“Marajó é uma ilha a alguns minutos de Belém, minha terra. E lá tem muito tráfico de órgãos. Lá é normal isso. Tem pedofilia em nível hard”, disse a cantora Aymeê Rocha durante participação no reality show gospel Dom, no último dia 15, quando apresentou uma música de autoria dela sobre o tema.
Após o vídeo com a declaração viralizar, com compartilhamentos de influenciadores e celebridades e uma campanha organizada para chamar atenção para o tema, diversas denúncias de exploração sexual infantil na Ilha de Marajó (PA) passaram a ser compartilhadas nas redes.
Apesar de o Marajó de fato registrar situações de violência contra crianças e adolescentes, parte das publicações virais usa desinformação e acusações não comprovadas para tentar gerar pânico. O uso de tom sensacionalista em torno do problema, que é real, gera um estigma que pode agravar as dificuldades da região, tanto por atrair criminosos como por reduzir a atratividade de um local que depende do turismo.
Diego Martins, do Comitê de Enfrentamento à Violência Sexual contra a Criança e o Adolescente do Pará, afirma que de fato ocorrem situações de violência e exploração sexual na região, “muito por conta da falta de oportunidade de emprego, de geração de renda, da falta de acesso da população”. A situação é conhecida pelas autoridades e alvo de investigações.
No entanto, falas como a da senadora Damares Alves (Republicanos-DF) — que em 2022 afirmou que as crianças do Marajó seriam mutiladas e torturadas com o intuito de facilitar o estupro — não condizem com o conteúdo das denúncias recebidas por órgãos de investigação. Aos Fatos consultou os dados de violência do Marajó e entrevistou especialistas para responder quatro perguntas que visam elucidar a situação da região:
- Qual é a situação da violência sexual contra crianças e adolescentes no Marajó?
- A realidade no Marajó é pior que a do restante do país?
- O que não é verdade sobre o Marajó?
- Como denunciar sem estigmatizar?
1. Qual é a situação da violência sexual contra crianças e adolescentes no Marajó?
A violência sexual contra crianças e adolescentes no Marajó é uma realidade grave e reconhecida tanto pelo MPF (Ministério Público Federal) como pelas promotorias estaduais do Pará. Segundo dados do MP-PA (Ministério Público do Pará), foram abertos 550 processos de crimes cometidos contra crianças e adolescentes em todos os 17 municípios do arquipélago do Marajó em 2022 — média de 1,5 registro por dia. A estatística inclui dados do município de Oeiras do Pará, que passou a ser considerado parte do Marajó em janeiro daquele ano.
O número representa um crescimento de quase 3% em relação a 2021, quando foram abertos 534 processos sobre crimes desse tipo.
- O principal delito registrado foi o de estupro de vunerável, com 407 casos em 2022;
- Em seguida, aparecem os casos de estupro, com 111 registros;
- Também foram registrados 16 casos de importunação sexual, 13 de assédio sexual, cinco de "favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável" e cinco de "satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente".
Em nota, o MP-PA afirmou que "a violência sexual acaba por ter uma maior projeção no Arquipélago do Marajó, uma vez que encontra um terreno fértil de outras violações de direitos, sobretudo considerando que a região abriga alguns dos piores IDHs do Brasil”.
Dos 17 municípios da região, 14 figuram entre os de pior IDH-M (Índice de Desenvolvimento Humano do Município) na listagem de 5.565 cidades brasileiras, segundo o Atlas de Desenvolvimento Humano, que se baseia em dados do Censo de 2010.
2. A realidade no Marajó é pior que a do restante do país?
De acordo com dados do MP-PA, a região do Marajó registrou uma taxa de 69 casos de estupro de vulnerável de crianças e adolescentes para cada 100 mil habitantes.
Em nível nacional, foram contabilizadas 56.820 ocorrências de estupro de vulnerável em 2022 — crime que atinge pessoas abaixo de 13 anos, ou de qualquer faixa etária no caso de deficiência ou uso de entorpecentes. O número representa 28 casos a cada 100 mil habitantes, segundo do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Já em nível estadual, o Pará concentrou 3.732 ocorrências desse tipo no período. A taxa proporcional, de 46 casos para cada 100 mil habitantes, é uma das maiores do país, atrás de Roraima (87,1), Acre (67,1), Amapá (64,5), Mato Grosso do Sul (64), Tocantins (56,2) e Rondônia (46,8).
Como os dados nacionais e estaduais não estão discriminados por faixa etária, não é possível comparar com precisão a discrepância da situação do Marajó da realidade de outras regiões do país. É importante ressaltar, no entanto, que mesmo assim a taxa de estupro de crianças e adolescentes do arquipélago é 2,5 vezes maior do que a média nacional.
Em relação à exploração sexual de crianças e adolescentes, foram registrados 889 casos no Brasil em 2022, dos quais 29 ocorreram no Pará, o que representa uma taxa de 1,8 caso a cada 100 mil habitantes no país e 1,2 a cada 100 mil no estado.
Desses, cinco ocorreram em municípios do Marajó, o que representa uma taxa de 0,85 ocorrência a cada 100 mil habitantes — menor do que as médias nacional e estadual.
Um dos problemas dos dados sobre violência sexual, no entanto, é a subnotificação. A PRF (Polícia Rodoviária Federal), por exemplo, identificou 9.745 pontos vulneráveis à exploração sexual infantil ao longo das rodovias federais em levantamento realizado entre 2012 e 2022.
Segundo pesquisa do Datafolha de 2022, apenas 11% das vítimas de violência sexual na infância denunciam a agressão.”Por que só esses denunciam? Porque nesse crime a vítima é culpabilizada socialmente”, lembrou a advogada e presidente do Instituto Liberta, Luciana Temer, em entrevista ao Aos Fatos.
3. O que não é verdade sobre o Marajó?
Apesar de o Marajó de fato registrar centenas de denúncias de crimes sexuais contra crianças e adolescentes todos os anos, têm circulado nas redes peças de desinformação e denúncias sem comprovação, que acabam gerando pânico e estigmatizando a região.
Em 2022, durante um discurso em uma igreja evangélica, a senadora Damares Alves (Republicanos-DF) disse ter recebido denúncias de que crianças da região tinham seus dentes arrancados para facilitar o sexo oral e eram obrigadas a comer comida pastosa para facilitar o sexo anal.
Tais casos nunca foram comprovados e as alegações renderam a Damares uma ação civil pública do MPF. O órgão pede uma indenização de R$ 5 milhões pela divulgação de “falsas informações sensacionalistas envolvendo abuso sexual e torturas às crianças do Marajó”. O caso aguarda julgamento na Justiça Federal.
Para a advogada Luciana Temer, falas como a da senadora “impedem um diagnóstico real do problema ao fantasiar a situação como se fosse algo demoníaco, e aí, portanto, mascara a situação e impede a construção de políticas públicas importantes”.
A despeito da falta de comprovação, a acusação da senadora voltou a viralizar nas redes desde o último dia 15, quando a cantora gospel Aymeê Rocha fez menção aos casos de exploração sexual no Marajó durante uma apresentação em um reality show no YouTube.
Rocha também alegou que haveria casos de tráfico de órgãos na região. O MPF, que trata de ocorrências internacionais e virtuais, e as promotorias de Justiça estaduais do Pará, representadas pelo MP-PA, no entanto, nunca registraram denúncias desse tipo de crime nas cidades do arquipélago.
A viralização do vídeo de Rocha também fez com que ressurgissem nas redes uma série de peças de desinformação sobre a Ilha de Marajó:
- Um vídeo que mostra dezenas de crianças sendo transportadas em um carro no Uzbequistão, por exemplo, tem circulado como se fosse uma prova de tráfico de crianças na região;
- Outra gravação que vem sendo descontextualizada é a que mostra um homem abusando sexualmente de uma criança de seis anos em um barco junto da legenda “passeio na ilha do Marajó”. O vídeo, no entanto, foi feito no Mato Grosso do Sul em 2021;
- Usuários também têm criticado o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) por ter revogado o programa Abrace o Marajó em 2023. As publicações, no entanto, omitem que o plano foi, na verdade, substituído por outro, de nome Cidadania Marajó.
4. Como denunciar sem estigmatizar?
A viralização de conteúdos alertando sobre situações de exploração infantil no Marajó misturada a uma onda de peças desinformativas e denúncias sem provas preocupou organizações da sociedade civil que atuam na região:
- O Observatório do Marajó publicou nota em que afirma que “A população marajoara não normaliza violências contra crianças e adolescentes" e que a garantia de dignidade aos jovens da região e de todos os estados depende de políticas públicas baseadas em evidências, boas práticas e saberes tradicionais, e não de “mentiras, distorções, manipulações, pânico moral, racismo, nem de qualquer outra forma de violência”;
- O Instituto Dom Azcona também se manifestou, lembrando que o abuso e a exploração sexual "antes de um problema regionalizado, são uma prática criminosa que requer atenção e ações efetivas em todas as regiões do país".
"É importante o enfrentamento de forma sensível e efetiva, sem estigmatizar a região do Marajó", publicou a organização.
Em entrevista ao Aos Fatos, o representante do Comitê de Enfrentamento à Violência Sexual contra a Criança e o Adolescente do Pará, Diego Martins, afirmou que as publicações transmitem uma imagem equivocada dos moradores da região, “como se, de certo modo, todas as crianças do Marajó fossem abusadas e todas as famílias fossem coniventes. Mas é uma parcela pequena da população que se envolve nessas situações”.
Luciana Temer também ressaltou que a divulgação da região do Marajó como um local de exploração sexual infantil pode invisibilizar o combate a essa violência em outras regiões do país.
“A pessoa que está sentada no sofá de casa em São Paulo, olha e fala: ‘Ah, que coisa horrível que acontece lá’ — e não consegue ter a dimensão de que também acontece aqui, do lado dela”, disse a presidente do Instituto Liberta ao Aos Fatos. “O grande problema é se enfrentar essa violência no Marajó, como em todo o Brasil.”
Os especialistas recomendam que antes de compartilhar qualquer conteúdo sobre abuso infantil que cite a região, é importante verificar o que dizem institutos locais que atuam especificamente no fortalecimento institucional e na promoção de direitos humanos. Martins aponta como exemplos o Comitê de Enfrentamento à Violência Sexual contra a Criança e o Adolescente do Estado do Pará, o Instituto Dom Azcona e o Instituto Âncora Marajó.
Outras fontes confiáveis, mas que não atuam diretamente na região, segundo Luciana Temer, são o Instituto Liberta e o Childhood Brasil.
Em nota, o MP-PA também lembrou que “discussões que enfatizem a violência sexual sem estudos e dados oficiais e sem propósito de efetivar políticas necessárias ou, pelo menos, a apuração de casos concretos em nada contribuem para mudar a realidade social tão sofrida da população marajoara”.
O órgão indica que as denúncias sobre violências cometidas contra crianças e adolescentes sejam realizadas por meio dos seguintes canais:
- Disque 100, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania: destinado a receber demandas relativas a violações de direitos humanos, especialmente as que atingem populações em situação de vulnerabilidade social.
- Disque 180, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania: além de receber denúncias de violações contra as mulheres, encaminha os relatos aos órgãos competentes e monitora o andamento dos processos;
- Disque Denúncia 181, da Polícia Militar do Pará: recebe denúncias diversas, que são tratadas em sigilo;
- Disque-Denúncia no Whatsapp (91) 98115-9181, da Polícia Militar do Pará, que também garante o sigilo das denúncias;
- Emergência 190: para acionar o Ciop (Centro Integrado de Operações) da Região Metropolitana de Belém ou o Niop (Núcleo Integrado de Operações), no interior do Estado.