A Jovem Pan antecipou no domingo (8), ainda durante a cobertura ao vivo dos ataques golpistas contra as sedes dos Três Poderes, em Brasília, os principais argumentos falsos que seriam usados nas horas e nos dias seguintes por extremistas e pelo próprio ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) a fim de justificar os crimes.
Por meio do Escriba, Aos Fatos transcreveu sete horas de programação da Jovem Pan no dia dos atos terroristas. Na versão disponível no YouTube, a cobertura tem início às 15h07 e converge com os argumentos apresentados pelo procurador da República Yuri Corrêa da Luz na abertura do inquérito do MPF (Ministério Público Federal) para apurar se a emissora atua contra o Estado de Direito. Segundo ele, a empresa veicula “conteúdos sem o mínimo respaldo na realidade”.
Na segunda-feira (9), mesmo dia em que começou a ser investigada, a Jovem Pan anunciou a saída de seu presidente e o afastamento de comentaristas. Tutinha, apelido do empresário Antonio Augusto Amaral de Carvalho Filho, deixou o principal cargo executivo, mas permanecerá como membro do conselho e um dos maiores acionistas do grupo. A Jovem Pan faturou R$ 100 milhões em 2021, dos quais R$ 20 milhões em receitas do YouTube, segundo a piauí. A plataforma, que pertence ao Google, anunciou a desmonetização dos canais em novembro — após a eleição.
A única manifestação da empresa desde a abertura da investigação foi o comunicado sobre a troca de presidente, em que diz que os acionistas têm “a missão de preservar os princípios e valores que norteiam o Grupo Jovem Pan há 80 anos”. Aos Fatos reiterou o pedido de posicionamento por email e este texto será atualizado caso haja resposta.
Como registro do 8 de janeiro, ficaram as falas de comentaristas que relativizaram a violência dos golpistas, questionaram o resultado das urnas e atacaram o Judiciário com teorias conspiratórias — ilustradas por imagens ao vivo de dezenas de milhões de reais em patrimônio público sendo reduzidos a escombros. Os eventos revelam como a emissora, em meio ao silêncio de Bolsonaro, assumiu papel central na definição dos discursos mentirosos dos extremistas.
DESCONFIANÇA ELEITORAL
“As pessoas não estão revoltadas porque o Lula ganhou as eleições”, disse o comentarista Paulo Figueiredo, neto do ditador militar João Baptista Figueiredo (1918–1999). “As pessoas estão revoltadas com a forma como o processo eleitoral foi conduzido”, continuou, para em seguida espalhar desinformações eleitorais que já foram desmentidas reiteradas vezes.
Ele citou “a truculência com que certas instituições têm violado a nossa Constituição”, “as perseguições políticas que têm acontecido”, “a atuação parcial do nosso TSE e do STF” e supostas “dúvidas que jamais foram sanadas a respeito do nosso processo eleitoral”.
Mais à frente, Figueiredo pediu que políticos viessem a público para “condenar [os atos] e pedir pra que essas pessoas voltem para as casas, porque elas são pessoas bem intencionadas, com vontades legítimas, com revoltas absolutamente legítimas, mas que estão agindo da forma errada”.
Paulo Figueiredo foi um dos comentaristas afastados pela Jovem Pan na segunda (9), após a abertura do inquérito do MPF, que transcreve falas dele na peça inicial.
Ao analisar a situação, o comentarista Alexandre Garcia disse que “o povo foi direto, o povo primeiro ficou querendo a tutela do Exército, que não apareceu, e então tomou a iniciativa própria”. “É um aviso. Talvez o último aviso, né? É uma coisa grave, tomara que não haja sangue de brasileiro nisso aí.”
Pouco antes das 18h, a Jovem Pan entrevistou ao vivo a deputada bolsonarista Carla Zambelli (PL-SP), que minimizou os atos de terrorismo e repetiu a versão falsa de que foram praticados por militantes de esquerda “infiltrados” entre os extremistas — mentira que já havia sido usada em 12 de dezembro, por apoiadores de Bolsonaro, quando houve uma tentativa de invasão à sede da PF após a diplomação de Lula.
Zambelli minimizou a responsabilidade dos golpistas: “O que a gente percebe disso tudo é que foram 70 dias de manifestações pacíficas, em que a gente teve um povo que clamou por justiça, que clamou por segurança, que clamou para que a Constituição fosse ouvida, fosse seguida, fosse respeitada. E que culminou nessa manifestação de hoje”.
Após a publicação desta reportagem, a deputada Carla Zambelli enviou um email à Redação dizendo que “Aos Fatos mente quando afirma que eu minimizei os ‘atos de terrorismo’ em entrevista à Jovem Pan”. Ela reiterou ainda possuir “fontes que provam que havia infiltrados nos atos de domingo”, sem apresentar mais detalhes. Leia a íntegra da manifestação.
A desconfiança eleitoral foi o principal mote para que Bolsonaro incitasse um golpe de Estado durante os quatro anos de mandato. “Se nós não tivermos o voto impresso em 22, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”, ele disse a apoiadores em 7 de janeiro de 2021, dia seguinte à invasão do Congresso dos Estados Unidos por trumpistas.
Na noite de terça (10), pela primeira vez desde que foi derrotado, Bolsonaro compartilhou no Facebook um vídeo com desinformação eleitoral contestando o resultado de 2022. Horas depois, ele apagou o conteúdo, que alegava fraude — o que é falso. Conforme Aos Fatos mostrou, o ex-presidente usou a tática de apagar posts mentirosos durante o mandato, viralizando esses conteúdos entre os apoiadores nas principais plataformas.
OS PROTESTOS DA ESQUERDA EM 2017
Logo em seguida à breve participação de Carla Zambelli, a Jovem Pan transmitiu a entrevista coletiva do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que estava em Araraquara (SP) para tratar da situação de famílias desalojadas pela chuva.
“Todas essas pessoas que fizeram isso serão encontradas e serão punidas”, disse o chefe do Poder Executivo. “Eles vão perceber que a democracia ela garante o direito de liberdade, ela garante o direito de livre comunicação, de livre expressão, mas ela também exige que as pessoas respeitem as instituições que foram criada pra fortalecer a democracia.”
O comentarista Gerson Gomes, coronel da reserva do Exército, citou na sequência casos de vandalismo ocorridos em 2017, durante protestos organizados por movimentos sociais e partidos de esquerda contra a reforma da Previdência proposta pelo então presidente Michel Temer (MDB).
Naquele ano, manifestantes quebraram vidraças e iniciaram focos de incêndio em prédios de seis ministérios, além de destruírem parte do mobiliário urbano da Esplanada. O governo acionou as Forças Armadas para deter a destruição, 49 pessoas ficaram feridas — entre agentes de segurança e manifestantes — e oito foram presas.
Apesar da tentativa do comentarista em equiparar as duas situações, a escala da destruição ocorrida em 8 de janeiro não tem precedentes, bem como a quantidade de envolvidos. Segundo o governo do Distrito Federal, 736 pessoas foram transferidas para centros de detenção provisória — número que exclui idosos e mães com crianças, que foram liberados por questão humanitária.
Gomes em seguida disse que o atual ministro da Justiça, Flávio Dino (PSB), “apoiou aquela depredação [de 2017] porque era de uma orientação de esquerda”. O comentarista defendeu a coordenação de um “acordo” com os golpistas, “até um diálogo que pudesse ser identificado qual é o motivo dessa insatisfação”.
Depois, emendou uma crítica ao governo Lula: “No entanto, me parece que não começamos bem”, disse. “Seja com as palavras do presidente da República, seja com a escolha do interventor [o secretário-executivo do Ministério da Justiça, Ricardo Cappelli].”
Em nenhum momento o coronel da reserva citou o ex-presidente. Gomes encerrou o comentário às 18h15. Três horas depois, às 21h17, Bolsonaro usou no Twitter o mesmo argumento que a Jovem Pan tinha veiculado, dizendo que “depredações e invasões de prédios públicos como ocorridos no dia de hoje, assim como os praticados pela esquerda em 2013 e 2017, fogem à regra”.
COBERTURA EXCLUSIVA
A Jovem Pan foi a única emissora a manter equipe de reportagem em meio aos golpistas até pouco após as 18 horas, quando as forças de segurança já começavam a retomar o controle da praça dos Três Poderes. Esse fato não passou despercebido:
- Um tuíte publicado às 15h49, no domingo (8), teve 1,6 milhão de visualizações até esta quarta (11) ao notar que “apenas a Jovem Pan tem jornalista no meio dos golpistas mostrando a invasão”;
- Uma hora mais tarde, outro usuário tuitou que a “Jovem Pan é a única emissora com imagens exclusivas dos terroristas tal qual Peter Parker é o único fotógrafo com imagens exclusivas do Homem-Aranha” — e somou 5,4 milhões de visualizações.
Apesar de serem conteúdos humorísticos, eles destacam o fato de que os golpistas usaram violência para repelir jornalistas de diferentes veículos, mas não da Jovem Pan.
Houve 13 ataques a profissionais da imprensa em Brasília no domingo (8), segundo levantamento da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas). Entre os casos, há o de uma fotojornalista do Metrópoles que foi cercada, espancada e roubada por dez homens cujas imagens haviam sido registradas por ela: “Tiraram da minha mão e me devolveram meus equipamentos de trabalho. O celular e o cartão de memória ficaram com eles.”
No domingo (8), a Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), que tem a Jovem Pan entre as associadas, divulgou nota em que diz que “as invasões e atos de depredação a prédios públicos, assim como os ataques aos profissionais da comunicação são uma afronta à democracia e à Constituição Brasileira”.
Em dezembro de 2021, quando um requerimento na CPI da Pandemia no Senado pediu a quebra de sigilo bancário da Jovem Pan — acusada de disseminar mentiras nocivas à saúde pública —, a Abert saiu em defesa da associada, dizendo em nota que “tal iniciativa não aponta qualquer dado ou informação concreta que justifique a adoção de medida extrema contra uma emissora que está no ar há quase 80 anos, cumprindo o papel de informar a população sobre fatos de interesse público”.
Este texto foi atualizado às 16h05 do dia 13 de janeiro de 2023 para incluir a manifestação da deputada federal Carla Zambelli (PL-SP).