Peça fundamental na programação e no faturamento das emissoras desde que a televisão chegou ao Brasil, a novela passa por uma evolução com conteúdos originais, spin-offs e adaptações para plataformas de streaming e de vídeos curtos.
“Eu acho que essa é a novidade, um conteúdo longo que se transforma em conteúdo curto”, disse à Plataforma Rosane Svartman, autora de “Vai na Fé”, da Globo, que teve sucesso de crítica e audiência — e 3,4 bilhões de visualizações no TikTok só na hashtag oficial. “Significa que muita gente consumiu a novela pelo TikTok, ou pelo Twitter, ou pelo Instagram.”
Ela lançou neste mês o livro “A Telenovela e o Futuro da Televisão Brasileira” (Editora Cobogó), fruto de sua tese de doutorado na UFF (Universidade Federal Fluminense), em que investiga os impactos da inovação no trabalho de autores, no comportamento de espectadores e nos modelos de negócios.
Formato próprio do Kwai, as mininovelas com capítulos de até dois minutos geraram 42 bilhões de visualizações em 2022, um sucesso entre influenciadores, marcas e produtoras, como Endemol Shine Brasil e Porta dos Fundos. O Brasil é o maior mercado fora da China, e a empresa diz ter investido US$ 52 milhões em parcerias de conteúdo.
“Aqui você junta os benefícios de uma plataforma social — que permite um engajamento e uma interação do público muito maior — com um formato inovador, que é capaz de abrir mercado para profissionais, mas também para produtores semiprofissionais e amadores”, me explicou Claudine Bayma, diretora geral do Kwai no Brasil, em conversa na segunda-feira (28).
A Plataforma de hoje fala sobre o passado, o presente e o futuro da novela brasileira.
EM 5 PONTOS:
- A convergência de modelos de negócios;
- O “deslizamento de conteúdo” da telona para as telinhas;
- As mininovelas e os spin-offs;
- O streaming e o debate sobre direitos autorais no Congresso;
- Acontece na vida: cenas de webséries circulam como reais.
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🎭 A nova novela, da Globo ao Kwai
Em 1950, uma antena no topo do edifício Altino Arantes, conhecido como Banespão, irradiava o sinal da TV Tupi para toda a cidade de São Paulo.
- “Os paulistanos vêm mantendo, com orgulho, o privilégio de serem os primeiros no continente latino-americano a possuírem a televisão”, registrou na época uma reportagem da revista O Cruzeiro;
- A primeira novela brasileira foi ao ar em dezembro de 1951: “Sua Vida me Pertence”, escrita e interpretada por Walter Forster, galã de voz grave que ganhou fama nas radionovelas.
Desde o início, a publicidade é a principal fonte de receita das emissoras brasileiras, conforme Rosane Svartman descreve em seu livro — algo que também ocorreu nos Estados Unidos, mas não em países da Europa, onde governos financiaram as primeiras emissoras. Por isso que, com audiências massivas, as novelas se tornaram fundamentais.
De lá para cá, apesar de a publicidade ter se mantido soberana, surgiram novas formas de lucrar com conteúdo televisivo. Ao mesmo tempo, tanto o consumo dos espectadores como a busca por receita publicitária no ambiente digital fizeram convergir os modelos de negócios das emissoras, que investem no streaming, e de empresas nativas digitais.
Isso fica evidente ao observar campanhas institucionais recentes da Globo e do Kwai.
- Em evento para o mercado publicitário, a diretora de negócios da emissora, Manzar Feres, apresentou dados da Kantar — consultoria sobre consumo e mídia — dando conta de que os canais e as plataformas do grupo alcançam 41% da população todos os dias, percentual que chega a 87% no período mensal;
- O slogan da campanha, “do plim ao play”, reforça que “o Grupo Globo oferece audiências massivas a anunciantes com base na convergência de plataformas e canais, ou ecossistema midiático”, escreve Svartman;
- Ela me disse que a forma de monetizar conteúdo “sempre acompanha o espectador e o que o influencia: o espírito da época, o momento histórico e cultural, se as pessoas ainda chegam do trabalho e ligam a televisão, ou se já há uma parcela que assiste à novela no celular, na volta do trabalho”;
- Enquanto a Globo se vende como uma empresa adaptada ao mundo digital, o Kwai lançou no ano passado filmes publicitários com referências a obras marcantes da teledramaturgia da emissora, como “Terra Nostra” (1999) e “Chocolate com Pimenta” (2003);
- “A gente negociou com a área de licenciamento da Globo, porque o mote central da campanha era ‘vale a pena ver no Kwai’, uma alusão ao Vale a Pena Ver de Novo”, diz Claudine Bayma;
- Neste ano, a empresa promoveu a campanha “aqui geral brilha”, para se aproximar dos usuários — “com o intuito de ser uma plataforma que quer ser a cara do Brasil, que dá oportunidades iguais para todo mundo”, afirma a diretora geral;
- O Kwai também operou uma mudança profunda na marca: trocou a fonética do nome de “Kuai” para “Kauai”, o que vale só para o Brasil;
- “A gente rodou uma pesquisa e viu que mais de 90% das pessoas nos reconheciam como ‘Kauai’ e não ‘Kuai’. Em vez de a gente tentar educar o usuário a falar o nome certo, a gente fez o contrário e se adaptou ao usuário”, explica Bayma.
‘DESLIZAMENTO DE CONTEÚDO’
Uma novela é uma obra aberta, já que as tramas e subtramas são influenciadas pela reação do público, com eventuais mudanças ao passar dos capítulos. As emissoras fazem pesquisas com grupos focais de espectadores para identificar personagens e histórias que estão indo bem.
O consumo em plataformas digitais, no entanto, tira a linearidade das mãos do autor. “É possível que muitos espectadores, agora diante da possibilidade de assistir apenas à trama que lhes interessa, prefiram assistir à telenovela por trechos do que na íntegra, escolhendo a narrativa por uma lógica própria”, escreve Svartman. “É a novela customizada.”
Ela chama esse fenômeno, que acontece tanto no streaming como em redes de vídeos curtos, de “deslizamento de conteúdo”. Por enquanto, “é só um trecho de uma coisa que foi exibida exatamente como está lá”. Mas o futuro aponta outras possibilidades: “Se a gente for pensar que o seu algoritmo não exibirá [o conteúdo] na ordem que foi exibido no ar, já tem uma nova narrativa sendo construída aí”.
A autora vislumbra um cenário em que novelas possam ser consumidas em trechos — e mesmo assim mantenham coesão narrativa.
“Como que conteúdo longo vira conteúdo curto?”, reflete Svartman. “Como que isso pode ser uma estratégia dentro do modelo de negócios do audiovisual?”, continua. “Seria interessante até como narrativa transmídia, fazer com que esses trechos também tivessem um storytelling próprio.”
É diferente do que ocorre nas produções originais do Kwai, “que também é um outro case interessante”, ela diz. “Para mim, o que interessa é essa discussão de conteúdo longo e conteúdo curto — e como que um pode virar o outro, se isso é narrativa transmídia”, ela afirma. “Não é, por enquanto. Só será se tiver um novo storytelling.”
MININOVELAS E SPIN-OFFS
Antes de chegar ao Brasil, o formato de mininovelas do Kwai já fazia sucesso na China e em outros dos 30 países em que a plataforma atua.
A empresa orienta criadores e marcas sobre como produzir esse tipo de conteúdo, tendo como regra principal o que chama de “stop power”: algo que capte a atenção do usuário nos primeiros 3 segundos. (Kuaishou, nome que a plataforma tem na China, significa “mãos rápidas”.)
“Essas novelinhas podem ter início, meio e fim, ou elas podem ser sequenciais, assim como numa dramaturgia tradicional”, descreve Claudine Bayma. “A plataforma tem um recurso de entrega sequencial e não aleatória de conteúdo, então isso permite que você crie diferentes temporadas.”
Marcas como Coca-Cola, Skol e Unilever já produziram peças publicitárias no formato de mininovelas. Em uma delas, a ex-bailarina do Faustão e influenciadora Markelly Oliveira interpreta uma grávida com desejo de comer Cheetos bola. “A gente brinca que ela é a nossa musa do TeleKwai”, comenta Bayma.
Um exemplo de narrativa sequencial, mais próxima à das telenovelas, é o spin-off da novela “Poliana Moça”, do SBT. A emissora de Silvio Santos fechou parceria com o Kwai para produzir uma mininovela de 18 capítulos, a partir de um dos personagens preferidos do público. Na trama da TV, outros personagens convidavam os telespectadores a acessar o aplicativo.
“A gente adotou a linguagem da plataforma, todo o roteiro foi feito pelo SBT junto com o Kwai”, conta a diretora geral, que, antes do Kwai, ocupou cargos de liderança na Globo e em outras empresas televisivas, como Discovery e Jovem Pan. “Nós escrevemos juntos, nós aprovávamos juntos e nós produzíamos juntos”
STREAMING E DIREITOS DOS ARTISTAS
O futuro também afeta as novelas do passado. Primeiro folhetim das sete com todos os capítulos exibidos em cores, “Locomotivas” fez tanto sucesso que a Tupi, concorrente da Globo, atrasou o horário de exibição de “Éramos Seis" em meia hora. “Assim você não perde as ‘Locomotivas’”, dizia uma peça publicitária do canal, admitindo a derrota. “A Rede Tupi mudou o horário para você não perder nenhuma das duas novelas de que você gosta.”
Disponível no Globoplay desde junho, “Locomotivas” não rende um centavo à atriz Lucélia Santos, que aparece no cartaz.
O pagamento de direitos conexos a artistas que participaram de obras antigas disponíveis no streaming é um dos pontos do PL 2.370/2019, ressuscitado durante a tramitação do PL 2.630/2020, que ficou conhecido como “PL das Fake News”.
As empresas se negam a pagar direitos conexos no caso de obras de acervo, e esse é o principal entrave ao avanço do projeto, conforme o Aos Fatos mostrou há duas semanas. Dias depois, quando o relator Elmar Nascimento (União-BA) apresentou o parecer atualizado, o suposto acordo entre emissoras e artistas — que havia sido noticiado na imprensa — revelou-se frágil exatamente por causa do pagamento de direitos conexos.
“A gente tem um momento que eu acho propício para a regulação”, comenta Svartman. “A gente tem leis que, teoricamente, tornam o nosso direito autoral inalienável.” Além disso, ela lembra, o Brasil é um mercado relevante para todas as empresas envolvidas.
O debate também ocorre nos Estados Unidos, onde profissionais do audiovisual estão em greve em meio a negociações com as empresas. Por lá, entre os critérios aventados para calcular a remuneração a artistas por obras no streaming estão o número de assinantes da plataforma e a quantidade de visualizações de cada obra, mas ainda não há consenso.
ACONTECE NA VIDA
Assim como outros conteúdos digitais, algumas mininovelas já viralizaram fora de contexto, como se mostrassem imagens reais, e foram usadas como fonte de desinformação.
- Com 1,1 milhão de seguidores no Kwai e 374 mil inscritos no YouTube, o Portal da Realidade produz mininovelas que buscam retratar o bairro Engomadeira, em Salvador;
- Em fevereiro, uma cena em que atores vestidos de traficantes e portando fuzis falsos entram em um túnel viralizou fora de contexto com a mentira de que se tratava de um arrastão no Rio de Janeiro;
- No mês seguinte, a mesma coisa aconteceu com um vídeo do canal O Pest, que tem 976 mil seguidores no Kwai e 389 mil inscritos no YouTube — o que ocasionou até um posicionamento oficial da Polícia Militar da Bahia;
- Em junho, foi a vez de cenas da websérie Favela RJ serem usadas para afirmar, de maneira falsa, que retratavam traficantes fazendo barricadas contra moradores.
Como se vê, os hábitos e os modelos podem mudar, mas continua valendo a velha máxima de que a arte imita a vida.