🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Agosto de 2023. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Projeto sobre remuneração ao jornalismo pode promover desinformadores

Por Tai Nalon

11 de agosto de 2023, 09h15

Como muitas boas intenções propostas de afogadilho, o PL 2.370/2019, que pretende obrigar plataformas digitais a remunerar artistas e empresas jornalísticas, tem elementos que podem de uma só vez prejudicar pequenos veículos e promover desinformadores profissionais a jornalistas. Ao privilegiar quantidade na falta de uma métrica para qualidade, pode virar o PL do Clickbait.

Dentre os problemas do texto estão as condições sugeridas como critério para o pagamento às organizações jornalísticas. Nas várias versões do projeto que circularam em Brasília nesta semana, o relator do PL na Câmara, deputado Elmar Nascimento (União-BA), elenca as três principais condicionantes para o cálculo dos valores que deverão ser destinados à imprensa. De forma cumulativa, nesta ordem, são:

  • o volume de conteúdo jornalístico original produzido;
  • a audiência, nas plataformas, dos conteúdos jornalísticos produzidos pela empresa;
  • o investimento em jornalismo aferido pelo número de profissionais do jornalismo regularmente contratados pela empresa, registrados em folha de pagamento e submetidos à Rais (Relação Anual de Informações Sociais).

Esta newsletter trata dos dois primeiros pontos, mas é necessário frisar que o terceiro de pronto beneficia empresas com maior capacidade econômica, que também são as mesmas que têm acesso a subsídios e publicidade do governo, crédito facilitado, patrimônio acumulado, vida resolvida. Sabe-se bem de quais CNPJs estamos falando aqui.

Para entender o que é volume de produção original, é necessário entender o que se está produzindo. O projeto entende como conteúdo jornalístico aquele “de cunho eminentemente informativo, que trata de fatos, opiniões, eventos e acontecimentos em geral de interesse público, independentemente do tipo ou formato, observados os princípios e padrões éticos de conduta no exercício da atividade de jornalismo”.

Não fica claro, em qualquer momento, quais são os padrões éticos para a conduta de um veículo jornalístico. Profissão não regulada, pode ser exercida, com justiça, por profissionais de diversas origens e qualificações, sujeitos a parâmetros éticos divergentes. Até porque ética não é um conceito objetivo, são igualmente aceitáveis o veículo que produz uma reportagem com 20 fontes em uma semana e o veículo que produz 20 reportagens com uma fonte no mesmo período. Porém, na letra da lei, um deles vai sair em vantagem.

É possível também estender a corda e dizer que veículos que publicam desinformação produzem conteúdo jornalístico original. Primeiro porque eles se dizem jornalistas, e não há direito que os iniba de dizer o contrário. Segundo, porque a primeira mentira do mundo é tão original quanto a verdade. E também porque, no ethos das redes sociais, não há diferença entre informadores e desinformadores: são todos, em geral, apresentados a interfaces técnicas semelhantes de distribuição de conteúdo.

O problema reside no alcance do material dito jornalístico e dito original — e aí entramos também na questão do tamanho da audiência. Eu poderia problematizar todos os veículos que publicam jornalismo declaratório para fins de volume, mas resolvi dar uma olhada nos dados de concorrência apresentados pela ferramenta gratuita da SimilarWeb a partir de uma lista de sites hiperpartidários populares em grupos de WhatsApp e Telegram monitorados pelo Radar Aos Fatos.

Todos eles, não cumulativamente, já tiveram conteúdos apontados como desinformação pelo Aos Fatos e já foram considerados pelas cortes superiores do Judiciário veiculadores de fake news. Também se autodeclaram jornalísticos.

  • Dois sites disputam o maior naco de audiência, a depender da métrica: Terra Brasil Notícias e Jovem Pan;
  • O Terra Brasil Notícias, que já teve mais de dez publicações desmentidas pelo Aos Fatos desde 2020 e foi abastecido por verba parlamentar entre novembro de 2022 e março deste ano, acumulou 32 milhões de páginas vistas em julho;
  • O site da Jovem Pan, investigada pelo Ministério Público Federal por incitação de atos golpistas e veiculação de desinformação, teve 17 milhões de visitas no mesmo período.

A análise da SimilarWeb elenca sites semelhantes e, por isso, traz um panorama importante para entender o consumo de notícias, sejam elas falsas ou legítimas, no ambiente digital: prova a desproporcional contribuição das plataformas de redes sociais ao distribuir seus conteúdos.

A título de comparação, consultei a participação das redes sociais na distribuição do maior portal de notícias do país, a Globo.com, e seus assemelhados conforme a SimilarWeb. Se a fatia de audiência via redes sociais do Terra Brasil Notícias corresponde a 55,98% (cerca de 8 milhões de visitas), a da Globo.com é de 4,3% (cerca de 30 milhões). E você pode até argumentar que a influência das redes é menor porque UOL, Estadão e afins são marcas consolidadas, mas esses números provam que sites como Revista Oeste e Jornal da Cidade Online só existem porque as redes sociais decidiram pela sua relevância e asseguram sua distribuição.

Da mesma forma, se a obrigação de medir audiência for atribuída às plataformas, já que os números gerados por elas rodarão o taxímetro, restará saber como será feita sua auditagem. Seria uma chance de as plataformas privilegiarem conteúdos de qualidade mensurável para reduzir gastos desnecessários. No entanto, desconheço quais delas se permitem sentar tempo suficiente à mesa de negociações para discutir parâmetros sérios. No Canadá, por exemplo, preferem banir de seus domínios links para notícias.

Desnecessário dizer que, para um veículo como o Aos Fatos, tais números são intangíveis. A casa opera com outro tipo de medição de impacto. Nosso trabalho subsidia decisões do STF, é fonte de produção científica, pauta audiências públicas e repercute no exterior. O impacto de um projeto de lei mal elaborado pode tornar este tipo de trabalho ainda mais necessário enquanto amplia a desigualdade de recursos entre o jornalismo feito por nós e o conteúdo de quem desinforma e diz fazer jornalismo.

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