convocação para os atos de 8 de janeiro tinham palavras de ordem majoritariamente militaristas e masculinistas. Já desde o fim de outubro, saía de cena a ênfase amistosa que buscava ligar as manifestações bolsonaristas à defesa da família, às quais apoiadores eram incentivados a levar crianças. Tornaram-se recorrentes chamados com referência a uma “guerra civil”, a “fechar a entrada dos Três Poderes”, com afirmações de que “estamos em guerra”.
Veículos de comunicação hiperpartidários assumiram posicionamentos abertamente golpistas ao propagar mensagens violentas. Comentaristas da Jovem Pan como Paulo Figueiredo, Alexandre Garcia, Rodrigo Constantino e Zoe Martínez — citados em inquérito do MPF-SP (Ministério Público Federal em São Paulo) que investiga a emissora —, além de não aceitarem o resultado das urnas, pediram a destituição dos ministros do STF pelas Forças Armadas.
“Ou a gente aceita o STF dissolvendo o Congresso aos poucos, ou aceita o STF dizendo que acabou, ‘perdeu, mané’, uma eleição sem transparência, sem legitimidade, sem confiança da população, ou a gente aceita o poder que tudo pode. (…) Ou a gente aceita tudo isso e abaixa a cabeça ou então a gente vai ter guerra civil? Ora, então que tenha guerra civil”, disse Paulo Figueiredo, neto do ditador João Baptista Figueiredo (1918–1999), durante uma transmissão da Jovem Pan em dezembro de 2022. A fala é destacada na investigação do Ministério Público. “Que porcaria de frouxidão é essa?”, completou.
No Natal, George Sousa deslocou-se de um acampamento em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília ao aeroporto da capital com a intenção de detonar uma bomba. Segundo trecho de seu depoimento publicado pelo jornal O Globo, o plano fora orquestrado com manifestantes “para provocar a intervenção das Forças Armadas e a decretação do estado de sítio para impedir a instauração do comunismo no Brasil”.
Depois da posse, o que era ameaça virou plano, com posts que traziam orientações para a tomada do poder. “Quando a injustiça se torna lei, a resistência é nossa obrigação”, dizia uma corrente que circulou no Telegram a partir do dia 3 de janeiro. Os “patriotas” deveriam acampar diante de distribuidoras para atrapalhar o comércio de combustíveis, ocupar a frente dos quartéis e fechar as entradas dos prédios dos Três Poderes. Era função dos CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores) proteger os outros civis.
O que há em comum entre essas convocações é que elas sempre foram associadas à interpretação falsa do artigo 142 da Constituição Federal, de que seria possível decretar uma intervenção militar dentro da lei no país. Faixas com pedidos de intervenção militar são comuns em manifestações do bolsonarismo desde as origens, quando ainda impulsionado por pautas lavajatistas. No entanto, foi logo após o final de semana do segundo turno que o termo artigo 142 — que tem o seu conteúdo distorcido pelo ex-presidente ao menos desde 2016 — teve maior pico de interesse desde o início do governo Bolsonaro.
Conforme o Radar Aos Fatos revelou, posts convocando especificamente aos atos de 8 de janeiro já circulavam em 3 de janeiro em grupos de Telegram e perfis no Kwai.
- O Radar Aos Fatos identificou uma corrente que convocava “caminhoneiros, agricultores, pecuaristas, CACs”, entre outros, para “desentocar todos os ratos que se apossaram do poder” desde terça-feira (3);
- Outras publicações também foram identificadas entre terça e sábado (7) e acumulam dezenas de milhares de compartilhamentos e centenas de milhares de visualizações em plataformas como TikTok, Kwai, Facebook, Instagram e Telegram;
- Na quarta (4), os influenciadores Oswaldo Eustáquio e Renato Gasparin fizeram uma transmissão ao vivo para chamar as pessoas para “tomarem o país”. Eustáquio pediu que 1 milhão de pessoas fossem a Brasília para que, assim, a invasão não se transformasse em um “voo de galinha”;
- Um vídeo publicado no Kwai na terça (3) convoca usuários para um “ato em massa” para paralisar o país e tomar o Congresso — e, até a publicação desta reportagem, somava 10 mil visualizações;
- Os posts mais virais, no entanto, começaram a ser publicadas após quarta-feira (4), como a “convocação constitucional de militares, reservistas, anticomunistas e antiditaduras”, que foi compartilhada por dezenas de usuários e ultrapassava as 100 mil visualizações no domingo.
A INFLUÊNCIA AMERICANA
A narrativa golpista que favoreceu a radicalização e antecipou o terrorismo do último domingo (8) não foi semeada apenas em solo brasileiro. Nos Estados Unidos, figuras como o âncora Tucker Carlson, da Fox News, e o empresário Mike Lindell — ambos aliados de Donald Trump — ajudaram a inflamar ainda mais o ânimo dos golpistas que se instalaram na frente dos quartéis, por meio da divulgação reiterada de desinformação sobre os resultados das eleições.
Links para vídeos foram distribuídos em grupos de WhatsApp e Telegram e publicados em redes identificadas com a extrema-direita, como o Gettr, com informações falsas sobre urnas eletrônicas, fraude eleitoral, comunismo, China, Foro de São Paulo. A desinformação norte-americana serviu para legitimar os argumentos mentirosos reverberados por autoridades bolsonaristas no Brasil e dar respaldo à falsa narrativa de que a mídia estrangeira mostra aquilo que o jornalismo brasileiro e as big techs escondem.
No dia seguinte ao resultado das eleições brasileiras, por exemplo, Carlson classificou como “censura” a decisão do YouTube de proibir postagens desinformativas que levantassem dúvidas sobre a segurança do sistema eleitoral do país. “A eleição ainda está em aberto, o atual presidente ainda não se pronunciou, como você [YouTube] sabe que as alegações são falsas?”, questiona o âncora, que teve seu programa legendado em português e compartilhado em grupos do Telegram monitorados pelo Radar Aos Fatos.
Alegações mentirosas sobre o resultado eleitoral também foram compartilhadas por Lindell — mencionado em grupos bolsonaristas como se fosse jornalista. Logo após o resultado do pleito brasileiro, o empresário afirmou no programa Lindell Report que cerca de 5 milhões de votos haviam sido roubados de Bolsonaro — o que é falso. Ele também levanta suspeitas sobre as urnas eletrônicas e afirma que, se a fraude não for impedida, “o Brasil se foi, será a Venezuela para sempre”.
Em seu programa War Room, o estrategista de extrema-direita Steve Bannon, que diz manter laços com Eduardo Bolsonaro, chegou a cunhar a expressão “primavera brasileira” em referência às ocupações golpistas em frente a quartéis brasileiros, segundo reportagem da Agência Pública. As palavras virariam hashtag no Twitter dias depois e norteariam a campanha digital da extrema direita brasileira.
As mentiras em rede americana persistiram mesmo após a eclosão dos atos golpistas. No Tucker Carlson Tonight de segunda-feira (9), o apresentador e o comentarista Matt Tyrmand afirmam que havia agentes infiltrados nos atos, que os golpistas foram presos em campos de concentração sem água e sem comida e que dois já haviam morrido nas dependências da Polícia Federal. “Espalhem esse vídeo! Inclusive para outros países!”, escreveu um usuário no Telegram.
Também circula nos grupos uma mensagem em que Robert Malone, notório desinformador sobre Covid-19, deseja boa sorte aos golpistas presos. “Espero que vocês consigam suportar a pressão e seguir em frente, para que possamos chegar a um lugar melhor no futuro.”