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Criminosos vendem imagens de abuso infantil a R$ 5,90 em grupos no Telegram com 2 milhões de membros

Por Gisele Lobato e Marco Faustino

22 de fevereiro de 2024, 17h25

Criminosos têm se aproveitado de falhas de moderação do Telegram para vender acesso a fotos e vídeos de abuso infantil. Em comunidades que somam cerca de 2 milhões de membros, bandidos se valem do anonimato na plataforma de mensagens para oferecer, por valores a partir de R$ 5,90, assinaturas e acesso ilimitado a conteúdos ilegais.

  • O Aos Fatos encontrou 35 grupos com anúncios de venda de conteúdo criminoso retratando abusos a crianças e adolescentes, além de 32 robôs que fornecem chaves Pix para que os interessados possam acessar o material;
  • Dos 35 grupos, apenas sete mantinham link público. Nos demais, o acesso era feito por meio de convites compartilhados em outros canais de conteúdo pornográfico;
  • Juntos, os grupos em que o conteúdo ilegal foi propagandeado reuniam cerca de 2 milhões de membros. O maior deles tinha 179 mil usuários;
  • Após ser procurado pelo Aos Fatos, o Telegram tirou do ar os grupos públicos identificados;
  • A empresa não comentou o assunto até a publicação desta reportagem.

Nas mensagens enviadas nos grupos, os anunciantes usam termos específicos que poderiam ser banidos da plataforma, caso houvesse moderação.

Trata-se de uma variedade de combinações entre letras e números, com referências à sigla “CP” (child pornography, em inglês). Aos Fatos optou por não reproduzir nesta reportagem tais combinações, para não facilitar a disseminação do conteúdo criminoso.

Anúncios de conteúdos de abuso infantil que circulam no Telegram
Menos de R$ 10. Acesso a milhares de vídeos de abuso infantil em grupos no Telegram custa a partir de R$ 5,90.

O artigo 240 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) diz que é crime “produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente”. A pena é de quatro a oito anos de prisão e multa.

A mesma punição é aplicada a quem vende ou expõe a venda de conteúdo que contenha cena de sexo ou pornográfica envolvendo menores de idade. Para quem compra ou armazena esse tipo de conteúdo, a pena varia de um a quatro anos de prisão e multa.

É possível denunciar conteúdo sobre abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes de forma anônima no Disque 100 ou na Central Nacional de Denúncias da ONG Safernet Brasil.

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‘ACESSO VIP’


Nos grupos do Telegram, cada anúncio direciona o interessado a um usuário ou robô, por meio do qual é possível concluir o pagamento e ter acesso temporário ou permanente a fotos e vídeos de abuso infantil. O processo funciona da seguinte maneira:

  • O valor do acesso permanente varia entre R$ 5,90 e R$ 79,90;
  • A principal forma de pagamento é por meio de uma chave Pix (CPF, email, chave aleatória ou QR Code), mas em alguns casos é possível usar contas no PayPal ou criptoativos;
  • Aos Fatos identificou 22 chaves Pix no total, sendo 15 registradas em nome de pessoas físicas e sete de MEIs (microempreendedores individuais);

No caso de MEIs, é possível obter o CNPJ a partir das chaves Pix. Utilizando o CruzaGrafos, ferramenta da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) que mostra informações societárias de empresas, o Aos Fatos verificou que há indícios do possível uso de laranjas na venda de conteúdo de abuso infantil:

  • Entre os indícios estão, por exemplo, o fornecimento de contas falsas de email para a Receita Federal. Dos sete endereços de email, dois não existem;
  • Cinco MEIs alegam estar no estado de São Paulo, um no Maranhão e o outro em Goiás. Por meio do Google Maps, Aos Fatos verificou que os endereços informados por quatro microempreendedores não existem;
  • Um dos MEIs não forneceu número de telefone para contato nem o endereço no qual supostamente está estabelecido.
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BANALIZAÇÃO


A disseminação de imagens de abuso infantil no Telegram não é novidade. Em 2018, o aplicativo chegou a ser banido da Apple Store devido aos crimes cometidos lá dentro. Um estudo do Stanford Internet Observatory divulgado em junho passado que analisou as políticas das plataformas sobre abuso infantil (CSAM, na sigla em inglês) destacou o descontrole do Telegram para coibir esse tipo de conteúdo.

Em dezembro, o Aos Fatos mostrou que o aplicativo permitia a disseminação de robôs que usam IA (inteligência artificial) para criar “deep nudes”, muitas vezes produzidos para retratar crianças e adolescentes reais. A reportagem procurou a plataforma duas vezes para comentar o caso, mas não obteve resposta.

A circulação de imagens de abuso contra crianças e adolescentes era associada a canais de acesso mais difícil ao grande público, como torrents ou a deep web, mas nos últimos anos esse tipo de conteúdo chegou à superfície da internet. Um dos motivos é o descaso das plataformas.

“Algumas empresas passaram a enxergar ‘safety’ [‘segurança’] como um custo a ser eliminado ou reduzido e se escoram no guarda-chuva da liberdade de expressão para justificar a inação”, avaliou o presidente da Safernet, Thiago Tavares, em entrevista ao Aos Fatos.

Com as falhas na moderação, usuários passaram a ver na demanda por imagens de abuso infantil uma forma de lucrar, o que também ajuda a explicar o aumento na propagação desses conteúdos, considera Tavares.

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O presidente da Safernet ressalta, porém, que essas imagens “representam cenas graves de violência, muitas vezes de estupro”, considerando que seu compartilhamento “não pode ser naturalizado, não pode ser banalizado e tem que ser enfrentado com muito rigor”.

Em 2023, as denúncias de imagens de abuso contra crianças e adolescentes compartilhadas na internet aumentaram 77% e atingiram o maior patamar desde que há registro, segundo balanço da Safernet (veja o gráfico abaixo). Foram reportados 71.867 casos, recorde da série histórica iniciada em 2006.

Tavares não tem perspectivas de melhora nos números para 2024, ano marcado por disputas eleitorais em diversos países, incluindo o Brasil. “As eleições vão gerar mais demanda para times de moderação já reduzidos, que vão ter que dividir seu tempo e atenção com outros assuntos.”

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Referências:

1. Casa Civil da Presidência da República
2. Childhood
3. Safernet
4. Cruzagrafos
5. BBC
6. Stanford
7. Aos Fatos (1 e 2)

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