Protagonista nas redes bolsonaristas, com alcance e lucro inéditos, a Jovem Pan chega à última semana da campanha eleitoral tendo que cumprir uma série de decisões desfavoráveis dadas pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Após a corte determinar a abertura de uma investigação eleitoral para apurar se a emissora trata os presidenciáveis de forma desigual, influenciadores que apoiam Jair Bolsonaro (PL) publicaram conteúdos de desagravo, inclusive com informações falsas, que atingiram dezenas de milhões de pessoas nas principais plataformas.
Sujeita a regras mais rígidas por ser uma concessão pública, a Jovem Pan orientou comentaristas a evitarem palavras que liguem Lula (PT) ao crime organizado, no momento em que o TSE expande poderes e diminui prazos para exclusão de conteúdos.
Na segunda-feira (17), o tribunal acatou, por 4 votos a 3, um pedido de direito de resposta feito pela campanha de Lula em razão de comentários de apresentadores da emissora. A representação pedia respostas às alegações de que o petista mente que teria sido inocentado e que ele perseguirá religiosos caso seja eleito.
Além de garantir o direito de resposta, o TSE ainda decidiu que os comentaristas da emissora não devem reproduzir as mesmas falas, sob pena de multa. Em seu voto, o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, afirma que a Jovem Pan veiculou informações sabidamente inverídicas, desrespeitando a presunção de inocência prevista na Constituição Federal. Segundo o ministro, ilegal “é submeter o eleitorado a uma finalidade e realidade falsa”.
“Trata-se de cenário sombrio e gravíssimo que reforça comportamentos tendenciosos, de fake news e desinformação, o que deve ser rechaçado, dado o potencial lesivo do uso dessa técnica dentro do campo político-eleitoral.”
Lula e crime. Após a decisão, a Jovem Pan emitiu um comunicado interno aos funcionários, cujo conteúdo foi revelado pelo UOL, informando que “estamos orientados pelo jurídico a não utilizar as seguintes expressões”:
- ex-presidiário;
- descondenado;
- ladrão;
- corrupto;
- chefe de organização criminosa.
“Além disso, não devemos fazer qualquer associação entre o candidato Lula ao crime organizado”, continua a circular. “E mais: as críticas aos ministros e ao Judiciário não são recomendadas pelo nosso jurídico neste momento.”
Na domingo do primeiro turno (2), Moraes deu uma decisão urgente em que determinou a exclusão de conteúdos, inclusive da Jovem Pan, sobre uma suposta declaração de voto a Lula por parte do principal líder do PCC (Primeiro Comando da Capital), Marcos Willians Herba Camacho, o Marcola, que está preso na Penitenciária Federal de Porto Velho, em Rondônia, e não tem direito a voto.
Reportagem do Aos Fatos mostrou que, naquele fim de semana, conteúdos ligando Lula ao crime organizado mobilizaram todo o ecossistema de desinformação bolsonarista — de falas do presidente da República durante o debate da Globo a correntes apócrifas no Telegram e no WhatsApp, passando por atrações da Jovem Pan e por conteúdos em plataformas como o Twitter e o YouTube.
Vídeos sobre o assunto nos canais Os Pingos nos Is e Jovem Pan News somaram 1,75 milhão de visualizações no YouTube antes de serem excluídos, conforme revelou o Aos Fatos. Após a decisão de Moraes, esses conteúdos a princípio foram marcados como “não listados” — quando um vídeo não aparece na busca do YouTube, mas fica disponível por meio de links distribuídos, por exemplo, em aplicativos de mensagens.
Drible. Relatório do estúdio de análise de dados Novelo Data mostra que a emissora adaptou sua estratégia de conteúdo após as decisões do TSE. “Liderada pela Jovem Pan, a extrema-direita no YouTube passou a responder às decisões do TSE para tirar conteúdos do ar publicando novos vídeos noticiando a decisão e repetindo o argumento vetado”, diz o texto.
Quando o TSE determinou a retirada de conteúdos sobre o petista Celso Daniel (1951–2002), prefeito de Santo André (SP) que foi assassinado, a emissora publicou um vídeo com o título: “A pedido do PT, censura a Jovem Pan por entrevista sobre caso Celso Daniel”, que até agora acumulou cerca de 1 milhão de visualizações e permanece no ar. O mesmo ocorreu com o caso do satanista que havia declarado voto em Lula, cuja republicação ultrapassa 800 mil visualizações.
Na quarta-feira após o primeiro turno (5), a comentarista Ana Paula Henkel disse na Jovem Pan que petistas “têm a proteção do TSE contra as verdades que são ditas” e, sem apresentar provas, voltou a relacionar Lula à facção criminosa paulista. “Nós não podemos falar da ligação do PT e do PCC, do Lula e do assassinato do Celso Daniel, da ligação do ex-presidiário Lula com ditadores pelo mundo.”
Um dos vídeos mais populares em 300 grupos de WhatsApp monitorados pelo Aos Fatos durante o segundo turno é do Pingos nos Is de 11 de outubro. Embora a Justiça Eleitoral já tivesse determinado ser ilegal relacionar Lula ao crime organizado em outras oportunidades, comentaristas da emissora voltaram a fazer a associação.
“A delação do Marcos Valério para a própria Polícia Federal, que ali indica as as ligações entre o PT e o PCC (…) vai entrar no inquérito das fake news? O TSE vai proibir a delação? Como é isso?”, questionou Henkel naquele dia.
Palavras ditas. Desde o início da campanha, as expressões que agora a emissora recomenda aos comentaristas que sejam evitadas foram usadas ao menos 203 vezes no Pingos nos Is, no qual Henkel participa.
Lula foi chamado:
- 131 vezes de ex-presidiário;
- 38 vezes de ladrão;
- 19 vezes de descondenado;
- 14 vezes de corrupto;
- e 1 vez de chefe de quadrilha.
O levantamento considera 46 episódios, exibidos entre 16 de agosto e 18 de outubro, que totalizam mais de 95 horas de duração e têm 43,5 milhões de visualizações no YouTube. Todo o conteúdo foi transcrito com o Escriba, ferramenta desenvolvida pelo Aos Fatos, e analisado pela reportagem a partir de buscas textuais.
- Ana Paula Henkel é quem mais proferiu palavras que agora o jurídico da Jovem Pan não recomenda: foram 145 vezes (71% do total), sendo 120 citações a Lula como “ex-presidiário”, desde o início da campanha;
- Em distante segundo lugar, com 25 menções a palavras agora vetadas pelos advogados da emissora (12%), Guilherme Fiuza chamou o petista de “ladrão” 15 vezes no período;
- Augusto Nunes completa o pódio com 24 citações (12%), também tendo “ladrão” como a mais recorrente;
- Acesse a planilha com todas as frases.
Henkel é a única comentarista que usou as cinco expressões citadas no documento interno da Jovem Pan para se referir a Lula durante a campanha. Em alguns casos, citou várias numa só frase: “É a bolha que vive para limpar o caminho de um ex-condenado, um ex-presidiário, um corrupto, um chefe de quadrilha”, enumerou a ex-jogadora de vôlei, no dia 6 de outubro.
Uma linha de raciocínio recorrente prega a existência de um suposto conluio entre PT e Judiciário, especialmente o TSE e o STF (Supremo Tribunal Federal), com o objetivo de eleger Lula — discurso que tem ressonância em teorias conspiratórias.
Ao questionar decisões dos tribunais, no episódio da última sexta (14), Henkel disse que está “tudo relacionado ao ilibado ex-presidiário Luiz Inácio Lula da Silva e político corrupto de estimação do STF/TSE”.
Nesta semana, 2 dos 46 vídeos que compõem a análise do Aos Fatos foram deletados do YouTube pela Jovem Pan. “Ontem parece que quem estava de fato muito incomodado com a exposição era o ex-presidente e o ex-presidiário Lula”, comentou Henkel no dia 29 de agosto, episódio veiculado após o debate entre presidenciáveis, e um dos deletados.
“O Foro de São Paulo, os ditadores que o ex-presidente e ex-presidiário ele tem esse conchavo”, continuou a comentarista. Augusto Nunes citou uma frase em que Bolsonaro chamou Lula de “ex-presidiário” e concordou: “É uma verdade dita de maneira rude, mas correta, a verdade, e o Lula tá vendo agora o que é falar com gente que não tem medo.”
Dura lex sed lex. Emissoras de rádio e televisão com concessões públicas devem seguir leis para garantir tratamento isonômico entre os candidatos. Essas regras não se aplicam a sites ou páginas em redes sociais.
A Lei 9.504/1997, por exemplo, determina que as empresas de comunicação não podem dar tratamento privilegiado a qualquer candidato, usar montagens ou outros recursos para degradar um candidato ou até veicular propaganda política ou difundir opinião favorável ou contrária a um deles.
Nesse sentido, a abertura de uma investigação eleitoral para apurar se a emissora trata os candidatos de forma isonômica pode levar a consequências mais graves do que as decisões dadas pelo TSE até então.
Desde 2019 também é proibido divulgar, durante o período de campanha, “fatos que sabe inverídicos em relação a partidos ou candidatas e candidatos e capazes de exercer influência perante a eleitora e o eleitor”. Quem comete esse crime eleitoral fica sujeito a penas que vão de multas a prisão.
“Censura.” Na quarta-feira (19), a Jovem Pan publicou um editorial alegando que a decisão se trata de um ato de censura. “Não podemos, em nossa programação — no rádio, na TV e nas plataformas digitais —, falar sobre os fatos envolvendo a condenação do candidato petista Luiz Inácio Lula da Silva. Não importa o contexto, a determinação do tribunal é para que esses assuntos não sejam tratados na programação jornalística da emissora”, diz o texto. “Censura.”
Ainda na quarta (19), a reportagem do Aos Fatos enviou mensagem pelo WhatsApp ao advogado Alexandre Fidalgo, que representa a Jovem Pan em ações no TSE, pedindo uma entrevista sobre a decisão. Fidalgo não respondeu. Questionada, a assessoria de imprensa da emissora remeteu ao editorial e disse que, por enquanto, é tudo o que a Jovem Pan irá comentar.
Faz de conta. No mesmo dia, em outro carro-chefe da programação — o Pânico —, a Jovem Pan veiculou críticas à decisão de Moraes. Em determinado momento, a produção do programa fez uma encenação dando a entender que os integrantes estavam sendo vigiados: um homem de terno rondou o estúdio, recolheu papéis e exibiu um rolo de fita adesiva.
Apesar de a emissora ter dito em nota ao Aos Fatos que “este foi o protesto do programa Pânico contra a censura” e que “é um programa de humor que usa de tais instrumentos para manifestar sua posição crítica”, a encenação apareceu em peças de desinformação dando conta de que o ator seria, na verdade, um funcionário do TSE. O tribunal veio a público desmentir.
Esse exemplo mostra como ferramentas de edição em apps de vídeos curtos facilitam a disseminação de cortes tirados de contexto, tipo de conteúdo que migra com rapidez para aplicativos como Telegram e WhatsApp, nos quais não é possível estimar o alcance ou bloquear o compartilhamento.
A peça desinformativa produzida a partir do Pânico teve centenas de milhares de visualizações no Instagram, no Kwai, no TikTok e no Twitter, reforçando tendência observada por Aos Fatos nesta semana — a simbiose entre os discursos veiculados na emissora e os disseminados por redes desinformativas que apoiam Bolsonaro.
- “O PT está pedindo para fechar a Jovem Pan”, disse a apresentadora Carla Cecato, que deixou a Record para atuar no horário eleitoral de Bolsonaro. A afirmação é falsa e somou mais de 350 mil curtidas no Instagram;
- Em ação coordenada, entre quarta (19) e quinta (20), 76 perfis publicaram 146 posts no Twitter com o texto “comentário removido pelo Tribunal Superior Eleitoral”, para dar a entender que a Justiça Eleitoral havia determinado a exclusão desses conteúdos — 19 deles fazem referência à decisão contra a Jovem Pan. É tudo mentira.
- Também viralizou um corte do programa Linha de Frente no qual Tomé Abduch (Republicanos), deputado estadual eleito em São Paulo, questiona a “inversão de valores” de censurar palavras contra Lula e liberar “genocida” e “pedófilo” para se referir a Bolsonaro. Além do recorte publicado no Twitter da Jovem Pan News, o vídeo circulou no WhatsApp e no Facebook e acumula mais de 100 mil visualizações e 25 mil compartilhamentos;
- Comentários de bolsonaristas como Luiz Camargo, Caio Copolla, a policial Mariana Lescano e Paulo Figueiredo ganharam alcance. Só o vídeo publicado no YouTube por este último, no qual ele diz, por exemplo, que a Jovem Pan foi proibida de fazer jornalismo, foi visto 800 mil vezes;
- Na quinta (20), a comentarista da Jovem Pan Cristina Graeml publicou um vídeo dizendo que havia sido afastada dos programas até o final das eleições por meio de uma autocensura da emissora. Segundo ela, a Jovem Pan “adotou essa cautela de tirar uns comentaristas do ar porque nossos nomes foram muito citados em processos do PT”, alegou.
Fortes sinais. Na semana anterior ao início oficial da campanha, em 16 de agosto, dados do TSE sobre denúncias de desinformação já apontavam para o papel que a Jovem Pan poderia desempenhar durante a eleição.
- Vídeos da emissora eram os mais populares entre os denunciados pelo tribunal ao YouTube, como mostrou o Aos Fatos em 11 de agosto;
- Com 19,4 milhões de visualizações naquele momento, 71 edições do Pingos nos Is já haviam sido reportadas pelo TSE por possível desinformação eleitoral;
- A mais popular foi a retransmissão da live de Bolsonaro de 29 de julho de 2021, na qual ele prometeu apresentar provas de fraude nas urnas eletrônicas, mas apenas repetiu alegações falsas sobre o sistema.
Àquela altura, a live já havia sido deletada pelo YouTube do canal de Bolsonaro, mas seguia disponível no canal do programa da Jovem Pan, com mais de 1,3 milhão de visualizações.
O YouTube afirmou que os conteúdos enviados pelo TSE “foram avaliados, de acordo com nossas regras, e removidos, quando considerados em violação das mesmas”.
Lives e dinheiro. Em janeiro de 2020, a Jovem Pan transmitia no YouTube apenas trechos das lives de Bolsonaro — e só durante os intervalos comerciais da rádio. Aos poucos, as falas ao vivo do presidente ganharam mais espaço na programação, até que, em 2 de abril de 2020, a Jovem Pan não só transmitiu a íntegra pela primeira vez, como os comentaristas do Pingos nos Is fizeram perguntas a Bolsonaro.
Desde então até setembro deste ano, o canal ganhou 3,36 milhões de inscritos, segundo a Novelo Data. A decisão da Jovem Pan de passar a exibir a íntegra das lives do presidente coincidiu com a saída do governo do então ministro da Justiça e Segurança Pública, o senador eleito Sergio Moro (União Brasil-PR), que recentemente fez as pazes com o ex-chefe e o acompanhou no primeiro debate do segundo turno.
“Assim, na medida em que foi constatado que a audiência abandonara Moro e mandara às favas seus pruridos anticorrupção, continuando fiel ao presidente, Os Pingos nos Is mergulhou de vez no bolsonarismo”, registra reportagem da revista piauí publicada em agosto, também produzida em parte com análise da Novelo Data.
O engajamento se converte em dinheiro. A Jovem Pan teve faturamento de R$ 100 milhões em 2021 — dos quais R$ 20 milhões de receitas do YouTube, crescimento de 50% em relação ao ano anterior, de acordo com a piauí.
Farinha de trigo. No Pingos nos Is de terça-feira (18), Ana Paula Henkel fez referência à censura praticada pela ditadura civil-militar (1964–85). A ex-jogadora de vôlei, que mora nos Estados Unidos, leu no ar uma receita de bolo. “Em um liquidificador, você adiciona os ovos, o açúcar, o fubá, a farinha de trigo, óleo, leite e o fermento, depois você bate tudo até a massa ficar lisa e homogênea.”
A tática era usada nos anos 1960 e 70 pelo Jornal da Tarde (1966–2012) para substituir textos censurados. “Durante o governo Castello Branco a coerção do regime teve a marca da ambiguidade do marechal. Através dos instrumentos da ditadura, jornalistas foram cassados e perseguidos em inquéritos intimidadores”, relata Elio Gaspari no livro “A Ditadura Escancarada — As Ilusões Armadas” (Intrínseca, 2014).
“A ambiguidade terminou na noite de 12 de dezembro de 1968, quando o general Jayme Portella de Mello determinou à Polícia Federal que se preparasse para calar as emissoras de rádio e televisão e enviar censores aos jornais do Rio e de São Paulo”, escreve Gaspari. “Era o prelúdio da missa negra que decretaria o AI-5.”
O Estado de S. Paulo, que também publicava o Jornal da Tarde, foi uma das empresas jornalísticas mais tolhidas pela censura. “Quase vinte horas antes da assinatura do AI-5, o chefe da Polícia Federal, general Silvio Correia de Andrade, entrou nas oficinas do velho matutino e, depois de ler o seu editorial, intitulado ‘Instituições em frangalhos’, mandou parar as máquinas.”
Ana Paula Henkel iniciou a fala evocando a perseguição perpetrada contra jornalistas pela ditadura exaltada por Bolsonaro, mas encerrou por outro caminho: “Para finalizar o meu comentário, puxando páginas da História que ainda podemos puxar — nem todas são proibidas —, lembrando que os bolcheviques assassinavam seus adversários políticos e enviavam seus dissidentes aos gulags”, ela concluiu.
Augusto Nunes, que foi diretor de Redação do jornal O Estado de S. Paulo e já publicou livros sobre a história da imprensa brasileira, não participou do programa naquele dia.
Colaboraram Bianca Bortolon, Ethel Rudnitzki, João Barbosa e Milena Mangabeira.