Um dos entraves para o avanço da regulação de redes sociais no Brasil, a escolha de quais órgãos governamentais terão responsabilidade na fiscalização também se tornou um ponto de disputa no debate sobre regulação de inteligência artificial. Enquanto o governo Lula não se posiciona, a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) forma alianças no Legislativo e no Judiciário e busca se consolidar como a escolha óbvia em ambos os casos.
Episódios como o ataque de Elon Musk, dono do X (ex-Twitter), contra o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, servem para a agência ressaltar o poder que já possui de obrigar operadoras de internet a cumprir decisões judiciais pelo bloqueio de aplicativos e sites.
Após indicar que irá desrespeitar ordens do STF, o bilionário passou a ser investigado no inquérito das milícias digitais, e Moraes estipulou multa diária de R$ 100 mil por cada perfil que for restabelecido de forma irregular.
Na manhã de domingo (7), pessoas ligadas ao ministro procuraram a Anatel para sondar como seria efetuado um eventual bloqueio do X, segundo o UOL. O presidente da agência, Carlos Baigorri, deixou as operadoras de prontidão para o caso de uma decisão do STF.
O relacionamento próximo com Moraes faz parte da estratégia da Anatel e vem desde as eleições de 2022, quando a agência já havia se demonstrado disposição para dar efeito a decisões do TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Na semana passada, Baigorri disse em entrevista ao Aos Fatos que o interesse em assumir a regulação de redes e de IA se deve ao fato de a agência ter expertise e capacidade de fiscalização. Segundo ele, não se trata de uma questão de orçamento, mas de função — e cita como exemplo da expertise as ações contra desinformação durante as eleições de 2022.
“Quando a Justiça decidiu que era necessário retirar do ar o Telegram e sites criados para disseminar desinformação, quem foi chamada para bloquear o acesso foi a Anatel”, afirmou Baigorri ao Aos Fatos. Agora, a situação envolvendo o X é semelhante.
“Hoje, se você for pensar na estrutura do Estado que tem capacidade de fiscalizar e atuar de forma coercitiva no ambiente tecnológico, é à Anatel que cabe essa tarefa.”
Em dezembro, a Anatel celebrou um acordo de cooperação com o TSE para integrar sistemas e agilizar o cumprimento de decisões, a fim de facilitar a retirada de desinformação das redes em período eleitoral. Na ocasião, Baigorri e Moraes posaram para fotos.
No último concurso público para a agência, com 50 vagas abertas, caíram questões sobre democracia, desinformação e plataformas digitais. A intenção é ter servidores aptos a atuarem na regulação de redes, segundo o presidente da agência. “A gente já tem a estrutura pronta para isso e é o que a gente já vem fazendo, parece natural que a gente receba essa ampliação e se prepare.”
QUEM VAI REGULAR O QUÊ?
Tanto no caso das redes sociais como no de IA, a decisão sobre o arranjo regulatório será do Congresso Nacional. A principal adversária da Anatel é a ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados), que também manifestou interesse nos bastidores e em público, em busca de mais orçamento e poder.
O Executivo ainda debate sugestões de mudanças ao PL 2.338/2023 em reuniões com o MCTI (Ministério de Ciência e Tecnologia), a Casa Civil, a Secom e o Ministério da Justiça. De autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o projeto é o principal sobre regulação de IA no Congresso e tramita em uma comissão especial.
O texto cria um marco regulatório e pressupõe a designação de uma autoridade para fiscalizar a lei. O MCTI afirmou em nota à reportagem que, seja qual for a escolha final, “o mais importante é que a agência tenha as competências e recursos necessários à sua atuação eficiente”.
No discurso de abertura do Legislativo, em fevereiro, Pacheco disse que o projeto seria aprovado até abril, prazo que o presidente e o relator da comissão confirmaram, mas que já se tornou impossível de ser cumprido. A princípio, a comissão ainda deve existir por pouco mais de um mês, mas esse prazo também pode ser prorrogado.
Relator do projeto, o senador Eduardo Gomes (PL-TO) disse ao Aos Fatos que deve apresentar o texto final ainda este mês. “Os assuntos que vão ser destacados agora, nessa fase final, são ligados mais à regulação. Quem é que vai regular, fiscalizar.”
Quem assumir a regulação de IA terá, além de muito trabalho, protagonismo nos debates sobre uma tecnologia com relevância e impacto crescentes na vida cotidiana.
A longo prazo, isso significaria mais força política para a Anatel, que já atua em um dos principais mercados do país, com receita bruta de R$ 274 bilhões em 2022, e que pode ser ampliada com a implementação da chamada “política de compartilhamentos de custos” — que propõe a cobrança de uma tarifa de empresas que utilizam a estrutura da rede de telecomunicações em larga escala, como plataformas de redes sociais.
A proposta tem sido analisada pela Anatel em duas tomadas de subsídios e é uma das quatro frentes de taxação de big techs estudadas pelo governo federal. Tanto empresas de redes sociais como organizações que atuam em governança da internet têm críticas à proposta. O Internet Society, por exemplo, a apelidou de “pedágio na internet”. As empresas de telecomunicações são favoráveis e costumam adotar a expressão “fair share” ( ou “parcela justa”) para se referir à política, que teria como objetivo o investimento em infraestrutura.
Já o “PL das Fake News”, que chegou a entrar na pauta da Câmara mas não foi votado, também não possui um texto final. Após o episódio envolvendo Musk e Moraes, o relator Orlando Silva (PC do B-SP) voltou a articular para que Arthur Lira (PP-AL) coloque o texto em votação. Não há consenso sobre a quem caberia o papel de fiscalizar as plataformas — as possibilidades discutidas incluem a criação de um novo órgão, a escolha da Anatel, ou delegar a tarefa às próprias empresas, em um arranjo de “autorregulação regulada”.
AGÊNCIA EM MOVIMENTO
Carlos Baigorri foi indicado para presidir a Anatel em 2021, por Jair Bolsonaro (PL), para um mandato de cinco anos. No entanto, como ele integra a diretoria da agência desde 2020, uma ação no TCU (Tribunal de Contas da União) questiona se Baigorri pode permanecer no cargo até 2026 ou se deve encerrar o mandato em outubro de 2025. A decisão está prevista para acontecer ainda neste mês e poderá ocasionar mudanças em outras três agências.
Ele iniciou a ofensiva da Anatel para assumir o papel de regular o uso de IA em meados de 2023, logo após a apresentação do PL 2.338/2023.
Em junho de 2023 — dois meses após o projeto ser protocolado —, a agência anunciou que ampliaria estudos sobre uso da tecnologia no setor de telecomunicações e em seus processos internos. Em seguida, criou o Fórum Permanente de Gestão de Dados e Inteligência Artificial, por iniciativa do conselheiro diretor Alexandre Freire. Desde então, a agência tem participado de debates sobre o uso e a regulação da tecnologia não só no setor de telecomunicações.
- Em julho, a Anatel participou do evento “AI for Good” (ou “IA para o bem”, em português), organizado pela União Internacional de Telecomunicações;
- Em outubro, Freire e o superintendente-executivo da agência, Abraão Albino, integraram uma mesa sobre inteligência artificial no Futurecom, evento sobre telecomunicações, internet e IA;
- No mesmo mês, Albino anunciou que a Anatel produziria um projeto de sandbox regulatório — espécie de ambiente controlado para testes de inovações — sobre inteligência artificial até o fim do ano, o que ainda não ocorreu;
- O superintendente-executivo também compareceu a uma audiência pública na comissão do Senado que discute projetos de lei sobre inteligência artificial.
Àquela altura, os representantes da agência pediam cautela para a regulação da inteligência artificial. “A Anatel lida com regulação há muito tempo. Se a gente não sabe direito o que a gente vai regular, para quem, como estabelecer limites e como cobrar esses limites, eu posso garantir que a gente vai errar”, disse Albino durante a Futurecom.
Já em 2024, com a sinalização do Congresso para priorizar o tema, a Anatel se tornou mais ativa com o objetivo de puxar para si a regulação da IA:
- Em janeiro, o conselho diretor da agência solicitou, por meio de ofício enviado a diferentes superintendências da Anatel, a elaboração de diagnósticos sobre uso de IA na infraestrutura de telecomunicações e estudos sobre o impacto das tecnologias em data centers;
- Em fevereiro, publicou diretrizes para o uso da tecnologia dentro de seu gabinete;
- Também neste ano, o presidente da agência passou a defender publicamente seu papel como órgão regulador da tecnologia em entrevistas.
EXPERTISE E ORÇAMENTO
Embora diga que a Anatel ainda não tem posicionamento sobre o PL, Baigorri afirmou à reportagem que concorda com a abordagem baseada em riscos, como prevê o projeto de Pacheco. O presidente da Anatel, porém, defende uma regulação menos restritiva e que promova o uso da tecnologia.
“Se você olhar sempre do lado da perspectiva negativa, você vai colocar um monte de restrição e vai condenar a nossa sociedade. Todo o resto do mundo vai estar usando ferramentas de última geração e a gente aqui digitando texto do molde”, disse.
Para ele, a Anatel já demonstrou capacidade de fomentar o uso responsável das tecnologias das telecomunicações no país e por isso está apta a fazer o mesmo com a IA.
“A gente conseguiria atuar de duas formas: fomentando e disseminando o uso da IA de uma forma responsável e fiscalizando as empresas para não utilizarem de uma forma que a lei proíba”, defendeu Baigorri.
A agência tem a seu favor na disputa sua estrutura e orçamento — que soma mais de R$ 640 milhões em 2024. “A Anatel é um órgão que tem expertise e capacidade operacional. Então é por uma situação simplesmente fática que a agência está se colocando à disposição.”
Os argumentos de melhor estrutura e orçamento mais folgado são usados pela Anatel como trunfo diante da principal alternativa, a ANPD.
A autarquia também tem sido ativa na disputa pelo papel de regular IA. Em entrevista ao Aos Fatos em agosto passado, o diretor-presidente da ANPD, Waldemar Gonçalves, disse que “toda tecnologia nova que surgir será alimentada por dados pessoais e dados não pessoais” — e advogou por mais orçamento. “Em assumindo um encargo como regulação de plataforma, como tratamento de IA, nós necessitamos mexer na nossa estrutura — de mais orçamento, de mais pessoal.”
- Em julho de 2023, a ANPD publicou uma análise sobre o PL 2.338/23 indicando convergências entre o projeto e a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), que define o papel de fiscalização da ANPD em relação à proteção de dados, e reivindicando regular também o uso de IA;
- Em outubro, publicou um programa piloto regulatório para a tecnologia e abriu consultas públicas sobre o tema, encerradas em dezembro de 2024;
- O projeto final deverá ser apresentado ainda neste semestre para ser implementado no próximo, conforme anunciado em evento realizado pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade em março.
As movimentações acontecem ao mesmo tempo em que a ANPD tem reforçado seu papel fiscalizador junto a empresas de tecnologia. A ANPD tem processos abertos contra:
- a Meta, por monetização de dados na plataforma Threads e compartilhamento de dados de usuários do WhatsApp com outros aplicativos da empresa;
- a Bytedance, por tratamento de dados de crianças e adolescentes no TikTok;
- e a OpenAI, dona do ChatGPT, para apurar denúncias de vazamento de dados do aplicativo.
ELEIÇÕES 2024
Para este ano, a Anatel aprofundou a relação com o TSE e assinou mais um acordo de cooperação técnica, com o recém-criado CIEDDE (Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia) do tribunal, ao lado da PGR (Procuradoria-Geral da República), do Ministério da Justiça e Segurança Pública e do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
“A Anatel irá usar a plenitude do seu poder de polícia junto às empresas de telecomunicações para retirar do ar todos os sites e aplicativos que estejam atentando contra a nossa democracia por meio da desinformação e do uso de inteligência artificial para deepfakes”, prometeu Baigorri na ocasião.
Depois disso, ele foi convocado a dar explicações na Comissão de Comissão de Comunicação da Câmara. “Muita gente ficou com a impressão de que a Anatel vai ter um papel proativo de ficar lá olhando nas redes sociais, identificar problemas e notificar o TSE para tirar do ar, mas não é assim. Vai ser do mesmo jeito que na última eleição. A gente tem um papel reativo”, disse ao Aos Fatos.
O presidente da agência negou que a agência antagoniza as empresas de tecnologia. “As plataformas e as redes [de telecomunicações] têm uma relação simbiótica. Um precisa do outro. Se não tiver rede, não tem aplicativo, não tem plataforma. E se não tiver plataforma, ninguém compra a rede. Então eles só vão crescer juntos. Por isso, essa visão de que um é inimigo do outro não faz sentido nenhum.”