Medidas de militares investigados publicadas no Diário Oficial inflaram golpismo no WhatsApp

Por Ethel Rudnitzki e Marco Faustino

9 de fevereiro de 2024, 16h20

Nos últimos meses do governo de Jair Bolsonaro (PL), publicações relacionadas às Forças Armadas e ao Ministério da Defesa editadas no DOU (Diário Oficial da União) foram tiradas de contexto e viralizaram em grupos de política no WhatsApp para sugerir que um golpe já estaria em curso e que ele permaneceria no poder, apesar da derrota nas urnas na tentativa de reeleição.

Entre as medidas, constam algumas assinadas por militares que foram alvos da operação autorizada pelo STF (Supremo Tribunal Federal) e deflagrada pela PF (Polícia Federal) nesta quinta (8), no âmbito da investigação sobre a tentativa de golpe no 8 de Janeiro. As correntes distorcem o conteúdo das normas e medidas burocráticas editadas pelo Executivo a fim de manter a base engajada com a promessa de um golpe militar.

A investigação da PF revela que militares golpistas “se utilizavam de vazamento de informações falsas e realização de interpretação fraudulenta de documentos que tratavam do alinhamentos dos integrantes das Forças Armadas ao intento golpista”, diz trecho da decisão do ministro Alexandre de Moraes divulgada na quinta (8).

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  • No acervo do Golpeflix — memorial digital da escalada de violência após as eleições de 2022 —, o Aos Fatos identificou 14 prints de medidas assinadas por militares investigados que foram tiradas de contexto;
  • Juntas, elas circularam 291 vezes nos grupos monitorados entre novembro de 2022 e janeiro de 2023;
  • Entre as normas, sete foram assinadas pelo então comandante do Exército, Paulo Sérgio Nogueira;
  • Seis pelo general Augusto Heleno, então ministro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional);
  • E uma pelo então chefe-substituto da Secretaria-Geral da Presidência, o general da reserva Mário Fernandes, formado nas Forças Especiais do Exército, grupo conhecido como kids pretos.

Também circulou 72 vezes uma nota assinada pelos três comandantes das Forças Armadas, entre eles o almirante Almir Garnier dos Santos (Marinha), apontado pela PF como integrante de um grupo responsável por “influenciar e incitar apoio aos demais núcleos de atuação por meio do endosso de ações e medidas a serem adotadas para consumação do golpe de Estado”.

A nota, publicada em 11 de novembro de 2022, tratava das manifestações que se espalharam pelo país após o segundo turno, em protesto contra o resultado das eleições. Foi vista como uma resposta à decisão de Alexandre de Moraes que ordenava a desobstrução de vias pelos manifestantes bolsonaristas.

Foco no DOU. Um mandado de injunção assinado por Bolsonaro em 18 de novembro de 2022 direcionou os holofotes de seus apoiadores para publicações no DOU (Diário Oficial da União) em busca de medidas que, supostamente, indicavam a permanência dele no poder.

O mandado não tinha relação com as eleições. Na verdade, se tratava de uma mensagem presidencial registrando o encaminhamento de informações ao STF para o julgamento de um processo, aberto em 2021, sobre um programa de renda mínima.

Nas redes bolsonaristas, porém, um trecho do documento foi compartilhado como se fosse um pedido para obter o código-fonte da urna eletrônica. Caso a medida não fosse atendida, afirmaram os aliados de Bolsonaro, resultaria na prisão de Alexandre de Moraes, então presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

A partir de então, documentos assinados por ministros e oficiais das Forças Armadas começaram a ser compartilhados em grupos de aplicativos de mensagens e nas redes de forma distorcida.

Print mostra post publicado nas redes que comemorava o mandado de injunção de Bolsonaro, como se fosse uma cartada final para mantê-lo no poder.
Gambito da gramática. Mandado de injunção assinado por Bolsonaro foi interpretado por apoiadores como ‘xeque-mate’ do ex-presidente para se manter no poder (Reprodução)

Dias depois, uma portaria assinada pelo então comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira, aprovou o Manual de Mobilização Militar e foi comemorada pelos apoiadores do ex-presidente. O documento estipulava diretrizes para ação do Exércico em caso de eventuais agressões estrangeiras, mas os apoiadores compartilharam como se Brasil estivesse sob “tutela” das Forças Armadas devido à “ameaça externa e interna”.

O documento foi publicado inicialmente em 2015, durante o governo de Dilma Rousseff (PT), e revisado em 2021, durante o governo Bolsonaro.

Print mostra que a aprovação do Manual de Mobilização Militar circulou nas redes como se fosse um indício subliminar de uma tomada de poder por parte dos militares
Para bom entendedor. Bolsonaristas comemoram a aprovação do Manual de Mobilização Militar como se o documento preparasse o país para uma guerra interna tutelada pelas Forças Armadas (Reprodução)

Normas editadas pelo general da reserva Augusto Heleno, então ministro do GSI, publicadas entre dezembro de 2022 e janeiro de 2023, também serviram de munição e estímulo à ideia de que um golpe estaria em curso:

  • Uma resolução assinada em dezembro de 2022 criou grupos técnicos para fiscalizar diversas áreas da infraestrutura do país, como energia e telecomunicações. O documento, no entanto, circulou como se Heleno tivesse decretado que a infraestrutura do país ficaria subordinada ao Ministério da Defesa, o que não ocorreu;
  • Uma portaria editada em dezembro, mas publicada em janeiro de 2023, transferiu um servidor da Abin para a Câmara dos Deputados e gerou a tese enganosa de que Heleno havia assumido a Presidência da República no lugar do presidente eleito Lula.

Print mostra resolução publicada no DOU sobre a criação de grupos técnicos para fiscalizar áreas de infraestrutura no país que circulou no WhatsApp.
Tudo centralizado. Bolsonaristas interpretaram resolução assinada por Heleno como sinal de suposto golpe militar em curso (Reprodução)

Até a nomeação de um militar para coordenar a administração da Granja do Torto — uma das residências oficiais da Presidência da República — pelo então chefe-substituto da Secretaria-Geral da Presidência, o general da reserva Mario Fernandes, foi motivo de especulação e passou a ser compartilhada como se os militares estivessem tomando gradualmente o poder. Era comum, no entanto, que oficiais das Forças Armadas cuidassem da segurança das residências oficiais da Presidência.

Outras assinaturas. Não foram apenas as resoluções assinadas por investigados que serviram para alimentar a retórica de golpe militar. Uma portaria da AGU (Advocacia-Geral da União), que aprovou regimento interno da Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Defesa, foi comemorada por bolsonaristas por supostamente dar ao órgão a atribuição de “interpretar a Constituição”.

Assinada pelo vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos-RS), então senador eleito e atuando como presidente em exercício, as exonerações de Augusto Heleno e do comandante do Exército, Paulo Nogueira, teve prints circulando 20 vezes nos grupos monitorados.

Segundo a PF, uma das linhas de atuação do grupo investigado era “direcionada a desacreditar os militares que, defendendo a Constituição e a legalidade, estavam resistindo às investidas golpistas”. Após a posse presidencial em 1º de janeiro de 2023, Aos Fatos constatou uma onda de ataques a integrantes das Forças Armadas nas redes.

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A decisão de Moraes divulgada na quinta (8) mostrou que o tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro, e outros militares golpistas usaram a Jovem Pan para expor generais que, dentro do Exército, teriam se posicionado contrários à quebra da democracia.

Print de decisão no Diário Oficial sobre exoneração de Augusto Heleno que circulou no WhatsApp.
‘Foi o Judas.’ Print da exoneração de Augusto Heleno no GSI foi usado para acusar Mourão de traição (Reprodução)

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Referências:

1. Aos Fatos (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7)
2. Força Aerea Brasileira
3. UOL
4. Imprensa Nacional (1, 2, 3, 4, 5, 6)
5. Ministério da Defesa (1, 2)
6. Metrópoles

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