Méuri Elle/Aos Fatos

🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Setembro de 2023. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

O que diz o projeto no Congresso que tenta proibir o casamento homoafetivo

Por Amanda Ribeiro

26 de setembro de 2023, 14h58

Dez anos após o Judiciário garantir o casamento e a união estável a pessoas do mesmo gênero, um projeto de lei tenta revogar o direito e declarar como legítimas apenas uniões heterossexuais. Após receber parecer favorável, o PL 5.167/2009 pode ser votado na próxima quarta-feira (27) na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados.

Pela falta de lei que regulamente o tema, a união estável e o casamento homoafetivos são garantidos por uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) e uma resolução do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

Alegando a existência de um vácuo legal e se baseando na alegação de que a Constituição determina que a união estável e o casamento são direitos exclusivos de heterossexuais, parlamentares conservadores tentam invalidar as decisões do Judiciário, que têm força de lei. Porém, o conflito entre o que o Congresso tenta aprovar e o que o STF já decidiu pode fazer com que o PL defendido pelos deputados seja considerado inconstitucional.

A seguir, Aos Fatos explica o que diz o projeto que tenta proibir o casamento homoafetivo, quais são os direitos garantidos atualmente a casais formados por indivíduos do mesmo gênero e o que ocorreria em caso de aprovação do projeto — inclusive com as uniões já formalizadas.

  1. O que diz o PL que tenta proibir o casamento homoafetivo e qual é o estágio de tramitação?
  2. Quais são os direitos atualmente garantidos pelo Judiciário?
  3. A Constituição determina que o casamento é exclusivamente entre homem e mulher?
  4. O que pode acontecer se o projeto for aprovado?

1. O que diz o PL que tenta proibir o casamento homoafetivo e qual é o estágio de tramitação?

O projeto originalmente em discussão na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família é o 580/2007, apresentado pelo então deputado Clodovil Hernandes (1937–2009), ex-apresentador de programas matinais que era assumidamente gay. No entanto, outras propostas foram apensadas ao projeto — algumas com sentido inverso do texto original, que buscava garantir a união homoafetiva.

Um dos apensados é o PL 5.167/2009, do ex-deputado Capitão Assumção (PSB-ES), que propõe alterar o Código Civil para estabelecer que nenhuma relação entre pessoas do mesmo gênero pode se equiparar ao casamento ou à entidade familiar.

Essa é a proposta que deve tramitar no Legislativo agora, caso seja aprovado o parecer do relator Pastor Eurico (PL-PE), que pediu pelo arquivamento do PL 580/2007 e de todos os outros textos apensados a ele, à exceção do PL 5.167/2009.

No parecer, Pastor Eurico defende que o casamento “entre pessoas do mesmo sexo é contrário à verdade do ser humano” e alega que o Judiciário “usurpou competência do Congresso” ao equiparar a união homoafetiva a uniões heterossexuais.

O parlamentar também afirma que qualquer norma que preveja a união estável ou o casamento entre pessoas do mesmo gênero afronta o texto constitucional, que reconheceria apenas a união entre homem e mulher. Essa interpretação do texto constitucional contradiz o posicionamento do STF em julgamento sobre o tema.

Apresentado no dia 29 de agosto, o parecer já teve sua votação adiada duas vezes. Na última terça (19), parlamentares concordaram em deliberar sobre a proposta na próxima quarta (27), um dia depois da realização de uma audiência pública.

Caso o relatório seja aprovado, o projeto segue para a CDHMIR (Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial) e então, para a CCJC (Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania) em caráter conclusivo. Se aprovado nas comissões, vai então direto para o Senado, sem passar pelo Plenário da Câmara, a não ser que haja recurso assinado por ao menos 52 deputados.

Em primeiro plano, há um bolo de casamento com bonecos que representam dois casais homoafetivos. Ao fundo, duas pessoas de terno se abraçam e usam broches com a bandeira LGBTQIA+
União. Casais homoafetivos passaram a ter os mesmos direitos de casais formados por homem e mulher em 2011, com decisão do STF (Luiz Silveira/Agência CNJ)

2. Quais são os direitos atualmente garantidos pelo Judiciário?

Sem legislação específica que regulamente o tema, a união estável e o casamento civil entre pessoas do mesmo gênero são garantidos atualmente no Brasil por uma decisão do STF e uma resolução do CNJ.

  • Em maio de 2011, os ministros do Supremo decidiram, por unanimidade, equiparar as relações entre pessoas do mesmo gênero às uniões estáveis celebradas entre homens e mulheres;
  • O foco da discussão foi o artigo 1.723 do Código Civil, que definia como união estável a relação “entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”;
  • O relator, ministro Carlos Ayres Britto, alegou em seu voto que a Constituição proíbe qualquer forma de discriminação em razão de sexo, raça e cor, e que isso também se aplica à orientação sexual;
  • Já Edson Fachin ressaltou que diversos princípios constitucionais, como o da igualdade, o da liberdade e o da dignidade humana, garantem a casais homossexuais os mesmos direitos de casais heterossexuais;
  • Com a decisão, casais homoafetivos passaram a ter direitos como pensão, comunhão de bens e participação em plano de saúde. Até então, esses benefícios só podiam ser obtidos a partir de decisões individuais no Judiciário.

Dois anos depois do julgamento no STF, o CNJ editou a resolução 175/2013, que determina que os cartórios não podem se negar a celebrar casamentos civis homoafetivos ou converter uniões estáveis entre pessoas do mesmo gênero em casamentos.

Três trechos do relatório do ex-ministro Ayres Britto, que argumentou que a Constituição garante a igualdade entre homens e mulheres a despeito de sua orientação sexual
(Méuri Elle/Aos Fatos)

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3. A Constituição determina que o casamento é exclusivamente entre homem e mulher?

Não. Não há na Constituição Federal qualquer determinação de que o casamento deve ser realizado apenas entre homem e mulher ou qualquer definição de família que abarque apenas casais heterossexuais.

  • O artigo 226, parágrafo primeiro, determina que “o casamento é civil e gratuita a celebração”;
  • A menção a “homem e mulher” aparece no parágrafo terceiro, que afirma ser “reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar” para efeito da proteção do Estado;
  • Logo em seguida, a definição de entidade familiar é ampliada para abranger também “a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.

Essas redações buscam garantir direitos a famílias que fogem à configuração tradicional — por exemplo, por não serem casadas no papel ou por serem monoparentais. O mesmo ocorria no artigo 1.723 do Código Civil, que definia entidade familiar como “união estável entre o homem e a mulher” e motivou o julgamento de 2011 do STF.

A decisão do STF sobre esse artigo do Código Civil entendeu que ele não pode ser interpretado de forma restritiva — ou seja, o texto não proíbe a união homoafetiva. Em seu voto, o ministro Ricardo Lewandowski chegou a citar o artigo constitucional que faz menção a “homem e mulher”, afirmando que o fato de a Constituição reconhecer a união de casais heterossexuais não significa que uniões homoafetivas sejam automaticamente proibidas.

A interpretação do STF tem como base outros artigos que estão na própria Constituição, como os que garantem a igualdade, o pluralismo, a liberdade de dispor da própria sexualidade e o direito à intimidade e à privacidade. “Nem uma emenda constitucional poderia ir contra esses direitos e princípios, porque eles são cláusulas pétreas, são a parte da Constituição que não pode ser alterada”, afirma Juliana Cesario Alvim, professora da Faculdade de Direito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e da Central European University.

Argumento comum entre políticos conservadores, a alegação enganosa de que a Constituição determina que o casamento é direito exclusivo de casais heterossexuais foi repetida em ao menos quatro ocasiões pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) durante o exercício do mandato, de acordo com o contador de declarações do Aos Fatos.

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4. O que pode acontecer se o projeto for aprovado?

Em razão das decisões já proferidas pelo Poder Judiciário e do que diz a própria Constituição, especialistas consultadas pelo Aos Fatos afirmam que o PL 5.167/2009 é inconstitucional.

De acordo com a defensora pública da União Daniela Brauner, a decisão do STF de 2011 não inovou na interpretação do conceito de união estável, mas sim garantiu a leitura do Código Civil sob a ótica constitucional da garantia de igualdade a todos os indivíduos.“Qualquer projeto de lei que venha a alterar essa interpretação não estaria indo ao encontro do texto originário da Constituição e, por esse motivo, acabaria sendo inconstitucional”, explica.

Juliana Cesario Alvim concorda e explica que, caso a norma fosse aprovada, a declaração de inconstitucionalidade não seria automática. Seria necessário chegar um novo recurso ao STF, que analisaria o trecho da nova lei e voltaria a decidir se ele é válido ou não diante dos preceitos da Carta Magna. “No Brasil, não existe controle preventivo de constitucionalidade de lei. Ou seja, não dá para fazer o juízo de constitucionalidade antes que a lei entre em vigor.”

O método mais rápido para questionar o projeto é a proposição de uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade), em que o STF é instado a analisar a constitucionalidade de uma lei. A Carta Magna determina que apenas a Presidência, as mesas do Legislativo, governadores de estados, o Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e partidos políticos com representação no Congresso podem impetrar ações do tipo.

Esse foi o caso do julgamento de 2011 que levou o STF a equiparar uniões homoafetivas a uniões heterossexuais. Na época, a corte analisava uma ADI impetrada pela PGR (Procuradoria-Geral da República) a partir de uma ação enviada pelo governo do Rio de Janeiro que questionava normas que reduziam os direitos da população LGBTQIA+.

Ainda que a lei entre em vigor, ela não seria capaz de anular casamentos homoafetivos já realizados. A Constituição, em seu artigo 5º, determina que uma norma não pode prejudicar um direito adquirido, um ato jurídico perfeito ou a coisa julgada. Isso significa, portanto, que caso o PL seja aprovado e sancionado, os casamentos já realizados permanecerão válidos e inalterados.

“A Constituição dá uma segurança jurídica: as pessoas casadas não poderiam ter seus casamentos desconstituídos a partir de uma lei que pretendesse retroagir para coibi-los”, explicou Juliana Cesário Alvim ao Aos Fatos.

Outro lado. Aos Fatos entrou em contato com o deputado Pastor Eurico, relator do PL 580/2007, para questionar sua afirmação de que qualquer norma que preveja a união estável ou o casamento homoafetivo representa “afronta direta à literalidade do texto constitucional”.

Foram listados os argumentos dos ministros do STF e os posicionamentos dos especialistas consultados pela reportagem, que discordam da interpretação do relatório. O parlamentar não respondeu até a publicação deste texto.

Colaborou Luiz Fernando Menezes.

Referências:

1. Câmara (1, 2 e 3)
2. STF (1 e 2)
3. CNJ
4. G1
5. Planalto (1, 2 e 3)
6. Senado
7. Aos Fatos

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