🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Agosto de 2023. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Consulta do CGI.br sobre regulação de plataformas mostra posições de big techs, governo e sociedade

Por Alexandre Aragão

9 de agosto de 2023, 19h11

O CGI.br (Comitê Gestor da Internet) se dispôs a executar uma tarefa que o governo Lula (PT), Orlando Silva (PC do B-SP) e Arthur Lira (PP-AL) até agora não conseguiram. A partir de uma consulta, o comitê busca construir convergência em relação ao principal ponto de disputa do PL 2.630/2020, o “PL das Fake News”.

A possibilidade de criação de uma agência reguladora de plataformas digitais mobiliza políticos, big techs, atores da sociedade civil e agências que já existem — e que permanecem convenientemente neutras em público, enquanto vislumbram uma oportunidade para expandir poderes.

Alvo das ações de lobby das plataformas de que Lira reclamou, o impasse em torno do arranjo regulatório freou a tramitação do PL 2.630/2020 e impulsionou o fatiamento do trecho sobre remuneração ao jornalismo, que virou um jabuti no redivivo PL 2.370/2019, sobre direitos autorais.

Nas redes, o “PL das Fake News” virou “PL da Censura”, e a possibilidade de uma nova agência reguladora viralizou como um suposto “Ministério da Verdade” de Lula e do PT. Mentiras em ressonância com o posicionamento das plataformas, que advogam para evitar o aumento de suas responsabilidades e incentivaram influenciadores a postar conteúdos favoráveis à visão delas, ainda que distorcidos.

“A gente quer dar sugestões em relação a essas questões e, particularmente, a essa que você colocou, a questão da arquitetura regulatória”, disse-me o engenheiro Henrique Faulhaber, coordenador do grupo de trabalho sobre regulação de plataformas do CGI.br.

A Plataforma de hoje se debruça sobre os argumentos usados pelas principais partes envolvidas na discussão, reunidos pelo CGI.br.

EM 5 PONTOS:

  • A consulta do CGI.br questionou os principais envolvidos sobre quem regular, o que regular e como regular;
  • Seja qual for o arranjo regulatório escolhido, há consenso sobre a necessidade de manter prerrogativas de agências que já atuam na economia digital;
  • A CGU diz que “não há uma estrutura específica no Brasil com essa característica transversal” e defende a criação de um órgão;
  • A formulação de políticas públicas passa pelo diálogo, mas nem todos têm o mesmo poder para transmutar argumentos em votos;
  • Principal questão do ponto de vista de política pública, o impasse sobre o arranjo regulatório é apenas um detalhe na disputa política do Legislativo.

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A consulta do CGI.br foi dividida em três grandes eixos: quem regular, o que regular e como regular. As 43 perguntas abrangem temas desde a definição de “plataforma digital” até a criação de uma nova agência.

“A consulta foi bem sucedida porque deu tempo para as pessoas estruturarem suas opiniões, e a gente não pode, ao sumarizar, perder essa riqueza”, explicou Faulhaber.

  • Representantes das big techs, como Câmara-e.net (Câmara Brasileira de Economia Digital) e Alai (Associação Latino-Americana de Internet), dizem que faltam análises de impacto regulatório para concluir se há necessidade de um novo órgão;
  • Organizações da sociedade civil que reúnem pesquisadores e ativistas, como a Coalizão Direitos na Rede e o Instituto Alana, defendem que a dotação de orçamento próprio e de corpo técnico qualificado é fundamental para a aplicação da lei;
  • Um consenso que emerge dos posicionamentos é de que, seja qual for o arranjo regulatório escolhido, é necessário manter as prerrogativas de agências que já atuam na economia digital;
  • Empresas, representantes da sociedade civil e do governo concordam que Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) e ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados), entre outras, devem ter participação.

“Tem um componente que vários defendem e está claro na consulta, o papel importante da autorregulação”, disse Faulhaber. “Quem consegue atuar de uma forma mais efetiva sobre os efeitos colaterais do uso das redes, das plataformas, são as próprias plataformas.”

“O conceito da autorregulação regulada é uma tendência que já vem sendo falada há muito tempo, mas que talvez seja o que vai ser implementado”, ele afirma.

  • Esse é o principal posicionamento da Câmara-e.net, entidade de representação das big techs que assumiu a autoria de um panfleto apócrifo distribuído a parlamentares evangélicos com a mentira de que o “PL das Fake News” poderia resultar em censura à Bíblia;
  • Segundo a contribuição da associação ao CGI.br, “a autorregulação regulada se apresenta como a melhor solução, pois, a partir do estabelecimento de princípios direcionadores pelo órgão de supervisão com compromissos estabelecidos pelas plataformas, se mostra um mecanismo eficaz”.
  • Já a Abranet (Associação Brasileira de Internet), que entre os mais de 300 associados possui empresas de setores como telecom, comércio eletrônico e fintechs, defende que “uma regulação de plataformas digitais que se pretenda apta a endereçar efetivamente os desafios da economia digital não se encaixa exclusivamente na competência de nenhuma das autoridades regulatórias já instituídas”.
  • Para a associação, a nova autoridade regulatória deveria ter um conselho ou comitê composto “por representantes do setor público, privado, sociedade civil e academia”.

Essa linha de argumentação se aproxima mais das utilizadas por entidades do terceiro setor.

  • O Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), por exemplo, defende que “nenhuma das instituições existentes contempla de maneira satisfatória as competências e expertise necessárias para a regulação de mercados digitais”;
  • A Coalizão Direitos na Rede, que reúne mais de 50 organizações acadêmicas e da sociedade civil em defesa dos direitos digitais, afirma que “um ponto central de êxito de qualquer regulação dedicada às plataformas digitais está na criação de um órgão específico, dotado de autonomia funcional, financeira e administrativa, associado a um conselho multissetorial com capacidades deliberativas”.

É também o que defende a CGU (Controladoria-Geral da União), segundo a qual “não há uma estrutura específica no Brasil com essa característica transversal”. De acordo com a contribuição do órgão à consulta do CGI.br, “é necessária a criação de uma agência específica cujo papel principal seja o de convocar e coordenar o trabalho colaborativo de diversos atores do governo, do empresariado, da sociedade civil, da academia e de organismos multilaterais”.

O próprio CGI.br é parte interessada, apesar de “não ter característica de agência”, segundo Faulhaber. “O CGI está mais vinculado a estudos, a um diálogo multissetorial, do que à aplicação da lei. A nossa posição consensual é termos um papel na arquitetura regulatória, mas a posição de muitos de nós, e eu me incluo, é que a gente tem um papel que está limitado pelo nosso escopo, pela nossa constituição e pelo nosso DNA.”

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Apontada como possível responsável por regular as plataformas, o que gerou críticas públicas, a Anatel não contribuiu com a consulta. Mas a agência possui representante no grupo de trabalho sobre a regulação de plataformas e assento no CGI.br.

Outra interessada no tema, a ANPD defendeu que “independentemente da decisão que vier a ser tomada sobre a abordagem regulatória e sobre o órgão regulador, devem ser preservadas as competências da ANPD relativas à proteção de dados pessoais, incluindo as de regulamentação, fiscalização e aplicação de sanções administrativas, nos termos da LGPD”.

A ANPD “talvez seja a agência que tenha maior abrangência, porque a privacidade, de fato, também é multissetorial”, analisa Faulhaber. “Quando ela reforça o fato de que o cerne da questão da privacidade deve ser tratado como já é tratado pela ANPD, vai nessa direção.”

A formulação de políticas públicas baseadas em evidências passa pelo diálogo, mas nem todos os envolvidos têm o mesmo poder para transmutar argumentos em votos no Congresso. A discussão sobre o PL 2.630/2020 afeta as empresas mais poderosas do mundo, como o Aos Fatos vem mostrando desde março, quando publicamos que o “debate nos Três Poderes sobre regulação das redes mobiliza ações de lobby do Google à Globo”.

Aqui, cabe um parênteses: desde o início, nossa cobertura é transparente também em relação aos interesses do próprio Aos Fatos, que em abril divulgou propostas para aperfeiçoar a regulação de redes, em conjunto com organizações signatárias do código de ética e conduta da IFCN (International Fact-Checking Network).

A Câmara chegou a aprovar o regime de urgência do projeto. No dia seguinte, posts de deputados do Republicanos foram inundados com comentários que traziam expressões como “vergonha”, “traidores” e “decepção”. “O telefone aqui não parou de tocar hoje”, relatou ao Aos Fatos a assessora jurídica de um deles.

Nas redes, o PL 2.630/2020 virou “PL da Censura” com o apoio de empresas como o YouTube, que enviou aos criadores brasileiros um email repleto de desinformação, pedindo que publicassem vídeos alinhados ao ponto de vista do Google.

“Já pensou se você gosta de futebol e o governo decide que futebol não é bom para você e começa a remover todos os canais e conteúdos de futebol que existem na internet?”, questionou o dono de um canal do YouTube especializado em marketing digital. A possibilidade de uma agência reguladora ser criada viralizou como um possível “Ministério da Verdade” por iniciativa de Lula e do PT.

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Apesar de ser a principal questão do ponto de vista de política pública, o impasse em relação ao arranjo regulatório é apenas um detalhe na disputa política do Legislativo. Não à toa, os trechos do “PL das Fake News” sobre direitos autorais e remuneração ao jornalismo foram fatiados e passaram a tramitar no PL 2.370/2019, apresentado originalmente para tratar apenas de direitos autorais.

A Câmara voltou do recesso ainda com expectativas de festa julina: vai votar — é mentira. Mesmo os assuntos retirados do “PL das Fake News” e que tendiam a ser mais consensuais ainda despertam fortes paixões.

Então, ficamos assim: no que diz respeito à regulação de plataformas digitais, nem o que é vendido como menos difícil tem tido facilidade para ser aprovado na Câmara. Que dirá um assunto complexo como a estrutura regulatória em si. Isso que ainda há pela frente o Senado Federal.

O CGI.br pretende apresentar uma proposta resultante da consulta em até dois meses. É tempo de sobra já que, pelo andar da carruagem, é baixa a probabilidade de o projeto ser votado até lá. Lobistas sabem bem: o percentual de projetos que viram lei é mínimo. Estratégias defensivas, como protelar votações indefinidamente, costumam ter sucesso.

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