O Ministério da Saúde anunciou no dia 25 de julho a retomada do ensino da educação sexual e reprodutiva e da prevenção de ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) no âmbito do programa Saúde na Escola.
- Peças desinformativas começaram a circular, como um vídeo de uma demonstração sobre uso de preservativo em uma universidade compartilhado como se mostrasse estudantes menores de idade, o que é mentira;
- Já em uma ofensiva liderada por políticos de oposição e pessoas contrárias ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), as alegações são de que o programa vai sexualizar crianças, o que também não é verdade.
O PSE — sigla pela qual é conhecido o programa integrado entre Ministério da Saúde e Ministério da Educação, que prevê parceria com outras pastas e secretarias municipais e estaduais de saúde e educação — possui diretrizes sobre prevenção a violência sexual, cultura de paz e respeito aos direitos humanos, além de hábitos saudáveis e saúde mental.
- A oposição defende que é dever apenas da família, não do Estado, ensinar sobre sexualidade;
- O papel da família é fundamental nesse processo, o que é defendido por Kátia Souto, coordenadora-geral de Equidade e Determinantes Sociais em Saúde no Ministério da Saúde, e outros especialistas consultados pelo Aos Fatos;
- No entanto, dados apresentados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelam que 72,2% dos casos registrados de abuso sexual contra menores aconteceram em ambiente familiar;
- Quando relacionados aos crimes em que os autores foram identificados, 44,4% deles foram cometidos por pais e padrastros.
Educadores e profissionais da saúde argumentam que o tema deve ser abordado no ambiente escolar, para que cada estudante se reconheça como indivíduo — e para que seja capaz de identificar situações de violência sexual, abuso ou assédio.
A seguir, o Aos Fatos esclarece as principais dúvidas em torno do assunto e explica as controvérsias na aplicação da educação sexual e reprodutiva e prevenção de ISTs no programa Saúde na Escola.
- O que é educação sexual?
- Qual é a legislação sobre Educação no Brasil?
- A BNCC prevê o ensino da educação sexual nas escolas?
- O que é o programa Saúde nas Escolas?
- Qual é a proposta do governo?
1. O QUE É EDUCAÇÃO SEXUAL?
Ao contrário do que pregam publicações nas redes, a educação sexual nada tem a ver com o estímulo à atividade sexual. Especialistas consultados por Aos Fatos explicam que o que gera um estigma sobre o tema são justamente mitos, tabus e preconceitos em torno da palavra “sexual”.
A temática não se resume ao sexo. A educação sexual inclui a compreensão do aluno como indivíduo, a proteção e prevenção contra violências, a percepção do funcionamento do próprio corpo — principalmente em relação à saúde reprodutiva —, a construção de autoconhecimento corporal, conhecimentos sobre as transformações provocadas pela puberdade, além de abordar aspectos emocionais e comportamentais.
Mirian Pacheco, professora e coordenadora do Gecimas (Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação em Ciências, Matemática e Sexualidade) da UFABC (Universidade Federal do ABC), explica que o tema deve ser abordado em sala de aula e no ambiente escolar de maneira planejada, respeitadas as limitações de maturidade dos estudantes. “A forma de abordagem, que é fundamental, é aquela respeitando sempre o nível de desenvolvimento cognitivo e emocional dos alunos”, afirma.
A professora ressalta a importância da formação dos professores e da equipe pedagógica para o desenvolvimento de ações relacionadas à educação sexual. “A maior parte dos professores busca uma autoformação relacionada à questão da educação sexual e vai muito ao encontro do desejo de cada professor em trabalhar esse tema na sala de aula”, aponta Pacheco, que cobra, ainda, a inclusão do ensino da educação sexual nos cursos de licenciatura e formação continuada.
Ricardo Desidério, professor e chefe de divisão do Grupo de Pesquisa em Educação e Diversidade da Unespar (Universidade Estadual do Paraná), também considera que a educação sexual é um direito do estudante de aprender mais sobre si próprio e seus comportamentos.
Ele reforça a importância do tema para prevenção de violências. “Quando trabalhamos essa questão em sala de aula, uma criança que se sentiu segura vai lá e denuncia. É um efeito dominó, porque outras crianças também se sentem encorajadas a denunciar. É assustador, mas ao mesmo tempo reforça a importância desse trabalho”, relata.
2. QUAL É A LEGISLAÇÃO SOBRE EDUCAÇÃO NO BRASIL?
A LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) é o principal normativo da educação do país. É ela que estabelece diretrizes e bases do sistema educacional brasileiro, público e privado, da educação básica ao ensino superior. Após oito anos de tramitação no Congresso, período iniciado logo após promulgação da Constituição de 1988, o texto foi aprovado em 1996, no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
- A LDB passou por diversas alterações feitas por via legislativa, como a inclusão do ensino de história e cultura afro-brasileira, em 2003, e a criação do novo ensino médio em 2017;
A ideia de uma base nacional comum foi introduzida pelo artigo 26 da LDB, que estabelece que “os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum”.
- O PNE (Plano Nacional de Educação), aprovado pelo Congresso Nacional em 2014 e sancionado pela então presidente, Dilma Rousseff (PT), delimita os planos de ação e metas para a educação brasileira. Entre eles, está a criação de uma base nacional comum dos currículos escolares;
- A BNCC começou a ser construída a partir de 2015, com reuniões e audiências públicas promovidas pelo CNE (Conselho Nacional de Educação), e colaborações da sociedade civil, entidades públicas e privadas relacionadas à educação básica;
- Em 2017, a BNCC foi aprovada no governo Michel Temer (MDB). O objetivo da base é atuar como documento orientativo, que define as habilidades e aprendizagens que um estudante da rede de ensino deve obter ao final do seu ciclo escolar.
3. A LEGISLAÇÃO PREVÊ O ENSINO DA EDUCAÇÃO SEXUAL NAS ESCOLAS?
Não existe, atualmente, uma legislação específica sobre educação sexual no país. No entanto, especialistas consultados pelo Aos Fatos explicam que o tema é tratado de forma transversal nas disciplinas. “Há vários documentos que nos possibilitam trabalhar o tema”, explica Desidério.
Segundo Thiene Cassiavillani, pesquisadora do Gecimas da UFABC, apesar de o termo “educação sexual” não ser citado na LDB, os valores apresentados pela lei estão permeados pelo tema. “Um exemplo disso é o artigo 3. Os incisos I a IV, apesar de não mencionarem pelo nome, tratam de princípios que são objetos da educação sexual”, afirma a pesquisadora.
Na BNCC, o termo “educação sexual” também não aparece na versão final. Na primeira versão enviada pelo governo Temer à imprensa em 2017, o mais próximo de educação sexual era “orientação sexual”, que aparecia cinco vezes no texto em parágrafos que falavam sobre respeito à diversidade. No entanto, o MEC enviou uma nova versão sem o termo, alegando que a retirada foi uma decisão do comitê responsável pelo documento.
Entretanto, segundo Cassiavillani, o documento também apresenta espaços nos quais o tema pode ser trabalhado em dimensões mais amplas. Temas relacionados à reprodução e à sexualidade humana, por exemplo, são previstos nos currículos escolares a partir do 8º ano na unidade temática “vida e evolução”, no ensino de ciências.
“A unidade temática ‘vida e evolução’ propõe o estudo de questões relacionadas aos seres vivos (incluindo os seres humanos). (…) Nos anos finais, são abordados também temas relacionados à reprodução e à sexualidade humana, assuntos de grande interesse e relevância social nessa faixa etária, assim como são relevantes, também, o conhecimento das condições de saúde, do saneamento básico, da qualidade do ar e das condições nutricionais da população brasileira.” — BNCC
Além da unidade temática “Vida e evolução”, a pesquisadora destaca os itens 8 e 9 das competências gerais, que versam sobre autocuidado, autoconhecimento, exercício da empatia e da valorização da diversidade de indivíduos. Cassiavillani também afirma que a questão da sexualidade, de maneira mais abrangente, está presente nas unidades temáticas “modernização, ditadura civil-militar e redemocratização: o Brasil após 1946” e “a história recente”, na disciplina de história do 9° ano.
Há, ainda, uma diferença entre o que é possível quando relacionado à BNCC e ao PSE. É o que explica Mirian Pacheco, que ressalta que a base nacional não determina ações voltadas para a educação sexual, e sim possibilidades. “A BNCC não determina as ações que devem ser realizadas pelas escolas, já o Programa Saúde na Escola tem ações relacionadas que envolvem outros agentes. O PSE tem iniciativas previstas e focadas, enquanto na BNCC só há a intencionalidade”, comentou.
4. O QUE É O PROGRAMA SAÚDE NAS ESCOLAS?
Instituído em 2007 pelo Decreto nº 6.286, o PSE é uma política interfederativa e intersetorial que envolve o Ministério da Saúde e da Educação. O objetivo do programa é desenvolver, de forma articulada e descentralizada, ações de promoção, prevenção e atenção à saúde para estudantes da rede pública de educação básica, da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, e do EJA (educação de jovens e adultos).
O PSE é constituído por cinco componentes: avaliação das condições de saúde dos estudantes; promoção da saúde e atividades de prevenção; educação permanente e capacitação de profissionais da Educação e Saúde; monitoramento e avaliação da saúde dos estudantes; e o monitoramento e avaliação do programa.
Para ser aplicado, o programa precisa ser aderido pelos estados e municípios. No dia 25 de julho, o Ministério da Saúde publicou uma portaria destinando R$ 90,3 milhões para os municípios que aderiram à iniciativa.
5. QUAL É A PROPOSTA DO GOVERNO?
A proposta atual prevê a retomada de temas já previstos pelo decreto nº 6.286 e que não foram abordados pela gestão anterior, como prevenção de violências e acidentes, promoção da cultura de paz e direitos humanos, bem como a saúde sexual e reprodutiva e prevenção de HIV/ISTs.
Segundo Souto, houve um silenciamento de algumas temáticas nos últimos quatro anos. “O repasse financeiro desse período orienta apenas para ações sobre alimentação saudável, prevenção da obesidade e promoção da atividade física. É claro que, com esse incentivo, os estados e municípios passam a desenvolver apenas ações neste sentido”, explica a coordenadora.
Há também uma ampliação do diálogo com outros ministérios, como o das Mulheres, Igualdade Racial, Direitos Humanos, Esporte e Cultura, e da participação social no desenvolvimento das ações. “O território tem que ser reconhecido como um local de produção de conhecimento. Nós temos a cidade, o campo, a floresta, as comunidades ribeirinhas, quilombolas, indígenas. É preciso abordagens diferentes para cada local, com linguagens que estejam mais próximas desses educadores e educandos”, analisou a coordenadora.
O PSE passará a tratar apenas de saúde sexual?
Não. As ações previstas no âmbito do PSE compreendem diversos temas, como avaliação clínica, nutricional, oftalmológica, de saúde bucal, auditiva e psicossocial, promoção de alimentação saudável, prevenção do consumo de álcool e drogas, controle do tabagismo e outros. “É um rol de sugestões de temas. Os estados e municípios têm autonomia para escolher o que será trabalhado”, explica Souto.
Segundo a coordenadora, a novidade está por conta de discussões sobre racismo e saúde mental, que foram acrescentados como possíveis temáticas a serem trabalhadas pelo programa.
Para quem é o programa e quais as ações previstas?
Todos os estudantes da rede pública de educação básica, da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, e do EJA serão alcançados pelo programa. Souto frisa que as temáticas são abordadas de formas diferentes para cada faixa etária. “Em Sobral (CE), por exemplo, foi desenvolvido uma forma lúdica de falar sobre o tema para a educação infantil. Foi utilizado o semáforo como paralelo para lugares do corpo onde não pode tocar e onde precisa da sua permissão”, explicou a coordenadora. “Para a juventude, é claro que a temática é abordada de forma diferente”, finaliza.
Já a definição dos tipos de ações e materiais a serem utilizados, fica a cargo dos estados e municípios. “O governo federal organiza o cardápio de ações, mas fica a cargo do programa político-pedagógico das escolas a forma de execução dos trabalhos”, explica Souto. Além de oficinas e materiais educativos, a coordenadora afirma que haverá um protagonismo da formação de professores e da articulação com parceiros que possuam expertise no tema, como a Unesco e os conselhos nacionais.
Pesquisadores consultados por Aos Fatos veem com bons olhos a retomada do ensino de saúde sexual e reprodutiva e da prevenção de ISTs pelo PSE, mas reforçam a necessidade de capacitação de professores e corpo pedagógico das escolas. “O trabalho da educação sexual não acontece da noite para o dia, mas sim com planejamento e acompanhamento diários”, explica o professor Ricardo Desiderio.