(Méuri Elle/Aos Fatos)

🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Outubro de 2023. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Como crianças são usadas politicamente para gerar desinformação e pânico moral nas redes

Por Bianca Bortolon

20 de outubro de 2023, 16h07

No último dia 13, a conta oficial do Estado de Israel no X (ex-Twitter) acusou o grupo extremista islâmico Hamas de compartilhar imagens de um boneco como se mostrassem uma criança vítima dos bombardeios ocorridos na Faixa de Gaza. Agências de checagem internacionais confirmaram que a gravação apontada como falsa era, porém, verdadeira: mostrava, sim, uma criança morta nos confrontos. Mesmo assim, a publicação segue no ar, com cerca de 1,3 milhão de visualizações.

Desde o início do conflito no Oriente Médio, as redes sociais foram tomadas por histórias como essa, que usam imagens de crianças para reforçar a polarização entre palestinos e israelenses. Os conteúdos, por vezes desinformativos, por vezes não verificáveis, ecoam denúncias reais feitas por autoridades como a ONU (Organização das Nações Unidas), que contabiliza ao menos 1.500 crianças mortas na região da Faixa de Gaza até a última quarta (18).

  • Em levantamento anterior, Aos Fatos mostrou que a alegação sobre um suposto massacre de 40 bebês comandado pelo Hamas em uma comunidade rural no sul de Israel é uma das publicações mais virais que circulava no X;
  • A informação não foi confirmada pelo Exército de Israel nem pelo porta-voz do Ministério de Relações Exteriores do país;
  • Outro conteúdo viral é o vídeo que supostamente mostra crianças israelenses presas em jaulas por membros do grupo extremista islâmico. Não há elementos suficientes que corroborem a alegação, e agências de checagem apontam inconsistências na gravação;
  • Também segue em circulação alegações falsas já desmentidas, como a que atribui a um militante do Hamas uma foto em que um homem aparece deitado ao lado de um bebê com explosivos amarrados ao corpo.

Esta, no entanto, não é a primeira vez que a imagem de crianças é explorada para gerar pânico e disseminar desinformação nas redes. Aos Fatos ouviu especialistas para explicar por que isso ocorre, em quais outros contextos a estratégia já foi usada e quais são as eventuais violações aos direitos das crianças e adolescentes que têm imagens expostas.

  1. Por que crianças são usadas para gerar desinformação em conflitos?
  2. Quais são os perigos em divulgar imagens de crianças e adolescentes vítimas de conflitos?
  3. Quais são as possíveis violações aos direitos de crianças e adolescentes?
  4. Em quais contextos a estratégia já foi usada?
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1. POR QUE CRIANÇAS SÃO USADAS PARA GERAR DESINFORMAÇÃO EM CONFLITOS?

Em conflitos e disputas políticas, não é incomum que crianças e adolescentes se tornem alvos de desinformação. Para Pedro Mendes, advogado do Instituto Alana, que atua para garantir proteção dessas faixas etárias, um dos motivos para o fenômeno é a facilidade de mobilizar a opinião pública a partir de imagens de jovens.

De acordo com ele, isso se dá pela noção presente no imaginário social de que crianças e adolescentes são particularmente vulneráveis e merecem tutela especial.

“Em uma situação de conflito como o que estamos vivenciando, ocorre o oposto disso, que é a extrema desproteção. [A mobilização] vem dessa noção de que existe algo muito errado e que essas crianças deveriam estar sendo protegidas em primeiro lugar”, afirmou ele ao Aos Fatos.

Mas, em vez de pautar a discussão pela lógica da proteção de direitos, muitas vezes as redes sociais se guiam pela disseminação de conteúdos que exploram comercialmente o sofrimento e garantem o engajamento pelo choque. Na avaliação da psicóloga Juliana Cunha, diretora da Safernet, usuários que produzem conteúdos desinformativos ou sensacionalistas se aproveitam da indignação gerada pelas imagens para gerar comoção e fazer viralizar conteúdos.

A jornalista e consultora da ANDI (Agência de Notícias dos Direitos da Infância) Maria Carolina Trevisan afirma que o uso de imagens de crianças em situação de vulnerabilidade só é aceitável quando é o único meio de denúncia de uma situação recorrente e muitas vezes ignorada. Ela cita como exemplo a foto do menino sírio morto em praia da Turquia que virou símbolo da crise migratória em 2015.

“É possível pensar em maneiras de fazer com que a audiência possa enxergar isso e formar a sua própria opinião sem ser sensacionalista, sem descuidar e sem contribuir com o discurso de ódio”, afirmou a jornalista.

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2. QUAIS SÃO OS PERIGOS EM DIVULGAR IMAGENS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DE CONFLITOS?

Especialistas consultados por Aos Fatos apontam uma série de problemas em consequência da divulgação de imagens de crianças e adolescentes em situações como a do conflito entre Israel e Hamas. Elas vão desde danos psicológicos até a possibilidade de criação de novos ciclos de violência:

  • Segundo Pedro Mendes, ao serem identificados em imagens, jovens podem ter suas identidades expostas, o que permite que sejam localizados e estejam mais vulneráveis a novos ataques;
  • Além disso, ser constantemente reconhecida por uma imagem pessoal em situação de vulnerabilidade pode ser prejudicial para a saúde mental da vítima. A OMS (A Organização Mundial da Saúde) inclui o dano psicológico como uma das implicações da violência;
  • Bruna Barbieri, vice-presidente do IBDFAM-MA (Instituto Brasileiro de Direito de Família do Maranhão), lembra que a cada vez que uma imagem ou notícia constrangedora, íntima ou sem autorização do titular é compartilhada, a violência contra ele se renova;
  • Outra ameaça envolve a criação de novos ciclos de agressão. “Qualquer notícia relacionada a violências envolvendo crianças pode ser um gatilho para um acontecimento offline, um linchamento, ou mesmo acirramento do conflito”, disse Juliana Cunha.
  • Por fim, há também o risco para a saúde mental de quem visualiza esses tipos de conteúdos. Muitas vezes, uma imagem ou notícia pode ser perturbadora o bastante para persistir na memória de quem a consome e causar danos psíquicos, em especial a crianças e adolescentes.

Cuidados. A principal recomendação dos especialistas consultados por Aos Fatos é simples: antes de compartilhar, busque a fonte da imagem. “Se é uma imagem muito impactante, o que a gente recomenda, apesar de ser difícil, é um ceticismo emocional”, sugere Juliana Cunha. Para isso, é importante acompanhar o trabalho da imprensa e se familiarizar com o uso de ferramentas de busca reversa, como o Google Imagens, que ajudam a identificar a origem da imagem.

Maria Carolina Trevisan aconselha também ter em mente que há muitos interesses por trás de informações divulgadas e que é preciso ter cuidado para que elas não sejam usadas para disseminar discurso de ódio ou pânico moral.

3. QUAIS AS POSSÍVEIS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES?

O uso de imagens de indivíduos com menos de 18 anos sem a devida autorização de seus representantes é ilegal no Brasil. Esse direito é resguardado pelo artigo 100 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), que determina a proteção à intimidade, o direito à imagem e a reserva da vida privada.

Card com o artigo 100 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que determina a proteção à intimidade, o direito à imagem e a reserva da vida privada.(Méuri Elle/Aos Fatos)

A LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) também caracteriza a imagem como uma informação pessoal que deve ser protegida contra uso indevido. Em se tratando de crianças e adolescentes, os dados pessoais só podem ser usados para atender ao seu melhor interesse e com consentimento de um responsável.

O direito à indenização é assegurado a qualquer pessoa que se sinta lesada pela forma como sua imagem foi usada, segundo a Constituição Federal.

“A violação do direito à imagem, por tratar de direito fundamental, tem como consequência a reparação aos danos materiais e morais ocasionados”, afirma Bruna Barbieri. Caso os responsáveis legais não o façam, as crianças e adolescentes têm o prazo de três anos após atingirem a maioridade para ajuizar uma ação.

Também de acordo com a Constituição, o Ministério Público tem o dever de zelar pela proteção da infância. Isso se aplica mesmo em caso de imagens registradas em outros países que tenham sido publicadas em veículos nacionais.

“O Brasil é signatário de tratados internacionais de proteção à infância. Isso significa que a proteção de crianças e adolescentes, em respeito à Doutrina da Proteção Integral, excede os limites da territorialidade, porque existe um compromisso internacional de proteção”, argumenta Barbieri.

No caso de informações publicadas em redes sociais, o STJ (Supremo Tribunal de Justiça) entende que os provedores de aplicações de internet devem retirar conteúdos ofensivos a crianças e adolescentes assim que notificados e independentemente de ordem judicial. Caso isso não ocorra, esses provedores se tornam responsáveis por indenizar as vítimas.

Pedro Mendes, no entanto, reforça que este é um mecanismo de responsabilização pós-dano e que muitas questões poderiam ser evitadas caso as plataformas priorizassem uma arquitetura favorável à proteção de crianças e adolescentes.

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4. EM QUAIS CONTEXTOS A ESTRATÉGIA JÁ FOI USADA?

O uso da imagem de crianças para gerar desinformação em conflitos não é novidade. No início da guerra entre Rússia e Ucrânia, publicações compartilharam, por exemplo, cenas de um filme que mostra uma criança chorando como se fosse um registro real do conflito. Também circularam na época imagens fora de contexto, como a foto de crianças que observam veículos militares. O registro, que circula ao menos desde 2016, também foi tratado como uma imagem do conflito na Europa.

Mas histórias sobre jovens não são usadas para manipular usuários apenas em situações de conflito bélico. Há diversos exemplos no Brasil de peças de desinformação criadas para gerar pânico moral e acirrar a polarização política:

  • Logo após os atos golpistas de 8 de janeiro, passaram a circular nas redes falsos relatos de crianças presas pela Polícia Federal. Nessa época, usuários compartilharam fora de contexto uma foto antiga que mostrava um menino deitado sob uma bandeira do Brasil;
  • Recentemente, posts também tentaram disseminar o pânico ao alegar que um motorista muçulmano fora detido no Uzbequistão por transportar 25 crianças que seriam vítimas de tráfico sexual, o que é falso. As peças foram usadas para promover o filme “Som da Liberdade”, apontado como veículo de teorias conspiratórias;
  • Outros exemplos famosos de mentiras criadas para gerar pânico moral são a mamadeira erótica, a suposta cartilha do Ministério da Saúde que erotiza e ensina crianças a usar crack, o material da Prefeitura de Fortaleza que incentivaria a pedofilia e um falso projeto de lei para legalização da pedofilia;
  • Outro caso célebre é o da senadora Damares Alves (Republicanos-DF) que, durante um culto realizado no período eleitoral em 2022, mencionou — sem apresentar qualquer prova — a existência de casos de exploração sexual de crianças na Ilha de Marajó (PA);
  • Para corroborar a fala da então candidata, usuários passaram a compartilhar cenas de abuso infantil que supostamente teriam ocorrido na região, o que não era verdade;
  • Questionada posteriormente, Damares disse ter ouvido a história “nas ruas”. Em setembro deste ano, o MPF (Ministério Público Federal) ajuizou uma ação civil pública contra a União e a senadora, afirmando que as declarações foram usadas como palanque político e que continham “falsas informações sensacionalistas”.

Referências:
1. India Today
2. UOL
3. Aos Fatos (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12)
4. Maldita
5. G1 (1, 2)
6. OMS
7. Planalto (1, 2)
8. STJ
9. YouTube (Aos Fatos)
10. CNN Brasil

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