Milei promete na Argentina o que Bolsonaro não conseguiu fazer no Brasil
Javier Milei saiu vitorioso das primárias presidenciais argentinas realizadas no último domingo (13) com uma retórica que, segundo o próprio, o aproxima do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). “O apoio dele foi uma alegria. A verdade é que eu estou infinitamente grato ao ex-presidente Jair Bolsonaro pelo seu afeto, por se arriscar de maneira explícita e apoiar a minha candidatura, antes mesmo das eleições”, disse o candidato.
Da mesma maneira que seu par brasileiro, Milei defende a facilitação do acesso a armas para uso pessoal. Em entrevista à CNN Brasil na última segunda-feira (14), Bolsonaro disse sobre o argentino: “Nós defendemos a família, a propriedade privada, o livre mercado, a liberdade de expressão, o legítimo direito à defesa e queremos, sim, ser grandes à altura do nosso território e da nossa população”.
O problema é que a realidade, mesmo para os negacionistas, muitas vezes se impõe. Alguma pautas que Milei diz defender na Argentina provaram-se inexequíveis no Brasil de Bolsonaro, como refutar a emergência climática. Enquanto o candidato do país vizinho nega a existência do aquecimento global, Bolsonaro sujeitou-se à pauta por pressão internacional.
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Em uma de suas primeiras aparições no exterior como presidente, Bolsonaro disse em Davos que o Brasil não se retiraria do Acordo de Paris — diferentemente do seu clone norte-americano, Donald Trump, e do que tinha prometido em campanha. Disse em 2021, durante a Cúpula do Clima, que o Brasil estava “na vanguarda do combate ao aquecimento global”. Era falso, claro, mas naquele momento já se havia tornado urgente para o país aceitar o inevitável.
O argentino prega a interrupção das relações de seu país com a China, enquanto Bolsonaro, mesmo atacando a China com xenofobia e desinformação, viu-se frequentemente obrigado a recuar.
Durante as eleições de 2018, Bolsonaro dizia que “a China não está comprando no Brasil, está comprando o Brasil” e que “se você for vender para o capital chinês, você não está privatizando, você está estatizando para a China”. Embora ele nunca tenha dito que interromperia relações com o país asiático, gerou atrito sua visita a Taiwan em março de 2018, quando ainda era uma incógnita sua política para a região.
Em 2020, durante a pandemia e em meio às declarações sinofóbicas do bolsonarismo, o ex-ministro Paulo Guedes sintetizou a razão pela qual o governo de então foi entubado pelos chineses sem maiores problemas: “A China é aquele cara que você sabe que tem que aguentar, porque pra vocês terem uma ideia, pra cada um dólar que o Brasil exporta pros Estados Unidos, exporta três pra China”.
Milei e Bolsonaro também compartilham de uma retórica anti-establishment, embora sejam ambos, cada um ao seu modo, produtos do sistema de seus países. O ex-presidente esteve durante décadas na política, enquanto o candidato vizinho está em seu primeiro mandato como deputado desde 2021.
Essa ideia de que Bolsonaro e Milei estiveram por fora dos grandes conchavos da política é plataforma de campanha de ambos. O bolsonarismo provou, contudo, que o uso da política para o crime tem suas vantagens, sobretudo para quem está no governo. Em consórcio com os militares e o Centrão, instituiu um sistema opaco de negociações de emendas parlamentares, o orçamento secreto, e fomentou em seu entorno um esquema de venda e troca de muambas milionárias, incluindo joias, relógios e esculturas.
Se Milei parece um Bolsonaro de peruca e costeletas, talvez seja porque disfarça bem a inviabilidade de sua agenda. É claro que qualquer fiador de discursos que glamourizam a destruição do Estado deveria ser rechaçado. Mas, numa democracia, é imperativo apontar de antemão quão frágeis são os argumentos de quem se pretende detentor de todas as verdades.