Expressões relacionadas ao apocalipse bíblico tiveram um pico de buscas no Google na semana de 8 a 14 de outubro, dias seguintes ao ataque do Hamas a Israel. A procura por termos como “Jesus está voltando” e “anticristo”, dentre outras referências ao fim dos tempos, alcançou níveis similares a março de 2020, no início da pandemia da Covid-19, conforme dados do Google Trends.
A interpretação da guerra no Oriente Médio como um sinal de que “o fim está próximo” é um dos posicionamentos presentes nas discussões sobre o conflito entre usuários evangélicos do Instagram, segundo outra análise feita pelo Aos Fatos. O levantamento mostra que, nessa rede, o apoio a Israel é majoritário nos comentários deixados em perfis de influenciadores evangélicos, mas ele divide espaço com outros discursos:
- O versículo “Orai pela paz de Jerusalém!”, parte do Salmo 122, foi um dos mais lembrados nos posts e comentários nas redes evangélicas;
- Em alguns casos, a mensagem de apoio aos judeus ganhou tom belicista, com clamores para que “Israel esmague seus inimigos”;
- Outro discurso recorrente interpreta a guerra como um sinal da volta próxima de Jesus e do fim dos tempos, com base em profecias bíblicas;
- Dentro do grupo que vê sinais do apocalipse, alguns comentários afirmam que “orar pela paz é orar contra a palavra de Deus” ou lembram que, na Bíblia, “a chegada da paz corresponde à chegada do anticristo”;
- Uma corrente, que inclui os progressistas, busca balancear a oração por Israel com pedidos para Deus proteger “todos os inocentes”, em referência à população civil palestina;
- Outro grupo inclui até os guerrilheiros do Hamas em suas orações, dentro da lógica de que “devemos amar até nossos inimigos” e clamar por sua conversão;
- Parte da comunidade entende que a Israel de hoje não equivale à da Bíblia ou acreditam que o Novo Testamento criou uma nova aliança, que substitui a ideia de que os judeus são o “povo escolhido”;
- Parcela minoritária compartilha esse pensamento, mas sob uma perspectiva conservadora e antissemita: acreditam que os judeus estão sendo punidos pela guerra, por “não aceitarem Jesus como o Salvador” ou por permitirem “pecados” em Israel, como o aborto legalizado.
No levantamento, o Aos Fatos coletou os comentários deixados em posts sobre o conflito nos perfis dos 44 influenciadores considerados mais relevantes pela pesquisa Radar Evangélico, realizada pela consultoria especializada em religião e conservadorismo de costumes Nosotros, do antropólogo Juliano Spyer. Para identificar os discursos mais frequentes, foram analisadas cerca de 40 mil mensagens.
“O apoio a Israel por parte dos evangélicos é o discurso mais robusto, só que o limite desse apoio vai depender do grupo”, afirma Alexandre Gonçalves, teólogo e pastor da Igreja de Deus no Brasil.
Criador do Movimento Cristãos Trabalhistas, Gonçalves afirma que uma parte dos evangélicos acredita que Israel tem o direito de se defender até mesmo na forma de ataque, mas as imagens de atrocidades envolvendo crianças palestinas “têm feito pessoas bem intencionadas dessa bolha refletirem que o apoio não pode ser incondicional”.
DA PERSEGUIÇÃO À ALIANÇA
A maioria dos influenciadores evangélicos analisados pelo Aos Fatos se posicionou sobre o tema logo após o ataque de 7 de outubro do Hamas. O momento das postagens — predominantemente anteriores à investida israelense contra a Faixa de Gaza — é um dos fatores que ajuda a explicar a solidariedade quase unânime do público evangélico a Israel, mas não o único. Ela reflete as mudanças no protestantismo ao longo dos séculos, que passou do antissemitismo de Martinho Lutero às fotos de celebridades gospel em viagens à Terra Santa. No Brasil, expressa ainda a aproximação entre grupos evangélicos e parte do bolsonarismo. O Aos Fatos ouviu acadêmicos e teólogos para compreender o fenômeno.
Um dos pais da Reforma Protestante — movimento que no século XVI abriu espaço para novas correntes cristãs não subordinadas à Igreja Católica —, Martinho Lutero também é autor de Sobre os Judeus e Suas Mentiras. A obra refletia um antissemitismo típico da Idade Média, que também causou a perseguição dos judeus pela Igreja Católica.
O pensamento do religioso foi utilizado como propaganda nazista pelo regime de Adolf Hitler e tinha entre suas bases a ideia de que os judeus eram culpados pela morte de Cristo. O antissemitismo não é mais prevalecente no meio evangélico, mas a discriminação contra judeus fez um pastor ser condenado a 18 anos de prisão em 2022.
Lyndon de Araújo Santos, pastor e professor de história na UFMA e na UFRRJ, afirma que alguns líderes evangélicos ainda repetem que os judeus “mataram Jesus”, mas muitas vezes fazem isso “de forma paradoxal”, associando essa ideia à de que esse é “o povo escolhido, para quem Deus ainda tem promessas”.
A concepção dos judeus como o “povo escolhido” está no Antigo Testamento e vem do próprio judaísmo, que desenvolveu a crença de que Deus fez uma série de alianças com o povo de Israel, através de representantes como Noé, Abraão, Isaac, Jacó e Moisés.
O Cristianismo clássico se apropriou da noção de pacto do judaísmo, mas “interpretando que Jesus Cristo, na verdade, é a única, maior e definitiva aliança” e substituiu as anteriores, afirma Santos. Segundo o historiador, é pressuposto básico da tradição reformada evangélica a ideia de que a vinda de Jesus transferiu a aliança com Israel antigo para uma aliança com a Igreja — ou seja, com os seguidores de Cristo.
Na segunda metade do século XIX, porém, ganha força nos Estados Unidos o dispensacionalismo — filosofia que concorda que Deus construiu uma aliança com a Igreja, mas considera que esse pacto não anulou as promessas feitas aos judeus no Antigo Testamento.
Simpático ao dispensacionalismo, o pastor batista Alexandre Dutra, diretor do Ministério Amigos de Sião, diz que essa corrente considera todos os textos da Bíblia em sua análise e aplica um método “literal, histórico e gramatical em todas as doutrinas”.
Outros religiosos, como Gonçalves, criticam o dispensacionalismo por entenderem que ele faz uma interpretação literal do Antigo Testamento e ignora “tudo o que Jesus fala no Novo Testamento”. “Na Nova Aliança que Cristo coloca, ele diz bem claro que não há mais distinção entre gentios e judeus”, defende.
O dispensacionalismo foi introduzido no Brasil após a Segunda Guerra Mundial, por missionários norte-americanos. Foi por este caminho que os Amigos de Sião chegaram ao país. Segundo Dutra, a entidade tem como missão transmitir “as nossas raízes dentro do contexto judaico para as igrejas evangélicas” e lutar contra o antissemitismo.
MISTIFICAÇÃO DA TERRA SANTA
Apesar de sua defesa da aliança dos evangélicos com Israel, o pastor batista afirma que seu ministério também combate “o abuso disso”, criticando o tratamento que algumas correntes neopentecostais têm dado ao assunto.
Para Dutra, alguns grupos criaram “uma espécie de misticismo da Terra Santa” e passaram a adotar símbolos judaicos como amuletos, o que seria uma regressão, pois a Bíblia “condena a idolatria de coisas, de pessoas, de lugares”. “O brincar de ser judeu nunca é positivo para um testemunho cristão”, complementa.
“Os neopentecostais transformaram Israel e os símbolos judeus em uma questão mágica, mágico-religiosa, sacerdotal”, diz Santos, explicando que o uso da simbologia judaica nos cultos já tinha sido superada pelo Cristianismo no primeiro século após a morte de Jesus, mas foi resgatado.
Para o pastor, o neopentecostalismo mistura várias influências tradicionais com tendências recentes do conservadorismo norte-americano, como a Teologia do Domínio.
“A Teologia do Domínio diz que a Igreja, em vez de servir a sociedade como Jesus nos Evangelhos fala, pega o modelo do Velho Testamento, em que Israel era instado a dominar as nações, e entende que a Igreja tem que fazer esse domínio político, cultural e em todas as áreas ”, explica Gonçalves.
Essas ideias começaram a circular no Brasil sobretudo nos anos 1990. Mas, segundo Gonçalves, foi com a popularização dos cursos de Olavo de Carvalho, já neste milênio, que a adesão à Teoria do Domínio explodiu. O influenciador de extrema-direita pregava a necessidade de guerra contra o que chamava de “marxismo cultural”, o que dialogava com os cursos que os pastores faziam em instituições norte-americanas.
Ao colocar muitas denominações evangélicas em conflito aberto contra correntes progressistas, a lógica do olavismo favoreceu o apoio a Israel, afirma o pastor, já que a causa palestina é associada às esquerdas por esses grupos.
Gonçalves explica, no entanto, que as razões políticas para o apoio a Israel só são ditas “à meia boca”. “O argumento político não tem autoridade no nosso meio, só o argumento bíblico.” Nesse contexto, o teólogo critica parte das lideranças neopentecostais por fazer malabarismo com a Bíblia para dar sustentação a ideologias e posicionamentos alheios à religião, o que inclui também a defesa das armas de fogo.
Para o religioso, o processo de tirar do contexto trechos do Antigo Testamento é facilitado pelas dificuldades de acesso à educação no país. Em virtude de suas dificuldades de leitura e interpretação dos textos sagrados, muitos fiéis não conseguem questionar suas lideranças.
ENGAJANDO O APOCALIPSE
Com sua leitura literal do Antigo Testamento, o dispensacionalismo destacou as preocupações com o apocalipse e popularizou entre fiéis evangélicos brasileiros expressões como “Grande Tribulação” (período de aflição que antecede à volta de Jesus) e “arrebatamento” (o resgate dos fiéis por Cristo). Foram termos como esses que ganharam impulso nas buscas no Google com o ataque do Hamas a Israel em outubro.
Segundo o pastor Gonçalves, antes mesmo da criação do Estado judeu, alguns cristãos já acreditavam que a restauração de Israel seria um indicativo do fim do mundo, já que ela é mencionada no Antigo Testamento como etapa desse processo. Quando o território foi instituído, em 1948, parte desses religiosos transferiu a leitura que faziam do Israel bíblico para o novo país.
Desde então, diz o pastor, “muita gente olha para Israel como um relógio profético do mundo”, de onde viriam as “pistas” do apocalipse. Esses grupos passaram a interpretar a Bíblia tentando encontrar os sinais do cumprimento de suas profecias no presente, o que deu aos conflitos no Oriente Médio um novo significado.
Segundo o historiador Lyndon Santos, a Guerra Fria ajudou a disseminar a crença de que o apocalipse está próximo nos Estados Unidos, de onde foi importada também para o Brasil. “Esse clima de Terceira Guerra Mundial, guerra nuclear, bomba atômica, criou um ambiente propício para a disseminação de uma interpretação literalista da Bíblia que via um fim do mundo iminente”.
O cruzamento da crença no fim do mundo com interpretações mais radicais vindas da teologia norte-americana tem feito com que a busca por sinais da volta de Jesus, para alguns neopentecostais, ganhe contornos belicistas.
“Há gente que acredita que uma das profecias da Bíblia seria a reconstrução do Templo de Salomão no local onde hoje há uma mesquita e, por isso, dizem que é preciso destruir a mesquita” para que a profecia se cumpra, explica Gonçalves.
Vinícius do Valle, diretor do Observatório Evangélico e pesquisador da relação entre religiões evangélicas e a política, afirma que, no passado, algumas vertentes cristãs já viam terremotos, eclipses e outros desastres naturais pela lente do fim dos tempos.
“O que é novo é a questão da crise climática, da pandemia e do que eles chamam de ‘desordem’ no mundo’, diz o pesquisador, afirmando que alguns líderes veem esses indícios também nas questões identitárias, como os movimentos LGBTQI+ e feminista.
Para Valle, além das mudanças na sociedade, outra razão para o crescimento desse discurso nas redes sociais seria a própria dinâmica do mundo virtual, em que o “engajamento traz receita”. E o fim do mundo, diz, tem potencial para engajar.
Uma checagem do Aos Fatos mostrou, por exemplo, a circulação nas redes de posts que mentem ao dizer que o rio Nilo teria ficado vermelho — realizando, assim, uma profecia bíblica.
“Quem faz esse conteúdo está ganhando em cima do clique. Esse tema junta a questão ideológica, teológica, a dinâmica de funcionamento das redes e o plano econômico. Isso atrai muito picareta”, resume Valle.