José Dias/PR

🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Agosto de 2023. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

De onde vieram, por onde passaram e onde estão joias do Brasil que PF apura se Bolsonaro desviou

Por Marco Faustino

18 de agosto de 2023, 14h01

Na noite desta quinta-feira (17), o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), autorizou a quebra do sigilo de contas bancárias no exterior do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), do ex-ajudante de ordens Mauro Cid e do pai de Cid, o general da reserva Mauro Cesar Lourena Cid.

A ação atendeu a um pedido da Polícia Federal, que apura se Bolsonaro e aliados dele se aproveitaram da estrutura do governo federal para desviar e se apoderar de bens de alto valor. O caso foi revelado em março pelo jornal O Estado de S. Paulo, que mostrou que a comitiva do então presidente da República tentou trazer ao Brasil um conjunto não declarado de joias recebidas do governo da Arábia Saudita.

Desde então, as investigações têm se desdobrado para mostrar que Bolsonaro, subordinados e aliados teriam até mesmo vendido alguns dos objetos que deveriam ser destinados ao acervo da Presidência.

O Aos Fatos já desmentiu diversas publicações enganosas que tentam minimizar a importância das investigações:

Abaixo, o Aos Fatos mostra o que se sabe sobre as investigações e explica o que dizem as leis em vigor sobre a posse e a venda de presentes recebidos de chefes de Estado.

  1. Como as joias entraram e saíram do Brasil?
  2. Quais bens foram vendidos no exterior?
  3. Onde estão as joias e os demais bens?
  4. Bolsonaro poderia ter ficado com as joias?
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1. COMO AS JOIAS ENTRARAM E SAÍRAM DO BRASIL?

Em reportagem publicada em 3 de março, o jornal O Estado de S. Paulo mostrou que a Receita Federal apreendeu, em outubro de 2021, um conjunto composto por colar, anel, relógio e um par de brincos de diamante avaliados em R$ 16,5 milhões na bagagem de um assessor do então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque. A comitiva retornava de uma visita oficial à Arábia Saudita.

  • Apesar de a declaração de bens com valor acima de R$ 1.000 ser obrigatória durante o procedimento de entrada no país, não houve tentativa do governo de regularizar as joias com o pagamento de impostos ou de declarar os bens como patrimônio da União;
  • Ao saber da apreensão, Albuquerque tentou retirar as joias da alfândega do aeroporto de Guarulhos (SP) no dia 26 de outubro sob a alegação de que se tratava de um presente da família real saudita à então primeira-dama, Michelle Bolsonaro;
  • Outros órgãos, como o Ministério das Relações Exteriores e a Ajudância de Ordens da Presidência da República, chefiada pelo tenente-coronel Mauro Cid, também tentaram recuperar os itens ao menos oito vezes;
  • A última tentativa ocorreu em dezembro de 2022, a poucos dias do fim do mandato do ex-presidente.

Foto mostra joias, caneta, relógio e masbaha, espécie de rosário islâmico, da marca suíça Chopard
Segundo conjunto. Conjunto de itens da marca Chopard recebidos pelo ex-presidente Jair Bolsonaro de autoridades sauditas (Reprodução/STF).

Segundo conjunto. Após a publicação da reportagem, veio a público que um segundo conjunto de joias recebidos por Bolsonaro de autoridades sauditas entrou no Brasil na mesma época, mas sem ser interceptado pela alfândega.

  • O conjunto era composto por uma caneta, um anel, um par de abotoaduras, uma masbaha (uma espécie de rosário islâmico) e um relógio — todos da marca de luxo suíça Chopard;
  • Um recibo mostra que o ex-presidente teria recebido o segundo pacote no Palácio da Alvorada somente em novembro de 2022, mais de um ano após a entrada dos itens no país;
  • Até então, os objetos teriam ficado guardados na sede do Ministério de Minas e Energia.

Terceiro conjunto. No fim de março, nova reportagem do Estado de S. Paulo revelou que Bolsonaro recebeu ainda um terceiro conjunto de joias durante viagem oficial ao Catar e à Arábia Saudita, em outubro de 2019.

  • O presente era composto por uma caneta, um par de abotoaduras, um anel, uma masbaha e um relógio da marca Rolex cravejado de diamantes;

Bolsonaro entrou no Brasil com os itens e ordenou que fossem incorporados ao seu acervo privado, ordem acatada pelo Gabinete Adjunto de Documentação Histórica da Presidência no mês seguinte.

Em junho de 2022, Bolsonaro e Cid viajaram aos Estados Unidos para a Cúpula das Américas, em Los Angeles. Na ocasião, o ajudante de ordens teria levado o terceiro conjunto de joias em voo oficial da FAB (Força Aérea Brasileira), segundo a PF. Cid não voltou para o Brasil com a comitiva e deixou as joias na casa do pai, Mauro Cesar Lourena Cid, que ocupava, desde 2019, um cargo com salário de R$ 63 mil no escritório da Apex (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos) em Miami.

Imagem mostra caneta, joias e item religioso em ouro branco
Terceiro conjunto. Caneta, joias e item religioso recebidos em viagens ao Catar e à Arábia Saudita (Reprodução/STF)

Quarto conjunto. Em 30 de dezembro de 2022, dois dias antes do término do mandato de Bolsonaro, duas esculturas — uma palmeira recebida de autoridades do Bahrein em novembro de 2021, e um barco provavelmente oriundo do Kuwait — saíram do Brasil em uma mala transportada no avião presidencial. O segundo conjunto de joias também deixou o Brasil nesse mesmo voo, ocorrido um dia após a última tentativa oficial de reaver o primeiro conjunto.

Imagem mostra esculturas douradas de um barco e uma palmeira
Quarto conjunto. Esculturas de barco e palmeira que não tiveram origem cravada pela PF (Reprodução/STF)

A PF não encontrou registro das esculturas no acervo museológico da Presidência, o que seria um indício de que os objetos teriam sido desviados do patrimônio público. Mesmo que tenha sido registrado cerca de um mês antes no Gabinete Adjunto de Documentação Histórica, o segundo conjunto também pode ter sido desviado, segundo suspeitas da corporação.

Além dos quatro conjuntos de bens, outros presentes recebidos por Bolsonaro ao longo do mandato estão na mira da PF, como esculturas, um relógio de mesa e um incensário.

2. QUAIS BENS FORAM VENDIDOS NO EXTERIOR?


Em junho de 2022, a Ajudância de Ordens da Presidência, chefiada pelo tenente-coronel Mauro Cid, solicitou ao Gabinete de Documentação Histórica a lista dos relógios recebidos pela Presidência até aquele momento. De posse da lista de 37 itens, Mauro Cid retirou o terceiro conjunto de joias do acervo privado de Bolsonaro quatro dias mais tarde.

  • Em 13 de junho do ano passado, Cid viajou ao estado americano da Pensilvânia e vendeu o relógio Rolex, parte do terceiro conjunto de joias, e um relógio da marca Patek Philippe, que não integrava nenhum dos quatro pacotes de presentes;
  • Os itens foram comprados pela empresa Precision Watches por US$ 68 mil (cerca de R$ 350 mil, na cotação da época);
  • Já os objetos do segundo conjunto de joias foram submetidos a leilão em fevereiro pela empresa Fortuna Auction, de Nova York, mas não foram arrematados;
  • Há também registros de que Mauro Cid, o pai dele e os ex-assessores da Presidência Osmar Crivelatti e Marcelo Câmara tenham tentado vender, em 5 de janeiro deste ano, as esculturas que faziam parte do quarto conjunto de joias;
  • Os itens, no entanto, não possuíam o valor esperado, e não foram negociados;
  • Uma das provas usadas pela PF nesse caso é uma foto tirada pelo pai de Cid da caixa que continha uma das esculturas um dia antes das tentativas de negociação. Como o objeto é espelhado, o reflexo do general aparece nas imagens.

A PF suspeita que Bolsonaro tenha recebido o relógio Patek Philippe de autoridades do Bahrein em novembro de 2021, durante evento de inauguração da embaixada brasileira na capital do país. Não há, no entanto, registro do item no acervo privado do ex-presidente. A corporação apura a possibilidade de que o objeto sequer tenha passado pelo Gabinete Adjunto de Documentação Histórica — um indício de desvio do patrimônio público.

Foto mostra o reflexo do general da reserva Mauro Lourena Cid, pai de Mauro Cid, na caixa que guardava a escultura de um barco
Reflexo. É possível ver o rosto do general da reserva Mauro Lourena Cid em uma das fotos dos presentes (Reprodução/STF)

3. ONDE ESTÃO AS JOIAS E OS DEMAIS BENS?

  • O primeiro conjunto de joias permanece no aeroporto de Guarulhos. A Receita Federal informou que o prazo para regularizar sua situação legal expirou em julho de 2022, e que agora os objetos podem ser leiloados, doados, acrescentados ao acervo nacional ou destruídos;
  • O segundo conjunto foi devolvido em março pela defesa de Jair Bolsonaro. A entrega atendeu a uma decisão cautelar do TCU (Tribunal de Contas da União), que entende que apenas presentes de pequeno valor, perecíveis e de caráter personalíssimo, como camisetas e bonés, podem ser incorporados ao acervo privado do presidente;
  • Já o terceiro conjunto foi devolvido pela defesa de Bolsonaro em 4 de abril.
  • Não há informações sobre o paradeiro do relógio Patek Philippe nem dos objetos do quarto conjunto. As investigações indicam, no entanto, que as esculturas teriam retornado ao Brasil.

De acordo com a PF, após a publicação da primeira reportagem do Estado de S. Paulo, pessoas ligadas a Bolsonaro iniciaram, em 8 de março de 2023, uma operação para resgatar itens que haviam sido comercializados nos Estados Unidos. A ideia era recomprar os objetos e devolvê-los ao governo brasileiro antes que houvesse uma determinação do TCU, o que ocorreu no dia 15 daquele mês.

  • Em 11 de março, o advogado Frederick Wassef embarcou aos Estados Unidos para recuperar o relógio Rolex que pertencia ao terceiro conjunto, vendido em 2022 por Mauro Cid. A compra foi realizada três dias depois, segundo comprovante obtido pela PF;
  • Em 24 de março, a defesa do ex-presidente entregou o segundo conjunto, com as joias da marca Chopard;
  • Em 27 de março de 2023, os itens do terceiro conjunto foram recuperadas por Mauro Cid nos Estados Unidos e devolvidos no dia 4 de abril.

4. BOLSONARO PODERIA TER FICADO COM OS PRESENTES?

Em princípio, não, mas há controvérsia jurídica sobre o tema. Por meio dos acórdãos 443/2023 e 504/2023, o TCU decidiu de maneira cautelar que Bolsonaro devolvesse à União os presentes recebidos em viagens à Arábia Saudita e aos Emirados Árabes. A deliberação, portanto, abrange apenas aos conjuntos de joias e não se refere às esculturas ou ao relógio Patek Philippe. Ainda não há decisão de mérito do tribunal.

A determinação do TCU teve como base uma diretriz adotada no acórdão 2.255/2016, que diz respeito à fiscalização patrimonial durante os governos Lula (PT) e Dilma Rousseff (PT). No entendimento do órgão, podem permanecer nos acervos pessoais de ex-presidentes apenas itens de natureza personalíssima, como medalhas personalizadas, ou de consumo direto, como bonés e camisetas.

Apesar de, na prática, determinar o que pode ou não ser levado pelos presidentes após o fim do mandato, a norma do TCU não tem poder de lei, explicou ao Aos Fatos o advogado Antônio Carlos Freitas Jr., especialista em direito constitucional. Segundo ele, o acórdão gerou um precedente, mas não tem força para obrigar indivíduos que não estão citados no processo a adotarem os comportamentos ali previstos. Isso significa que, na prática, Bolsonaro não seria legalmente obrigado a seguir o que o TCU decidiu em 2016.

  • A norma legal que versa sobre a preservação, a organização e a proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República é a lei 8.394/1991, do governo Fernando Collor. A norma não cita presentes em nenhum momento;
  • O texto foi regulamentado pelo decreto 4.344/2002, de Fernando Henrique Cardoso (PSDB);
  • O terceiro artigo do decreto, que afirma que são públicos os “documentos bibliográficos e museológicos recebidos em cerimônias de troca de presentes”, passou a ser usado como suporte à interpretação de que objetos só deveriam incorporados ao patrimônio público caso fossem recebidos nesse tipo de solenidade;
  • A ambiguidade na lei fez com que o TCU se manifestasse no acórdão 2.255/2016. O texto determinava que todos os documentos e presentes recebidos pelos presidentes da República compunham o acervo da União, à exceção dos itens classificados como de natureza personalíssima, como camisetas, bonés e medalhas;
  • A norma, que determinou a devolução de presentes disponíveis nos acervos dos ex-presidentes a partir de 2002, ano da publicação do decreto 4.344, levou Lula e Dilma a devolverem 472 itens e a pagarem pelos objetos que não foram encontrados;
  • Em 8 de novembro de 2018, durante o governo Temer (MDB), a Secretaria-Geral da Presidência da República publicou uma portaria que classificou joias, semijoias e bijuterias como bens de natureza personalíssima. Isso significa que, na prática, tais bens poderiam fazer parte do acervo privado de presidentes;
  • A portaria foi revogada em 17 de novembro de 2021, já durante a gestão de Bolsonaro. O novo texto não faz menção à discussão sobre itens personalíssimos.

Independentemente do que diz a lei sobre a possibilidade de presidentes manterem ou não presentes recebidos durante o mandato, não há justificativa legal para a venda dos objetos, disse na última quinta (17) o ministro da CGU (Controladoria-Geral da União), Vinicius Marques de Carvalho, em entrevista coletiva.

“Sempre há formas de aprimoramento da legislação, mas o que a gente precisa separar é não cair numa armadilha de achar que foi por falta de regulamentação, falta de esclarecimento sobre o que é patrimônio do estado, o que é presente personalíssimo, que houve essa confusão.”

Referências:

1. CNN Brasil (1, 2, 3 e 4)
2. O Estado de S. Paulo (1 e 2)
3. Aos Fatos (1, 2, 3 e 4)
4. Agência Brasil
5. Poder360 (1, 2, 3 e 4)
6. O Globo (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8)
7. Rádio Gaúcha (1 e 2)
8. G1 (1, 2, 3, 4 e 5)
9. UOL
10. Exame
11. O Tempo
12. TCU (1, 2, 3 e 4)
13. TJDFT
14. Governo federal (1 e 2)
15. Imprensa Nacional (1 e 2)

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