Não é verdade que variantes do Sars-Cov-2 causem danos graves ao fígado, como a hepatite medicamentosa, como alega o oftalmologista e deputado estadual potiguar Albert Dickson (Pros) em um vídeo que circula nas redes sociais para defender um "tratamento precoce" que não existe (veja aqui). Até o momento, não há evidências que relacionem complicações hepáticas à Covid-19, que ataca principalmente os pulmões.
O vídeo ganhou tração nas redes após reportagem do jornal O Estado de S.Paulo noticiar que, em São Paulo, ao menos cinco pessoas que fizeram uso de drogas sem eficácia comprovada contra a Covid-19 deram entrada na fila de transplante de fígado e outras três morreram de hepatite medicamentosa.
Publicações com o vídeo enganoso contavam com ao menos 22.072 compartilhamentos no Facebook nesta terça-feira (13) e foram marcadas com o selo FALSO na ferramenta de verificação da rede social (veja como funciona).
Estão chegando [pacientes com hepatite] por causa da nova cepa. Aí estão dizendo que é ivermectina. Os pacientes estão pegando hepatite não é por conta do medicamento e sim por conta da nova cepa. A nova cepa atinge fígado.
Em entrevista ao jornalista Fernando Beteti, o oftalmologista e deputado estadual do Rio Grande do Norte Albert Dickson (Pros) engana ao afirmar que a causa de complicações no fígado relatadas em hospitais pelo país seriam as variantes do novo coronavírus, mas isso é falso. Os casos divulgados até o momento pela imprensa relacionam-se mais ao uso de drogas sem eficácia comprovada contra a Covid-19, como a ivermectina e a azitromicina, defendidas pelo médico no vídeo checado. Até o momento, não há indícios de que as novas cepas tenham impacto maior no fígado.
Além disso, nenhum estudo científico sólido concluiu que haja algum tratamento precoce efetivo contra Covid-19, como Aos Fatos já mostrou. A ivermectina, por exemplo, necessita de mais pesquisas e não é indicada nem pela própria fabricante para tratar Covid-19. Em 31 de março, a OMS (Organização Mundial da Saúde) disse que o vermífugo deveria ser aplicado somente em pesquisas até que dados provem seu potencial contra a doença.
Fígado. Vitor Ribeiro Paes, médico do departamento de patologia da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), comenta que o principal alvo do Sars-Cov-2 é o conjunto de células pulmonares. “Ele [o Sars-CoV-2] não é um vírus hepatotrópico [que tem como principal alvo o fígado] como os da febre amarela, da dengue e da hepatite. Esses três vírus primordialmente atacam o fígado”, exemplifica.
Por mais que não esteja descartada, a ação direta do Sars-CoV-2 em outras células ocorre em um grau muito menor do que no pulmão, segundo o especialista, que ressalta ainda que lesões no fígado costumam aparecer mais em pacientes em estado grave da Covid-19. Porém, isso não é resultado das novas cepas, mas de um processo inflamatório intenso do corpo, comum também em outras doenças que se agravam, e que pode lesionar outros órgãos, como o coração e os rins.
A falta de oxigênio no organismo também pode ser nociva para a pessoa com Covid-19 grave. “O fígado usa bastante oxigênio para metabolizar substâncias tóxicas. Se o paciente não tiver oxigênio suficiente, o fígado não vai funcionar tão bem”, explicou Paes.
Hepatite. Na peça de desinformação, o médico e deputado Albert Dickson levanta a hipótese de confusão em diagnósticos. Ele diz que médicos poderiam estar confundindo uma hepatite supostamente causada pelo vírus com a medicamentosa. Especialistas ouvidos por Aos Fatos, entretanto, refutam essa possibilidade, pois por meio de biópsias seria possível identificar exatamente a causa da complicação no órgão.
Em março, o Estadão mostrou que ao menos cinco pessoas em São Paulo entraram para a fila de transplante por apresentarem hepatite medicamentosa. Todas elas haviam sido diagnosticadas com Covid-19 e tomado ivermectina e antibióticos como “tratamento precoce”. Outras três pessoas na mesma situação morreram da doença no fígado.
Os médicos que acompanham os casos disseram ao jornal que as biópsias apontavam que a origem do problema seria medicamentoso, e não complicações da própria Covid-19. “A Covid pode atacar o órgão, mas de uma forma diferente. Ela causa pequenos trombos (coágulos) nos vasos. Esse padrão que encontramos é de lesão por medicamentos”, disse ao Estadão Ilka Boin, professora da Unidade de Transplantes Hepáticos do Hospital das Clínicas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
O Aos Fatos entrou em contato com o deputado Albert Dickson, mas não obteve retorno.
A peça de desinformação também foi checada por Estadão Verifica e Agência Lupa.
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