Contrários à aprovação do PL 2.630/2020, que pretende regular o funcionamento de grandes empresas de tecnologia no Brasil, Google e Meta divulgaram nos últimos dias uma série de críticas que distorcem o texto da proposta. Segundo elas, o projeto impediria as plataformas de removerem desinformação, as obrigaria a remunerar desinformadores e permitiria que o governo controlasse o que circula nas redes. Aos Fatos analisou o texto e, junto com especialistas, concluiu que os argumentos das plataformas são falhos – assim como alguns trechos do texto do "PL das Fake News".
Nesta terça (3), o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), decidiu adiar a votação do projeto a pedido do relator, Orlando Silva (PC do B-SP). Não há ainda previsão de quando a proposta voltará à pauta. Silva tem afirmado que irá incorporar ao projeto novas sugestões para "unificar posições".
A seguir, Aos Fatos explica quais são as inconsistências nos três principais argumentos apresentados pelas plataformas contra o PL 2.630, com base no relatório protocolado na Câmara na última quinta-feira (27).
- O PL impediria as plataformas de removerem conteúdo desinformativo
- O PL obrigaria as plataformas a remunerarem desinformadores
- O PL permitiria que o governo controle o que circula nas redes
1. O PL impediria as plataformas de removerem conteúdo desinformativo
Um dos principais argumentos apresentados pelas plataformas é o de que o PL 2.630, da forma como foi redigido, acabaria beneficiando desinformadores. O Google, por exemplo, argumenta que, se aprovado, o texto poderia proteger publicadores de conteúdos enganosos, já que as plataformas estariam “impedidas de remover conteúdo jornalístico com afirmações falsas”. Especialistas apontam que, ainda que o projeto em discussão crie mecanismos para a remoção de publicações ilegais ou enganosas, há pontos no texto que podem gerar entraves.
De acordo com o projeto, as plataformas podem ser instadas a remover conteúdo ilegal mediante ordem judicial. Isso inclui publicações que configurem crimes contra o Estado Democrático de Direito, discriminação, terrorismo, estímulo à violência e infrações sanitárias. Também continuam valendo as regras de comunidade das plataformas, que proíbem, em sua maioria, a circulação de desinformação. Caso o conteúdo desinformativo se encaixe nas categorias previstas ou haja uma decisão da Justiça a respeito, a remoção é, sim, possível.
“Se as plataformas estão preocupadas com conteúdos falsos, conteúdos jornalísticos, mas, que, por exemplo, estão cometendo crimes, elas podem cooperar e ajudar a denunciar esses próprios conteúdos à Justiça”, afirmou Jonas Valente, pesquisador do laboratório de políticas de comunicação da UnB (Universidade de Brasília) e integrante da Coalizão Direitos na Rede.
De acordo com o diretor-executivo do ITS Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade), Fabro Steibel, há, no entanto, um possível complicador nesse processo de remoção. O PL 2.630 determina que as plataformas devem remunerar empresas de mídia que produzam conteúdo jornalístico que circule por suas redes. Para garantir o cumprimento da norma, o texto afirma que as empresas não poderão remover os conteúdos para tentar se eximir do pagamento.
“O PL privilegia incluir o pequeno produtor de conteúdo e ele cria regras para que esses links compartilhados não possam ser removidos. Se todo link colocado é remunerado, eles não podem ser removidos, e esse é um dos pontos sensíveis”, afirmou Steibel ao Aos Fatos. Segundo o pesquisador, esse problema poderia ser resolvido com um ajuste na redação que determinaria que uma empresa perde o status de jornalismo ao promover desinformação ou conteúdos difamatórios.
2. O PL obrigaria as plataformas a remunerar desinformadores
Em nota divulgada no sábado (29), a Meta argumenta que o PL 2.630 não define o que seria “conteúdo jornalístico” e que isso poderia resultar na remuneração de desinformadores que tentam se passar por jornalistas profissionais.
Apesar de o texto do projeto não estabelecer critérios específicos para determinar o que é ou não jornalismo e deixar brechas para que desinformadores recorrentes sejam remunerados, especialistas ouvidos por Aos Fatos defendem que isso pode ser resolvido com regulamentação posterior.
O parágrafo 2º do artigo 32 do PL 2.630 afirma que as plataformas só poderão remunerar “pessoa jurídica constituída há pelo menos 24 meses, que produza conteúdo jornalístico original de forma regular, organizada, profissionalmente e que mantenha endereço físico e editor responsável no Brasil”. Porém, Helena Martins, professora da UFC (Universidade Federal do Ceará) e integrante do DiraCom (Direito à Comunicação e Democracia), destaca que o projeto prevê a existência de uma negociação posterior para estabelecer os processos da remuneração e corrigir falhas.
Além disso, o argumento das plataformas de que o projeto as obrigaria a remunerar desinformadores é incoerente com a prática atual, em que usuários conseguem monetizar conteúdo enganoso. “As plataformas já privilegiam esses atores que atuam de forma nociva e publicam notícias falsas como prática recorrente”, destaca Yasmin Curzi, professora e pesquisadora do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV (Fundação Getúlio Vargas).
O Aos Fatos, inclusive, mostrou provas dessa situação em inúmeras reportagens:
- O Google, por exemplo, auxiliou na remuneração de conteúdo enganoso sobre as eleições de 2022 e promoções de golpe de Estado;
- No YouTube, canais ganharam dinheiro ao transmitir a tentativa de golpe no 8 de janeiro e disseminar conteúdos mentirosos contra o sistema eleitoral;
- E o Facebook e o Instagram permitiram a instalação e a amplificação de uma rede que usava desinformação e perfis falsos para aplicar golpes com falsos emagrecedores.
3. O PL permitiria que o governo controle o que circula nas redes
Versões anteriores do projeto usaram como inspiração a regulação europeia ao defender a criação de uma entidade autônoma de supervisão para fiscalizar se as plataformas estariam ou não cumprindo com seu papel de combater conteúdo ilegal. Nas notas divulgadas nos últimos dias, Meta e Google alegam que esse órgão fiscalizador daria ao governo um controle excessivo sobre o conteúdo que circula na internet. Isso é rebatido por especialistas.
No parecer final do PL, apresentado na última quinta-feira (27), o relator Orlando Silva (PC do B-SP) deixou de fora a previsão de criação do órgão autônomo por pressão de partidos políticos. A fiscalização, no entanto, pode ficar a cargo de alguma outra entidade, embora não haja consenso sobre qual e se essa de fato será a solução.
Segundo Jonas Valente, o argumento de que o órgão fiscalizador daria ao governo o poder de controlar o que circula nas redes é falacioso, porque a intenção do texto era justamente ampliar o debate. “O que o projeto fazia era submeter o poder das plataformas de definir o que circula e o que não circula a instâncias democráticas”, afirmou. O pesquisador lembra que a entidade seria independente e multissetorial, o que significa que contaria com a participação de diversos segmentos da sociedade, inclusive representantes das plataformas.
Yasmin Curzi ressalta que mesmo os protocolos de segurança — procedimento previsto no projeto para casos específicos em que as plataformas se mostrem negligentes em seu dever de mitigar a propagação de conteúdos ilegais — não dariam ao órgão autônomo poder absoluto. “Eles não dão às autoridades de supervisão controle total sobre o que as plataformas estão fazendo, mas sim a possibilidade de supervisionar as ações que estão adotando para enfrentar conteúdos que já são ilegais pela legislação brasileira”.
Fabro Steibel aponta, no entanto, que a redação atual do PL 2.630, que não inclui o órgão de supervisão, pode abrir brechas para que o Poder Executivo tenha mais autoridade do que deveria. “Da forma como o texto está hoje, sem o órgão, você deu poderes ao Poder Executivo de autoexecutar uma regra por 30 dias se ele vir um perigo”, afirmou o especialista, fazendo referência ao dispositivo do protocolo de segurança. Isso é problemático, segundo Steibel, porque o PL não tem hoje mecanismos que controlem eventuais abusos de poder por parte do Estado em situações como essa.
Esta reportagem foi atualizada no dia 3 de maio de 2023 às 17h30 para acrescentar posicionamentos de especialistas e reescrever alguns trechos de modo a expressar melhor os argumentos.