Méuri Elle/Aos Fatos

A inércia do Judiciário sobre o assédio ao Aos Fatos

Por Tai Nalon

8 de março de 2024, 12h12

Aviso: este texto é uma análise e foi publicado originalmente na newsletter O Digital Disfuncional.


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A três dias da retomada, no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, de audiência cujo objetivo é julgar se cometi crime de difamação, no exercício do jornalismo, contra um site contumaz produtor de desinformação, convidei os advogados Christiano Mourão e Gabriella Ventura a escrever nesta sexta-feira (8) para O Digital Disfuncional. Eles explicam por que o caso de assédio judicial contra Aos Fatos deveria ser uma preocupação de toda a indústria do jornalismo e receber a devida atenção das cortes superiores.

É imperativo lembrar que Aos Fatos — e eu, individualmente — estamos sob censura desde junho de 2023. A despeito da mobilização de entidades em defesa do jornalismo, parece não haver pressa por parte do Judiciário brasileiro em reverter essa injustiça.


Liberdade de imprensa e assédio judicial

Está marcada para a próxima segunda-feira (11), na 41ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, a retomada da audiência de instrução da jornalista e diretora-executiva do Aos Fatos, Tai Nalon, em ação penal movida pelo Jornal da Cidade Online. O site, alvo de investigação do STF (Supremo Tribunal Federal) e da Justiça Eleitoral por suspeita de promover e se beneficiar de desinformação, acusa Nalon de difamação e concorrência desleal por uma investigação que revelou estratégias de monetização de anúncios compartilhada com uma rede de páginas desinformativas. Está no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça o poder de reverter essa ameaça.

Desde os primeiros momentos de nossa entrada no processo, temos tentado demonstrar ao Poder Judiciário a aberração que é essa causa, com impetração de habeas corpus em favor de Nalon para o TJ-RJ, o STJ e o STF — este último na última semana. O pedido foi rejeitado pelo ministro Cristiano Zanin, embora trata-se de evidente assédio judicial em caso que já deveria ter sido encerrado. Não há no texto distinta intenção de reportar um fato.

O Judiciário deve estar atento a situações como a desta causa, sob pena de validar a instrumentalização do processo — sobretudo o de natureza criminal — como forma de intimidar jornalistas. É fundamental que o assédio judicial seja compreendido como uma forma de violência contra esses profissionais — e de especial gravidade, porque afeta coletivamente a liberdade de imprensa e, com ela, o direito à informação e de crítica.

Falamos aqui de chilling effect. A ideia do assediador é fazer não apenas o jornalista, mas todos os seus colegas de profissão terem medo de divulgar fatos a respeito dele para não se verem arrolados nas incertezas e no desgaste emocional em torno de um processo.

Para demonstrar o absurdo que é este processo e por que ele já deveria ter sido extinto, entendamos o seguinte: quando o Jornal da Cidade Online diz que a reportagem o difamou e buscou concorrer deslealmente com eles, estão afirmando que o texto foi escrito com a intenção de cometer esses dois crimes. É uma afirmação que necessariamente temos de fazer porque um dos elementos necessários para a caracterização de um crime doloso é a intenção da pessoa. Difamação e concorrência desleal são sempre crimes dolosos, de modo que, para que um e outro sejam caracterizados, a pessoa que pratica a ação tem que ter tido a intenção de difamar e de concorrer deslealmente. Se a intenção não existiu, não pode ter havido crime.

Aqui temos ao mesmo tempo o problema e a solução para a causa. Um jornalista tem o dever de reportar fatos, doa a quem doer. É pressuposto da profissão que um texto jornalístico tenha apenas e tão somente a intenção de narrar e informar, isto é, deve ser presumido que o autor de um texto jornalístico tenha tido apenas a intenção de narrar um fato por ele apurado. Um processo contra um jornalista, especialmente um de natureza criminal, deve vir precedido da leitura da reportagem para identificar se há elementos capazes de indicar, de forma contundente, outro tipo de intenção.

Infelizmente, não é como o Judiciário tem examinado este tipo de processo. Há repetida recusa de uma avaliação prévia da prova fundamental, ao argumento de que não caberia avaliação de provas naquele momento inicial do processo. Não é o que diz o Código de Processo Penal, no entanto, que atribui ao magistrado a incumbência de avaliar o material apresentado e dizer se é justo ou não iniciar um processo criminal contra a pessoa acusada.

No processo do Jornal da Cidade Online contra Tai Nalon, após a apresentação da defesa, o juízo determinou o prosseguimento do processo, com agendamento de audiência para ouvir partes e suas testemunhas. Apenas Nalon as apresentou, o que significa que a acusação do JCO se baseia somente no conteúdo da reportagem.

Como não houve fundamentação na decisão que determinou o prosseguimento do processo, impetramos habeas corpus ao TJ-RJ em favor de Tai Nalon, argumentando que era possível, de imediato, identificar que a reportagem continha apenas a intenção de narrar o que foi apurado, e que por isso o processo deveria ser imediatamente encerrado (ou, em juridiquês, que a ação penal deveria ser trancada). O pedido foi negado ao argumento de que o trancamento de uma ação é medida excepcional e que para tal seria necessário um exame aprofundado das provas nos autos. O mesmo foi alegado pelo STJ e, após agravo, aguardamos o julgamento do recurso pela 5ª Turma daquela Corte.

Temos absoluta convicção de que o resultado do processo não pode ser outro distinto da absolvição, mas há um dano que já está sendo causado e que estamos tentando evitar, que é submeter uma jornalista a um interrogatório pelo exercício regular de sua profissão. Esse é o maior prejuízo, porque chancela o comportamento de quem se vale de um processo penal para assediar esses profissionais.

Quando o assediador percebe que o Judiciário dá prioridade a seguir com o processo até o fim, mesmo quando ele é fulminável logo nos momentos iniciais, ele vai voltar a praticar esse ato. Ao passo que outros jornalistas, sabendo que não podem contar com a rejeição de plano de uma acusação absurda, passam a temer o exercício do seu trabalho. O chilling effect desejado pelo assediador foi alcançado.

Está no STF, sob a relatoria do ministro Cristiano Zanin, um habeas corpus que pede a suspensão da audiência até que a 1ª Turma analise o pedido de suspensão da tramitação processual. Seria uma medida excepcional, mas também avaliamos como excepcional o caso em questão. O julgamento foi agendado para as sessões virtuais entre os dias 15 e 22 de março.

Ainda que tenhamos um resultado positivo, já será tarde demais. Tai Nalon pode ser submetida a interrogatório na próxima segunda-feira (11), às 14h20, na sala de audiências da 41ª Vara Criminal do Rio de Janeiro. Não nos deram ouvidos, não foi dada a devida atenção para a causa.

O fato é agravado devido ao acusador ser um conhecido site propagador de desinformação, investigado em Inquéritos no STF, citado no relatório final da CPI da Pandemia, desmonetizado por ordem do TSE por divulgar mentiras sobre as urnas eletrônicas e pelo Google por desinformação a respeito da pandemia de covid-19.

Não basta aos juristas falarmos que o jornalismo profissional é de interesse público e pilar do Estado Democrático de Direito — é imperativo por isto em prática. Como pode haver uma imprensa livre se ela não pode contar com os olhos criteriosos do Poder Judiciário?

Somos teimosos demais para desistir da suspensão da audiência de instrução e julgamento. Vamos brigar até o último minuto. Fazemos isso pela Tai Nalon, pelo Aos Fatos, pelo bom jornalismo e pela democracia — até que sejamos ouvidos.

Christiano Mourão e Gabriella Ventura são sócios do escritório Mourão e Ventura Advogados, fundado em maio de 2019.

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