Com a aprovação do regime de urgência no último dia 25, os ventos pareciam favoráveis ao governo para a retomada das discussões do PL 2.630/2020, conhecido como “PL das Fake News”. Em um período de uma semana, porém, a maré virou e obrigou o relator do projeto, o deputado Orlando Silva (PC do B-SP), a pedir o adiamento da votação para evitar que a proposta fosse derrotada no plenário.
Considerado por entidades defensoras dos direitos digitais como essencial para barrar a disseminação em massa de desinformação, mensagens de ódio e estímulo à violência nas redes sociais, o projeto propõe a regulação das plataformas digitais, aumentando a responsabilidade das empresas sobre os conteúdos postados por usuários.
Aprovado pelo Senado em 2020, o projeto está em discussão na Câmara há três anos. No ano passado, sob pressão do governo de Jair Bolsonaro (PL), a Casa rejeitou o regime de urgência, mecanismo que acelera a tramitação da proposta por levá-la diretamente ao plenário, sem passar por comissões.
Com a chegada do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao poder, os ataques golpistas de 8 de janeiro e os casos de violência nas escolas, a discussão voltou à ordem do dia. A reação das plataformas e de grupos de direita, porém, conseguiu reverter o cenário favorável à aprovação. Agora, Orlando Silva corre contra o tempo para fazer novos ajustes em seu relatório enquanto aliados do governo tentam virar votos em busca de uma aprovação que ainda é incerta.
A seguir, Aos Fatos explica os pontos-chave da escalada da crise que culminou no adiamento da votação e quais as estratégias do governo para tentar evitar um novo revés:
- Fragilidade na base de apoio do governo
- Investida contra os votos evangélicos
- Tentativa de ligar o projeto à censura
- Onda de ataques ao Republicanos
- Campanha das plataformas
- O contra-ataque
1. FRAGILIDADE NA BASE DE APOIO DO GOVERNO
Após a derrota do ano passado, a aprovação do regime de urgência para acelerar a tramitação do projeto foi encarada com otimismo por seus defensores. Entretanto, mesmo diante do cenário de comoção em torno dos ataques às escolas, a aprovação recebeu menos votos favoráveis do que tinha obtido em 2022 e só se concretizou por uma manobra regimental do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
- Para reduzir a quantidade de votos necessários para a aprovação, Lira colocou em votação no último dia 25 um pedido de urgência comum, que exige maioria simples — ou seja, metade mais um dos parlamentares presentes. Isso permitiu que a tramitação especial fosse aprovada por 238 votos contra 192;
- Na derrota do ano passado, foi votada uma “urgência urgentíssima”, que requer maioria absoluta — mais da metade do total de 513 deputados eleitos. Por isso, a urgência não foi aprovada, apesar do placar de 249 votos favoráveis e 207 contrários.
Apenas duas legendas de oposição instruíram seus parlamentares a votarem contra a urgência do texto no último dia 25: PL e Novo. O placar, porém, mostrou que a orientação das lideranças do chamado Centrão não se converteu em votos para o governo. O União Brasil, sigla do ministro das Comunicações, Juscelino Filho, deu 28 votos contrários e 19 a favor. Já o partido de Lira, que tem se empenhado pela aprovação, se posicionou majoritariamente contra a urgência, por 21 a 18.
O resultado demonstra uma insatisfação dos parlamentares com a distribuição de cargos e emendas pelo Executivo. A “infidelidade” do Centrão a Lula voltou a se repetir na última quarta-feira (3), quando a Câmara impôs a primeira derrota ao governo ao derrubar mudanças feitas no Marco do Saneamento.
2. CERCO AOS EVANGÉLICOS
Às vésperas da votação do regime de urgência, começaram a circular nas redes peças de desinformação que afirmavam que o PL 2.630 iria censurar versículos da Bíblia.
De acordo com o Metrópoles, panfletos sem assinatura que faziam essa alegação foram distribuídos a parlamentares da bancada evangélica, que teriam atribuído os impressos à Meta — dona de Facebook, Instagram e WhatsApp. A empresa negou, mas a camara-e.net (Câmara Brasileira de Economia Digital), entidade que reúne diversas plataformas, inclusive a Meta, assumiu a autoria da iniciativa.
O argumento de que a publicação de trechos da Bíblia estava em risco defendia que certos versículos poderiam ser interpretados como discurso de ódio ou estímulo à violência e, por isso, corriam o risco de ser banidos das redes. A interpretação, no entanto, omitia o parágrafo da lei que garantia sua não aplicação a conteúdo religioso.
O impacto dessa desinformação foi amplificado por posts do ex-procurador e atual deputado Deltan Dallagnol (Podemos-PR). O ex-ministro e agora senador Sergio Moro (União-PR) também se engajou em ações que associavam o PL 2.630 a ameaças à liberdade religiosa. Embora tenham começado a circular antes da votação da urgência, as peças ganharam força após o dia 25 e impactaram membros da bancada evangélica que antes estavam dispostos a apoiar o projeto.
A investida para reverter votos evangélicos surtiu efeito. Nos dias seguintes à votação da urgência, Orlando Silva se reuniu duas vezes com representantes do grupo para esclarecer que o texto não iria censurar a Bíblia e prometeu deixar ainda mais explícita na redação do parecer que a liberdade religiosa estava garantida.
A desconfiança, porém, já estava implantada, e apesar de um grupo de religiosos progressistas ter declarado apoio ao projeto, a Frente Parlamentar Evangélica orientou voto contra a matéria.
3. TENTATIVA DE LIGAR O PROJETO À CENSURA
Um dos principais argumentos usados para atacar o projeto é de que se trata de uma ameaça à liberdade de expressão e uma tentativa do governo Lula de censurar as redes sociais. Versões mais extremistas afirmam ainda que o objetivo é calar a oposição e implantar uma ditadura no país.
Entre os pontos do texto usados para sustentar essa argumentação estava a previsão de criação de uma entidade autônoma de supervisão, órgão que ficaria responsável por fiscalizar a aplicação da lei. Na sessão que aprovou o regime de urgência, deputados bolsonaristas fizeram discursos em plenário no qual chamaram a entidade de “Ministério da Verdade” — uma referência ao romance “1984”, de George Orwell.
A expressão já circulava nas redes acompanhada de comentários que tratavam o PL 2.630 como o “PL da Censura”, mas seu uso foi reforçado durante um almoço de representantes das plataformas com parlamentares da FPE (Frente Parlamentar do Empreendedorismo) horas antes da votação da urgência. Segundo o colunista do UOL Reinaldo Azevedo, a expressão foi evocada na ocasião por uma representante da Meta.
A criação de uma entidade autônoma multissetorial que reunisse representantes da sociedade civil e até das próprias plataformas era uma reivindicação de diversas organizações independentes, como a Coalizão Direitos na Rede. A entidade teria que ser vinculada ao poder público para ter poder de aplicar punições, mas a ideia original é que sua composição lhe concedesse autonomia em relação ao governo.
Mas a pecha de “Ministério da Verdade” colou entre alguns parlamentares que haviam apoiado a votação do regime de urgência, o que obrigou o relator a reformular o texto para retirar a previsão de criação da entidade autônoma de supervisão.
4. ONDA DE ATAQUES A DEPUTADOS
Após a aprovação da urgência para a tramitação do PL 2.630, a pressão aumentou nas redes sociais: o número de anúncios políticos atacando a proposta quintuplicou no Facebook e no Instagram. No WhatsApp, o Aos Fatos identificou que todas as mais de cem correntes que circulavam sobre o tema em grupos políticos eram contrárias ao projeto.
Das 113 mensagens no WhatsApp contra a regulação, 55 incentivavam usuários a pressionar parlamentares marcando-os em posts nas redes, enviando e-mails ou telefonando aos gabinetes. Outras 21 divulgavam o site PL da Censura, ligado ao ex-deputado Paulo Ganime (Novo), que mostrava um placar do projeto. O resultado da campanha foi uma enxurrada de mensagens, telefonemas e ataques contra parlamentares.
Um dos principais alvos dessa investida foram políticos do Republicanos, partido que tem no Congresso nomes identificados com o governo Bolsonaro, como os senadores Hamilton Mourão e Damares Alves. Apesar de declarar independência, o partido tem buscado se aproximar do governo Lula.
Uma fonte ligada ao governo que atua nas negociações relatou ao Aos Fatos que parlamentares do partido estavam inclinados a aprovar o projeto por terem se sensibilizado após os episódios de violência contra as escolas, mas ficaram assustados com a onda de ataques.
Desde que o Republicanos ajudou a aprovar a urgência, as caixas de comentários de seus parlamentares nas redes foram invadidas por mensagens que traziam expressões como “vergonha”, “traidores” e “decepção”. Ainda que não tivesse relação com o PL, a primeira postagem no perfil do Twitter do partido após a votação recebeu mais de 70 comentários — número quase 10 vezes maior do que o recebido pela publicação anterior. A maior parte das mensagens eram ataques.
“O telefone aqui não parou de tocar hoje”, disse ao Aos Fatos a assessora jurídica de um parlamentar do Republicanos no dia seguinte à votação. O presidente da legenda, Marcos Pereira, ao ser questionado sobre o tema, demonstrou incômodo e tratou de sublinhar que o partido tinha se comprometido a aprovar a urgência, mas não o mérito do projeto.
A onda de ataques surtiu efeito: durante o último final de semana, o partido anunciou que se posicionaria contra o PL na votação do conteúdo e tratou de reforçar a mensagem em suas redes nos dias seguintes.
5. FORTE CAMPANHA DAS PLATAFORMAS
As plataformas também investiram pesado na propaganda contra o projeto. Na véspera da votação do mérito, o Google publicou um link logo abaixo da caixa de seu buscador que levava a um conteúdo contrário ao texto — sem informar que se tratava de publicidade. Após notificação da Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor), a mensagem foi removida da página inicial.
Além do Google, a Meta também publicou posicionamento que, segundo especialistas ouvidos pelo Aos Fatos, usava argumentos distorcidos para atacar o PL 2.630. Os textos das plataformas alegavam que o projeto impediria as redes de removerem desinformação, as obrigaria a remunerar desinformadores e permitiria que o governo controlasse o que circula nas redes, o que não é verdade.
Já o Twitter, às vésperas da votação do mérito, foi acusado de remover, sem explicação, o perfil Regular para Proteger, promovido pela ONG Avaaz e que faz campanha a favor da regulação das plataformas. Após enfrentar uma série de críticas, a conta foi restabelecida.
6. O CONTRA-ATAQUE
Para tentar contornar as insatisfações do Centrão, o presidente Lula prometeu, em reunião com o presidente da Câmara na última terça (2), liberar R$ 6,5 bilhões em emendas parlamentares para deputados e outros R$ 3,5 bilhões para senadores, segundo noticiou o G1.
Enquanto isso, o relator Orlando Silva trabalha em mais uma versão do texto, tentando contornar trechos considerados polêmicos, como a criação da entidade autônoma de supervisão. O desafio é analisar as cerca de 100 emendas que recebeu após divulgar seu parecer preliminar.
Já no que se refere à ação das plataformas, houve reações do poder público. O MPF (Ministério Público Federal) de São Paulo pediu explicações ao Google e à Meta sobre os conteúdos divulgados contra o projeto. O Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e a Senacon, ambos ligados ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, anunciaram medidas contra o que consideraram um abuso das big techs na discussão.
O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes, defensor da regulação, também mandou seu recado ao determinar que a PF (Polícia Federal) ouvisse os presidentes de Google, Meta, Spotify e Brasil Paralelo devido às campanhas contra o projeto.
As ações serviram como contrapeso aos ataques contra o texto. Ao longo desta semana, até alguns parlamentares ligados ao PL chegaram a defender a necessidade de regulação — ainda que continuem criticando a proposta do governo e a forma como ela tramita. O temor é de que, sem uma legislação específica, o Ministério da Justiça e o STF continuarão agindo contra o conteúdo ilegal nas redes, adotando medidas que podem ser ainda mais duras do que as previstas no PL 2.630.
Ao anunciar o pedido de adiamento da votação, Orlando Silva considerou que seriam necessárias pelo menos duas semanas para o tema voltar à pauta da Câmara. Resta saber se o prazo previsto é suficiente para alcançar consensos.