Em março, durante audiência pública na Câmara, o deputado André Fernandes (PL-CE) fez uma acusação infundada contra o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino (PSB), com base em informações do Jusbrasil, empresa que disponibiliza documentos públicos e vende serviços por assinatura. “O senhor acabou de falar que não responde a nenhum processo e no Jusbrasil diz que o senhor responde a 277 processos”, disse o parlamentar.
Ex-juiz federal e ex-governador do Maranhão, Dino assinou e foi citado em milhares de documentos públicos relativos a ambos os cargos, o que não necessariamente significa que ele “responde” a processos. Na Câmara, o ministro rebateu: “Dizer com base no Jusbrasil que eu respondo a 277 processos se insere mais ou menos no mesmo continente mental de quem acha que a Terra é plana”.
Mais recentemente, a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), relatora da CPMI do 8 de Janeiro, teve seu nome associado de forma falsa a “70 processos” — número que aparece na pesquisa do site.
Informações do Jusbrasil têm sido usadas para dar a entender que políticos são réus em ações judiciais em que desempenham outros papéis, como advogado ou juiz. Prints do site tirados de contexto somam milhares de compartilhamentos nas redes e em aplicativos de mensagem, nos quais não é possível estimar o alcance.
“É um erro afirmar que o número de menções a um nome em processos judiciais se configura em um indicativo de crime ou desvio moral”, corroborou o Jusbrasil em nota ao Aos Fatos. “Este é um mau uso de informações jurídicas públicas.”
As interpretações erradas de resultados da busca da plataforma desconsideram vários pontos, como a possibilidade de existência de homônimos das pessoas pesquisadas e a necessidade de diferenciar os diversos personagens e estágios de uma ação judicial.
A dificuldade em identificar os atores do processo — autor, réu e representante — é outro elemento que provoca equívocos na interpretação dos dados. Isso é agravado pelo fato de o Jusbrasil não disponibilizar filtros que permitam ao usuário consultar apenas ações em que determinada pessoa consta como ré, por exemplo.
A empresa afirmou que indica no resultado das buscas que os processos relacionados podem ser das esferas cível, criminal ou trabalhista e que as pessoas envolvidas não são necessariamente rés. Questionada, não comentou a ausência de filtros que permitiriam visualizar de forma mais clara os personagens das ações judiciais.
A fim de esclarecer peças de desinformação criadas a partir de informações do site, o Aos Fatos preparou um guia básico de como efetuar buscas por processos judiciais no Jusbrasil e identificar detalhes que podem ajudar a entender melhor os documentos disponibilizados.
Abaixo, a reportagem mostra como o modelo de negócios da empresa, que gera uma audiência mensal de 40 milhões de acessos, se relaciona com o efeito colateral da desinformação.
POR QUE O JUSBRASIL É RELEVANTE
- Fundada em 2008, a startup é uma das principais da área jurídica no país e, desde 2014, recebeu aportes que somaram US$ 41,9 milhões, segundo a Crunchbase, empresa que mantém um banco de dados com informações financeiras de empresas inovadoras;
- Entre os investidores há atores globais relevantes, como o Founders Fund, de Peter Thiel, cofundador do PayPal que aplicou capital nos estágios iniciais de Airbnb, Facebook e Spotify, entre outras;
- E o Softbank, que separou US$ 8 bilhões para investir apenas em empresas da América Latina e tem participações na maioria das startups da região avaliadas acima de US$ 1 bilhão — como Nubank, QuintoAndar e Rappi —, chamadas de “unicórnios”, no jargão dos investidores;
- O site do Jusbrasil teve crescimento exponencial: atingiu 5 milhões de acessos por mês com dois anos de operação, de acordo com relato dos fundadores ao Projeto Draft;
- Desde então, a audiência foi multiplicada por oito e alcançou a média mensal de 40 milhões de acessos, segundo a ferramenta SimilarWeb, fixando-se no topo da categoria de sites jurídicos — o que inclui todos os sites especializados em notícias jurídicas e todos os portais do Judiciário.
#GROWTH🚀
A partir da premissa de que informações públicas hospedadas em sites do Judiciário não são indexadas por serviços de busca como o Google, o Jusbrasil passou a organizá-las e disponibilizá-las para que pudessem ser encontradas por qualquer pessoa. Segundo a empresa, “a busca é oferecida de forma gratuita” e os serviços por assinatura servem “para quem deseja aprofundar no entendimento e construção da argumentação jurídica”.
Como ocorre com a maioria dos serviços por assinatura oferecidos na internet, o Jusbrasil necessita que parte da audiência gratuita do site se converta em audiência paga, ou seja, em assinantes. Um dos principais indicadores financeiros de startups avaliados por investidores é a receita recorrente — cifra que, no caso do modelo de negócios do Jusbrasil, é diretamente ligada ao número de assinantes.
Uma das estratégias de conversão mais comuns é o uso de anúncios na busca do Google. Por exemplo: um usuário que pesquisar pela frase “como procurar processos” — problema que pode ser resolvido pelos serviços do Jusbrasil — será impactado por um anúncio da empresa.
O Aos Fatos identificou que, só em maio, o Jusbrasil pagou por 493 anúncios na busca do Google com diferentes conteúdos, incluindo termos como “consulte processos por nome”. Apesar de o Google catalogar as peças impulsionadas como medida de transparência, não é possível saber o alcance e o valor gasto.
Questionada sobre essa tática de atração de audiência e conversão de assinantes, o Jusbrasil afirmou que “a esmagadora forma de acesso é orgânica” e que “as campanhas de tráfego pago são meramente complementares”.
BUSCAS IMPRECISAS
Além da pesquisa pelo número do processo, o Jusbrasil permite que um usuário consulte todas as ações que citam um determinado nome. Essa busca, no entanto, esbarra em ao menos duas questões: a existência de homônimos e as diferentes posições ocupadas por personagens de um processo.
Na pesquisa pelo nome completo do ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Luiz de Almeida, por exemplo, o Jusbrasil retorna uma lista de 509 processos de 11 homônimos diferentes. Doutor em direito pela USP, professor universitário e advogado com carreira no setor privado, o ministro atuou em dezenas de processos judiciais antes de ocupar o atual cargo público.
Apesar de o número de 509 processos não ter qualquer relação com Silvio Almeida, peças desmentidas pelo Aos Fatos no ano passado citaram o dado descontextualizado como se ele fosse réu. Outros ministros do Executivo foram alvos da mesma mentira, com números tirados do Jusbrasil.
Além de Almeida e dos exemplos de Flávio Dino e Eliziane Gama, citados no início desta reportagem, outros atores políticos relevantes tiveram atuação em tribunais superiores e, por isso, aparecem em centenas de documentos no Jusbrasil. É o caso do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que antes de assumir cadeira no Legislativo construiu uma carreira como advogado.
Como Dino pediu exoneração da magistratura para seguir carreira política, sua atuação como juiz está restrita a processos antigos; esse, no entanto, não é o caso de Pacheco, que no início buscou conciliar o mandato com a advocacia. O senador só abandonou a função após se eleger presidente da Casa, já que o Estatuto da Advocacia restringe o exercício da função por integrantes de mesas diretoras do Legislativo.
A OAB explicou ao Aos Fatos que o estatuto também restringe o exercício da atividade por ocupantes do Executivo e que parlamentares que não ocupam mesas diretoras não podem atuar “contra ou a favor das pessoas jurídicas de direito público, empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações públicas, entidades paraestatais ou empresas concessionárias ou permissionárias de serviço público”.
PACATO CIDADÃO
Os problemas gerados por interpretações distorcidas de informações do Jusbrasil não são exclusivos de políticos e autoridades. No Reclame Aqui, é possível encontrar diversos relatos de cidadãos comuns que perderam oportunidades ou sofreram represálias no ambiente de trabalho por estarem supostamente envolvidas em ações judiciais — tudo com base no site jurídico, não em informações oficiais.
Nas mensagens, indivíduos afirmam ter sofrido retaliações ou perdido oportunidades de trabalho por aparecerem nos resultados da busca do Jusbrasil em ações que já foram encerradas ou em que não são réus. A empresa aparece com o selo “não recomendada” na plataforma, classificação obtida quando a companhia ignora pelo menos 50% das reclamações cadastradas.
Como o Jusbrasil disponibiliza dados completos sobre processos apenas a assinantes, não é possível acessar detalhes da tramitação sem gastar dinheiro, o que gera consequências negativas, segundo as reclamações. Dos 987 casos identificados no Reclame Aqui que citam o Jusbrasil nos últimos seis meses, ao menos 524 entraram nessa categoria.
O Aos Fatos apresentou as reclamações dos usuários ao Jusbrasil, que afirmou que a plataforma possui uma “ferramenta de anonimização para os usuários que queiram fazer solicitações deste tipo na página do processo”. Esse recurso existe em conformidade com a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), que prevê a proteção dos direitos fundamentais de liberdade e de privacidade em relação ao tratamento de dados pessoais em meio físico ou digital.
De acordo com a advogada Ana Paula Rocha, especialista em direito empresarial, o Brasil não possui um dispositivo específico para tratar casos que busquem a exclusão de informações antigas que possam ser prejudiciais ou que não possuam mais relevância para o citado.
Ainda que não exista uma regra pontual sobre o “direito ao esquecimento”, a especialista explica que cada caso é analisado de maneira particular, mas que há o reconhecimento desse direito pela jurisprudência como uma extensão do direito à privacidade. “A solicitação de exclusão de dados pode ser um instrumento para proteger a privacidade, intimidade e o direito ao esquecimento em certos casos”, explicou Rocha.
Para solicitar a anonimização no Jusbrasil, o usuário deve clicar no processo em questão e selecionar a opção “reportar”. Em seguida, é preciso escolher a opção “solicitar privacidade de informações” e preencher dados como nome completo, data de nascimento e CPF, além de enviar imagens do documento de identificação. Um indivíduo só pode pedir pela anonimização em processos nos quais está envolvido e só são aceitas solicitações de pessoas físicas.
Questionado sobre a desinformação produzida a partir da plataforma, o Jusbrasil disse que “entende o seu papel em contribuir para uma maior educação jurídica, e por isso, em nosso site é possível acessar informações que desconstroem tais premissas”. Segundo a empresa, avisos nas páginas do site distinguem, por exemplo, os diversos tipos de processos judiciais. “Exatamente como explicou o ministro da Justiça, Flávio Dino”, afirma o Jusbrasil na nota.