Aloisio Maurício/Fotoarena/Estadão Conteúdo

Em alerta para eventual bloqueio do X pelo STF, Anatel busca se cacifar para regular redes e IA

Por Ethel Rudnitzki

8 de abril de 2024, 12h17

Um dos entraves para o avanço da regulação de redes sociais no Brasil, a escolha de quais órgãos governamentais terão responsabilidade na fiscalização também se tornou um ponto de disputa no debate sobre regulação de inteligência artificial. Enquanto o governo Lula não se posiciona, a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) forma alianças no Legislativo e no Judiciário e busca se consolidar como a escolha óbvia em ambos os casos.

Episódios como o ataque de Elon Musk, dono do X (ex-Twitter), contra o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, servem para a agência ressaltar o poder que já possui de obrigar operadoras de internet a cumprir decisões judiciais pelo bloqueio de aplicativos e sites.

Após indicar que irá desrespeitar ordens do STF, o bilionário passou a ser investigado no inquérito das milícias digitais, e Moraes estipulou multa diária de R$ 100 mil por cada perfil que for restabelecido de forma irregular.

Na manhã de domingo (7), pessoas ligadas ao ministro procuraram a Anatel para sondar como seria efetuado um eventual bloqueio do X, segundo o UOL. O presidente da agência, Carlos Baigorri, deixou as operadoras de prontidão para o caso de uma decisão do STF.

O relacionamento próximo com Moraes faz parte da estratégia da Anatel e vem desde as eleições de 2022, quando a agência já havia se demonstrado disposição para dar efeito a decisões do TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

Na semana passada, Baigorri disse em entrevista ao Aos Fatos que o interesse em assumir a regulação de redes e de IA se deve ao fato de a agência ter expertise e capacidade de fiscalização. Segundo ele, não se trata de uma questão de orçamento, mas de função — e cita como exemplo da expertise as ações contra desinformação durante as eleições de 2022.

“Quando a Justiça decidiu que era necessário retirar do ar o Telegram e sites criados para disseminar desinformação, quem foi chamada para bloquear o acesso foi a Anatel”, afirmou Baigorri ao Aos Fatos. Agora, a situação envolvendo o X é semelhante.

“Hoje, se você for pensar na estrutura do Estado que tem capacidade de fiscalizar e atuar de forma coercitiva no ambiente tecnológico, é à Anatel que cabe essa tarefa.”

Em dezembro, a Anatel celebrou um acordo de cooperação com o TSE para integrar sistemas e agilizar o cumprimento de decisões, a fim de facilitar a retirada de desinformação das redes em período eleitoral. Na ocasião, Baigorri e Moraes posaram para fotos.

No último concurso público para a agência, com 50 vagas abertas, caíram questões sobre democracia, desinformação e plataformas digitais. A intenção é ter servidores aptos a atuarem na regulação de redes, segundo o presidente da agência. “A gente já tem a estrutura pronta para isso e é o que a gente já vem fazendo, parece natural que a gente receba essa ampliação e se prepare.”

Carlos Baigorri e Alexandre de Moraes, em reunião em dezembro de 2023
Alianças. Baigorri e Moraes, em reunião em dezembro de 2023 (Antonio Augusto/Secom/TSE)

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QUEM VAI REGULAR O QUÊ?

Tanto no caso das redes sociais como no de IA, a decisão sobre o arranjo regulatório será do Congresso Nacional. A principal adversária da Anatel é a ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados), que também manifestou interesse nos bastidores e em público, em busca de mais orçamento e poder.

O Executivo ainda debate sugestões de mudanças ao PL 2.338/2023 em reuniões com o MCTI (Ministério de Ciência e Tecnologia), a Casa Civil, a Secom e o Ministério da Justiça. De autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o projeto é o principal sobre regulação de IA no Congresso e tramita em uma comissão especial.

O texto cria um marco regulatório e pressupõe a designação de uma autoridade para fiscalizar a lei. O MCTI afirmou em nota à reportagem que, seja qual for a escolha final, “o mais importante é que a agência tenha as competências e recursos necessários à sua atuação eficiente”.

No discurso de abertura do Legislativo, em fevereiro, Pacheco disse que o projeto seria aprovado até abril, prazo que o presidente e o relator da comissão confirmaram, mas que já se tornou impossível de ser cumprido. A princípio, a comissão ainda deve existir por pouco mais de um mês, mas esse prazo também pode ser prorrogado.

Relator do projeto, o senador Eduardo Gomes (PL-TO) disse ao Aos Fatos que deve apresentar o texto final ainda este mês. “Os assuntos que vão ser destacados agora, nessa fase final, são ligados mais à regulação. Quem é que vai regular, fiscalizar.”

Quem assumir a regulação de IA terá, além de muito trabalho, protagonismo nos debates sobre uma tecnologia com relevância e impacto crescentes na vida cotidiana.

A longo prazo, isso significaria mais força política para a Anatel, que já atua em um dos principais mercados do país, com receita bruta de R$ 274 bilhões em 2022, e que pode ser ampliada com a implementação da chamada “política de compartilhamentos de custos” — que propõe a cobrança de uma tarifa de empresas que utilizam a estrutura da rede de telecomunicações em larga escala, como plataformas de redes sociais.

A proposta tem sido analisada pela Anatel em duas tomadas de subsídios e é uma das quatro frentes de taxação de big techs estudadas pelo governo federal. Tanto empresas de redes sociais como organizações que atuam em governança da internet têm críticas à proposta. O Internet Society, por exemplo, a apelidou de “pedágio na internet”. As empresas de telecomunicações são favoráveis e costumam adotar a expressão “fair share” ( ou “parcela justa”) para se referir à política, que teria como objetivo o investimento em infraestrutura.

Já o “PL das Fake News”, que chegou a entrar na pauta da Câmara mas não foi votado, também não possui um texto final. Após o episódio envolvendo Musk e Moraes, o relator Orlando Silva (PC do B-SP) voltou a articular para que Arthur Lira (PP-AL) coloque o texto em votação. Não há consenso sobre a quem caberia o papel de fiscalizar as plataformas — as possibilidades discutidas incluem a criação de um novo órgão, a escolha da Anatel, ou delegar a tarefa às próprias empresas, em um arranjo de “autorregulação regulada”.

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AGÊNCIA EM MOVIMENTO

Carlos Baigorri foi indicado para presidir a Anatel em 2021, por Jair Bolsonaro (PL), para um mandato de cinco anos. No entanto, como ele integra a diretoria da agência desde 2020, uma ação no TCU (Tribunal de Contas da União) questiona se Baigorri pode permanecer no cargo até 2026 ou se deve encerrar o mandato em outubro de 2025. A decisão está prevista para acontecer ainda neste mês e poderá ocasionar mudanças em outras três agências.

Ele iniciou a ofensiva da Anatel para assumir o papel de regular o uso de IA em meados de 2023, logo após a apresentação do PL 2.338/2023.

Em junho de 2023 — dois meses após o projeto ser protocolado —, a agência anunciou que ampliaria estudos sobre uso da tecnologia no setor de telecomunicações e em seus processos internos. Em seguida, criou o Fórum Permanente de Gestão de Dados e Inteligência Artificial, por iniciativa do conselheiro diretor Alexandre Freire. Desde então, a agência tem participado de debates sobre o uso e a regulação da tecnologia não só no setor de telecomunicações.

  • Em julho, a Anatel participou do evento “AI for Good” (ou “IA para o bem”, em português), organizado pela União Internacional de Telecomunicações;
  • Em outubro, Freire e o superintendente-executivo da agência, Abraão Albino, integraram uma mesa sobre inteligência artificial no Futurecom, evento sobre telecomunicações, internet e IA;
  • No mesmo mês, Albino anunciou que a Anatel produziria um projeto de sandbox regulatório — espécie de ambiente controlado para testes de inovações — sobre inteligência artificial até o fim do ano, o que ainda não ocorreu;
  • O superintendente-executivo também compareceu a uma audiência pública na comissão do Senado que discute projetos de lei sobre inteligência artificial.

Àquela altura, os representantes da agência pediam cautela para a regulação da inteligência artificial. “A Anatel lida com regulação há muito tempo. Se a gente não sabe direito o que a gente vai regular, para quem, como estabelecer limites e como cobrar esses limites, eu posso garantir que a gente vai errar”, disse Albino durante a Futurecom.

Já em 2024, com a sinalização do Congresso para priorizar o tema, a Anatel se tornou mais ativa com o objetivo de puxar para si a regulação da IA:

  • Em janeiro, o conselho diretor da agência solicitou, por meio de ofício enviado a diferentes superintendências da Anatel, a elaboração de diagnósticos sobre uso de IA na infraestrutura de telecomunicações e estudos sobre o impacto das tecnologias em data centers;
  • Em fevereiro, publicou diretrizes para o uso da tecnologia dentro de seu gabinete;
  • Também neste ano, o presidente da agência passou a defender publicamente seu papel como órgão regulador da tecnologia em entrevistas.

EXPERTISE E ORÇAMENTO

Embora diga que a Anatel ainda não tem posicionamento sobre o PL, Baigorri afirmou à reportagem que concorda com a abordagem baseada em riscos, como prevê o projeto de Pacheco. O presidente da Anatel, porém, defende uma regulação menos restritiva e que promova o uso da tecnologia.

“Se você olhar sempre do lado da perspectiva negativa, você vai colocar um monte de restrição e vai condenar a nossa sociedade. Todo o resto do mundo vai estar usando ferramentas de última geração e a gente aqui digitando texto do molde”, disse.

Para ele, a Anatel já demonstrou capacidade de fomentar o uso responsável das tecnologias das telecomunicações no país e por isso está apta a fazer o mesmo com a IA.

“A gente conseguiria atuar de duas formas: fomentando e disseminando o uso da IA de uma forma responsável e fiscalizando as empresas para não utilizarem de uma forma que a lei proíba”, defendeu Baigorri.

A agência tem a seu favor na disputa sua estrutura e orçamento — que soma mais de R$ 640 milhões em 2024. “A Anatel é um órgão que tem expertise e capacidade operacional. Então é por uma situação simplesmente fática que a agência está se colocando à disposição.”

Os argumentos de melhor estrutura e orçamento mais folgado são usados pela Anatel como trunfo diante da principal alternativa, a ANPD.

A autarquia também tem sido ativa na disputa pelo papel de regular IA. Em entrevista ao Aos Fatos em agosto passado, o diretor-presidente da ANPD, Waldemar Gonçalves, disse que “toda tecnologia nova que surgir será alimentada por dados pessoais e dados não pessoais” — e advogou por mais orçamento. “Em assumindo um encargo como regulação de plataforma, como tratamento de IA, nós necessitamos mexer na nossa estrutura — de mais orçamento, de mais pessoal.”

  • Em julho de 2023, a ANPD publicou uma análise sobre o PL 2.338/23 indicando convergências entre o projeto e a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), que define o papel de fiscalização da ANPD em relação à proteção de dados, e reivindicando regular também o uso de IA;
  • Em outubro, publicou um programa piloto regulatório para a tecnologia e abriu consultas públicas sobre o tema, encerradas em dezembro de 2024;
  • O projeto final deverá ser apresentado ainda neste semestre para ser implementado no próximo, conforme anunciado em evento realizado pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade em março.

As movimentações acontecem ao mesmo tempo em que a ANPD tem reforçado seu papel fiscalizador junto a empresas de tecnologia. A ANPD tem processos abertos contra:

  • a Meta, por monetização de dados na plataforma Threads e compartilhamento de dados de usuários do WhatsApp com outros aplicativos da empresa;
  • a Bytedance, por tratamento de dados de crianças e adolescentes no TikTok;
  • e a OpenAI, dona do ChatGPT, para apurar denúncias de vazamento de dados do aplicativo.
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ELEIÇÕES 2024

Para este ano, a Anatel aprofundou a relação com o TSE e assinou mais um acordo de cooperação técnica, com o recém-criado CIEDDE (Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia) do tribunal, ao lado da PGR (Procuradoria-Geral da República), do Ministério da Justiça e Segurança Pública e do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

“A Anatel irá usar a plenitude do seu poder de polícia junto às empresas de telecomunicações para retirar do ar todos os sites e aplicativos que estejam atentando contra a nossa democracia por meio da desinformação e do uso de inteligência artificial para deepfakes”, prometeu Baigorri na ocasião.

Depois disso, ele foi convocado a dar explicações na Comissão de Comissão de Comunicação da Câmara. “Muita gente ficou com a impressão de que a Anatel vai ter um papel proativo de ficar lá olhando nas redes sociais, identificar problemas e notificar o TSE para tirar do ar, mas não é assim. Vai ser do mesmo jeito que na última eleição. A gente tem um papel reativo”, disse ao Aos Fatos.

O presidente da agência negou que a agência antagoniza as empresas de tecnologia. “As plataformas e as redes [de telecomunicações] têm uma relação simbiótica. Um precisa do outro. Se não tiver rede, não tem aplicativo, não tem plataforma. E se não tiver plataforma, ninguém compra a rede. Então eles só vão crescer juntos. Por isso, essa visão de que um é inimigo do outro não faz sentido nenhum.”

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Referências:

1. Aos Fatos (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10)
2. UOL
3. Senado
4.
Conexis
5. Folha de S.Paulo (1, 2)
6. Anatel (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7)
7. Campanha Pedágio na Internet
8. O Globo
9. Poder360
10. Teletime (1, 2)
11. Câmara dos Deputados

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