Em relatório enviado à ONU (Organização das Nações Unidas) no ano passado, o Brasil mostrou ter retrocedido no cumprimento de uma série de recomendações para a plena garantia dos direitos humanos, entre eles o respeito aos direitos sexuais e reprodutivos. Segundo avaliação do documento feita por 31 entidades, redes e coletivos da sociedade civil brasileira, o país falhou em garantir o acesso das mulheres a serviços de saúde como a assistência pré-natal e a interrupção legal da gravidez.
Diversos casos que repercutiram na imprensa ao longo dos últimos anos demonstram os problemas apontados no relatório: em 2020, por exemplo, uma menina de dez anos que havia sido estuprada teve seu aborto dificultado por membros do próprio governo. No mesmo ano, o Brasil foi incluído em um pacto internacional contrário a quaisquer formas de interrupção de gravidez.
Descritos em protocolos nacionais e internacionais, os direitos sexuais e reprodutivos garantem a liberdade de um indivíduo para exercer a própria sexualidade sem discriminação, o acesso à saúde sexual e reprodutiva e o apoio no planejamento em decisões sobre maternidade. A seguir, Aos Fatos explica o que diz a lei sobre alguns dos assuntos centrais desse tema, como gravidez, contracepção e aborto, e quais os retrocessos vividos no Brasil nos últimos anos:
- O que são direitos sexuais e reprodutivos?
- O que diz a lei sobre a contracepção e a prevenção de ISTs?
- O que diz a lei sobre os direitos das gestantes?
- O que diz a lei sobre o aborto?
- Quais foram os retrocessos sofridos nos últimos anos?
1. O que são direitos sexuais e reprodutivos?
Os direitos sexuais e reprodutivos garantem o respeito à autonomia de um indivíduo sobre o próprio corpo e a liberdade de viver a própria sexualidade sem discriminação, com acesso à saúde e com a salvaguarda do direito de decidir sobre gravidez e contracepção.
Segundo o Ministério da Saúde, estão entre os direitos sexuais:
- Viver e expressar livremente a sexualidade e a orientação sexual, sem discriminação e violência;
- Escolher o próprio parceiro sexual;
- Consentir ou não sobre a relação sexual;
- Ter relações sexuais independentemente de intenções reprodutivas;
- Praticar sexo seguro, para a prevenção de doenças e da gravidez indesejada, com serviços de saúde que garantam atendimento de qualidade, com privacidade e sem discriminação;
- Ter acesso à educação sexual e reprodutiva.
Já os direitos reprodutivos são:
- Poder decidir, de forma livre e responsável, por ter ou não ter filhos, e, em caso positivo, quantos filhos conceber e em que momento da vida;
- Ter acesso a informações, métodos e técnicas para ter ou não ter filhos.
2. O que diz a lei sobre a contracepção e a prevenção de ISTs?
Em seu artigo 226, a Constituição Federal determina que o planejamento familiar é de livre decisão do casal e que cabe ao Estado propiciar recursos para o exercício desse direito. A lei que regulamenta esse artigo, sancionada em 1996, afirma que é obrigação do poder público garantir o acesso à contracepção e ao controle de ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis), além da distribuição de todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção cientificamente comprovados.
Os métodos anticoncepcionais começaram a ser integralmente distribuídos pelo Ministério da Saúde aos estados e municípios a partir de 2000. Atualmente, são oferecidos o DIU (dispositivo intrauterino), os preservativos masculino e feminino e os anticoncepcionais injetáveis ou em pílula.
Também é possível realizar procedimentos definitivos, como a laqueadura e a vasectomia. Antes da sanção da lei 14.443, em setembro do ano passado, era necessário que o indivíduo tivesse 25 anos e a aprovação do cônjuge para realizar o procedimento; agora, a idade mínima é de 21 anos e não é necessário o consentimento do parceiro. Não há idade mínima caso o indivíduo tenha no mínimo dois filhos. A norma entrou em vigor na última segunda-feira (6).
Além de distribuir gratuitamente preservativos, que evitam a transmissão de ISTs, o Ministério da Saúde incluiu em 2014 no PNI (Plano Nacional de Imunizações) a vacina contra o HPV. Transmitido sexualmente, o vírus é responsável por quase 70% dos casos de cânceres cérvicouterinos, além de casos de câncer peniano, anal, na cabeça e no pescoço. No Brasil, a vacina é aplicada em crianças e adolescentes de nove a 14 anos.
3. O que diz a lei sobre a garantia de saúde à gestante?
A lei 9.263, de 1996, que regulamenta um dispositivo da Constituição sobre o planejamento familiar, determina que é obrigação do SUS garantir a assistência à concepção e à contracepção, o atendimento pré-natal e o auxílio ao parto, ao puerpério e ao recém-nascido. Já a portaria 569, de 2000, institui a necessidade de realizar ao menos seis consultas pré-natal e uma série de exames e testes para doenças como a Aids e a sífilis, que garantem a saúde da mãe e da criança.
Outras normas publicadas ao longo das últimas três décadas garantiram à gestante o direito de ter conhecimento e acesso prévio à maternidade onde vai ocorrer o parto, o atendimento preferencial em hospitais, órgãos públicos e bancos e a possibilidade de levar um acompanhante ao trabalho de parto e ao pós-parto imediato.
Direitos trabalhistas. A gestante que trabalha com carteira assinada também tem uma série de direitos garantidos pela CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas):
- Garantia de emprego desde a confirmação da gravidez até cinco meses depois do parto;
- Licença maternidade de 120 dias, sem prejuízo do emprego e do salário;
- Possibilidade de romper contrato de trabalho prejudicial à gestação, mediante apresentação de atestado médico;
- Transferência de função, quando as condições de saúde exigirem, com retomada da função anterior após o retorno da licença;
- Dispensa do horário de trabalho para realização de, no mínimo, seis consultas e exames complementares;
O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) também determina a obrigatoriedade de empregadores e instituições propiciarem condições adequadas para o aleitamento materno, inclusive para mulheres privadas de liberdade.
4. O que diz a lei sobre o aborto?
Segundo o Código Penal, praticar a interrupção da gravidez é crime no Brasil, com penas previstas em caso de aborto consentido e não consentido. Há, no entanto, algumas exceções previstas em lei:
- Quando a vida da gestante corre risco;
- Quando a gravidez é decorrente de estupro e há consentimento da gestante, ou, em caso de incapacidade, de seu representante legal;
- No caso de fetos anencéfalos (sem cérebro).
O Código Penal não estabelece um prazo gestacional máximo para que a mulher possa realizar um aborto. Nos casos permitidos em lei, o procedimento deve ser realizado por uma equipe multidisciplinar, formada por médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais. Não há necessidade de autorização judicial. Como nem todos os estabelecimentos realizam o procedimento, é obrigação do Estado garantir transporte para que a mulher possa ser encaminhada à instituição de referência mais próxima.
Caso a mulher pratique a interrupção da gravidez em situação que foge das exceções previstas em lei, o Código Penal determina as seguintes penas:
- Quando a gestante provoca o aborto ou consente que ele seja provocado por terceiros, a pena é de um a três anos de detenção;
- Quando um terceiro realiza o aborto com consentimento da gestante, a pena é de um a quatro anos de reclusão; quando não há consentimento, são três a dez anos de reclusão.
5. Quais foram os retrocessos sofridos no Brasil nos últimos anos?
Contrário ao aborto, ao planejamento familiar e à equiparação salarial, o ex-presidente Jair Bolsonaro foi responsável por levar a violência contra a mulher a um nível institucional, segundo o relatório “Direitos das Mulheres: Combatendo o Retrocesso”, produzido pelo instituto francês Jean Jaurès em parceria com a ONG Equipop, cujos resultados foram divulgados no início deste ano. No que se refere aos direitos sexuais e reprodutivos, o documento aponta retrocessos principalmente na defesa do aborto legal.
Um exemplo citado pelo relatório é a assinatura, em outubro de 2020, da Declaração de Genebra, contrária a políticas que preveem o acesso ao aborto, mesmo em situações previstas em lei. Por outro lado, o país ficou de fora de uma declaração da ONU sobre direitos sexuais e reprodutivos, que defendia a tomada de medidas que assegurassem a igualdade de direitos para meninas e mulheres.
Outro retrocesso apontado pelo relatório foi a nomeação do médico e ativista antiaborto Raphael Câmara à Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Defensor da abstinência sexual como método de contracepção, Câmara foi responsável pela edição, em 2022, de uma cartilha que afirmava que todo aborto era crime e que casos com “excludente de ilicitude” deveriam ser investigados pela polícia.
Em agosto de 2020, o Ministério da Saúde também publicou uma portaria — posteriormente alterada — que obrigava profissionais de saúde a comunicarem a polícia em casos de aborto legal e a mostrarem uma imagem do ultrassom do feto antes de iniciarem o procedimento. O governo também interferiu em casos de abortamento legal, como o de uma menina de dez anos que havia sido estuprada. Ela teve seu procedimento dificultado pela então ministra Damares Alves (Republicanos-DF), hoje senadora, que tentou protelar a intervenção para obrigá-la a dar à luz.
Outros exemplos de retrocesso foram a recomendação do Ministério da Saúde, em maio de 2019, da abolição do termo “violência obstétrica” — usado para denunciar abusos cometidos contra gestantes — de documentos e políticas públicas; o estímulo, na caderneta da gestante, à episiotomia, corte feito na vagina durante o parto, que não tem eficácia comprovada; e a substituição da Rede Cegonha, voltada ao atendimento multidisciplinar da gestante, pela Rami (Rede Materna e Infantil), que dá ênfase ao trabalho do obstetra.
Mudanças. Em 17 de janeiro, o Ministério dos Direitos Humanos, em parceria com o Ministério da Mulher, anunciou a saída do Brasil do Consenso de Genebra e sinalizou a inclusão do país em dois compromissos internacionais de garantia dos direitos das mulheres. O governo Lula também revogou a portaria de 2020 do Ministério da Saúde que estimulava profissionais de saúde a comunicarem abortos decorrentes de violência sexual à polícia e sinalizou que deve trazer de volta a Rede Cegonha.