Vídeos no YouTube ensinam a burlar regras para anunciar golpes na própria plataforma

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Sem qualquer moderação por parte da plataforma, canais de marketing digital no YouTube ensinam técnicas para burlar as regras de publicidade da própria empresa, garantindo a aprovação de anúncios que violam as políticas do Google Ads. Chamado de “nicho black”, o segmento da publicidade irregular engloba propagandas enganosas, de golpes, remédios sem eficácia e até armamentos. Os tutoriais para escapar das restrições permitem que conteúdos pagos fraudulentos continuem sendo exibidos para os usuários das redes sociais.

“Você vende algum item que pode ser considerado sensível ou difícil de anunciar, de acordo com as diretrizes e indicações do Google, Meta ou outros buscadores?” Com crachá corporativo e música instrumental ao fundo, a apresentadora do canal no YouTube de uma empresa “líder em desenvolvimento de ecommerce” fez a pergunta para engajar sua audiência antes de explicar o propósito daquele vídeo: ajudar quem tem dificuldades em publicar anúncios nas redes sociais a aumentar suas vendas.

“Produtos como armamentos, drogas, remédios controlados e itens de teor sexual têm que seguir regras rigorosas na internet para não sofrer sanções ou até mesmo o banimento da sua conta, mas com alguns ajustes e conteúdos inteligentes você consegue captar clientes qualificados e colocar sua loja virtual em destaque, levando sua conversão lá para cima!”, diz a apresentadora do canal.

O conteúdo está disponível no próprio YouTube, plataforma que seria uma das vítimas dos truques apresentados por influenciadores para burlar a moderação, mas que, na prática, acaba garantindo receitas de publicidade com a veiculação dos anúncios irregulares.

No marketing digital, os anúncios vetados pelas regras de comunidade das plataformas recebem o nome de “nicho black”. Nem todo produto desse segmento é ilegal, já que o que o define é a agressividade da promessa, muitas vezes enganosa. Esse tipo de publicidade está diretamente vinculada a golpes que prometem dinheiro fácil ou ofertas apelativas de tratamentos sem eficácia para emagrecer rapidamente, melhorar o desempenho sexual ou curar doenças.

Print mostra propaganda enganosa sendo veiculada no YouTube. Trecho do anúncio exibe duas fotos de homem, cada uma ao lado de uma régua. Na primeira é indicada a altura de 1m69 e na segunda, 1m81, sugerindo aumento da estatura. No canto inferior esquerdo, link de “Saiba Mais” aparece ao lado do título “Ficar mais alto” Enlarge yourself. Propaganda enganosa no YouTube divulga protocolo que promete, sem cirurgia, dar centímetros a mais para adultos (Reprodução/YouTube)

Contornar as restrições do Google ou do Facebook para veicular publicidade irregular é considerada aposta lucrativa, já que anúncios sensacionalistas têm maior apelo junto ao consumidor. Alguns conteúdos de marketing digital sobre o “nicho black” adotam a mesma estratégia dos anúncios que o segmento promove, chegando a prometer faturamentos de até R$ 1 milhão com as técnicas de burlar a moderação.

As políticas do YouTube proíbem o incentivo à violação dos termos de serviço da empresa, afirmando que quem postar esse tipo de conteúdo poderá sofrer punições que vão da remoção do vídeo ao encerramento da conta.

Questionada sobre os conteúdos desta reportagem, a plataforma de vídeos do Google não respondeu até a publicação. O texto será atualizado caso haja posicionamento do YouTube.

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O Aos Fatos listou 120 vídeos publicados na plataforma que utilizam o termo “nicho black” ou suas variações e que ensinam a contornar as regras de diferentes big techs — inclusive as do Google Ads, aplicadas ao YouTube.

O levantamento, que é apenas uma amostra de todo conteúdo publicado com essa temática, foi feito pelo YouTube Data Tools, ferramenta desenvolvida pela Universidade de Amsterdã. Ao analisar os vídeos, foi possível identificar dicas como:

  • Usar metáforas e outras figuras de linguagem nos anúncios em vez de palavras ou imagens claras sobre o produto (por exemplo, “derreter a banha” em vez de “emagrecer”);
  • Adotar ferramentas de inteligência artificial para avaliar o risco de as imagens escolhidas não serem consideradas seguras pela moderação;
  • Manipular IPs, cookies, navegadores e metadados para dificultar detecção das fraudes;
  • Evitar linguagem que exponha o conteúdo do produto ao cadastrar a URL onde será feita a venda;
  • Usar páginas intermediárias de venda (“presell”) com linguagem moderada para enganar os robôs das plataformas que analisam os anúncios;
  • Montar um quiz com várias páginas entre o anúncio e o link final de vendas para dificultar o trabalho do robô;
  • Utilizar ferramentas de camuflagem de links, que redirecionam os robôs das plataformas para sites “limpos” (por exemplo, para uma reportagem de portal conhecido), enquanto os potenciais compradores entram diretamente no anúncio irregular;
  • Criar ou comprar perfis reserva para continuar vendendo mesmo se for bloqueado.
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Os youtubers especializados em anúncios irregulares acompanham as mudanças na moderação das plataformas, atualizando regularmente as estratégias divulgadas para que produtos que não correspondam às políticas das empresas continuem sendo anunciados.

“A presell sem conteúdo agora é proibida pelo Google, ela não pode mais parecer uma página-ponte (…). O Google já identificou que tinha muita gente usando isso e agora deixou claro na política que é proibido”, afirmou um criador minutos antes de ensinar uma outra técnica para compartilhar links de anúncios nas descrições de vídeos.

Print da live “Semana da Rataria - aula 2 - os 7 hacks da deepweb para manter seus anúncios rodando eternamente”, promovida pelo canal Black Rat. No canto superior direito da tela, o apresentador aparece vestindo uma máscara de rato branca. No centro, slide exibe a lista de conteúdos que será ensinada na apresentação.Rataria. Escondido atrás de máscara, youtuber de canal especializado no “nicho black” faz live ensinando técnicas para não ter anúncios barrados pela moderação (Reprodução/YouTube)

A proliferação de ensinamentos sobre como burlar as regras de anúncios permite que publicidade enganosa continue sendo praticada nas plataformas. Só no YouTube, o Aos Fatos cruzou nas últimas semanas com anúncios que prometiam curar diabetes e Alzheimer, aumentar a estatura, emagrecer radicalmente e tratar problemas de visão e micoses por meio de protocolos sem eficácia. Também foram flagradas propagandas duvidosas oferecendo técnicas para ganhar dinheiro rápido.

“Diante de um tutorial de como violar os termos, o próprio ecossistema de moderação de conteúdo é fragilizado e colocado em xeque”, avalia João Victor Archegas, pesquisador sênior do ITS Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio).

Para o especialista em direito digital, as plataformas deveriam priorizar a moderação desse tipo de conteúdo e garantir uma maior transparência sobre como estão agindo para combatê-lo, a fim de evitar a proliferação de anúncios ilegais.

“O principal problema na detecção de conteúdo ilícito nas plataformas é a falta de moderação adequada”, afirma Yasmin Curzi, do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV (Fundação Getulio Vargas).

A pesquisadora acredita que a aprovação do PL 2.630/2020, conhecido como “PL das Fake News”, poderia obrigar as empresas a investir mais para melhorar a moderação e a aplicação de suas próprias regras de comunidade.

O “PL das Fake News”, que aguarda votação na Câmara, prevê que as plataformas digitais passem a ser responsabilizadas solidariamente por qualquer conteúdo que for veiculado mediante pagamento, o que inclui impulsionamentos e anúncios.

Enquanto a legislação não deixar mais clara a responsabilidade das plataformas nesses casos, é o Código de Defesa do Consumidor quem protege as vítimas de publicidade enganosa, que podem pleitear o ressarcimento dos prejuízos e indenização com processo no Judiciário, explica Camila Leite, advogada e pesquisadora do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).

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BOOM DO MARKETING DIGITAL

A demanda por conteúdo que ensina a promover anúncios irregulares é aquecida pela expansão do “marketing de afiliados”, expressão que define relações comerciais em que uma pessoa (o afiliado) divulga um produto em troca de comissão por cada venda realizada.

A prática é legal e adotada por grandes redes do varejo online, como a Amazon e Magazine Luiza. Entretanto, a estratégia também tem sido usada para aumentar a capilaridade de golpes na internet. Como o Aos Fatos mostrou, o dono de uma empresa que veicula anúncios fraudulentos nas redes sociais foi um dos palestrantes da Afiliados Brasil, evento que se autodenomina o maior congresso sobre marketing de afiliados da América Latina. O tema de sua apresentação foi justamente como anunciar no Facebook sem sofrer bloqueios.

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A análise dos tutoriais disponíveis do YouTube mostra que muitos dos anúncios do “nicho black” oferecem produtos disponíveis em plataformas de afiliados, como a Hotmart, a Monetizze e a Perfect Pay, que têm vitrines com itens como cursos e encapsulados para serem divulgados em troca de comissão.

Como o modelo de afiliados permite que qualquer pessoa venda pela internet sem um investimento inicial ou estoque, a prática tem sido usada como fonte de renda extra. Com isso, as técnicas de marketing digital, incluindo as que visam burlar as regras de moderação, passaram a ser procuradas não apenas por profissionais do setor, mas também por usuários comuns das redes.

Com foco nesse público, além dos tutoriais para divulgação de anúncios irregulares, também circula nas redes sociais propaganda de empresas que oferecem serviços de marketing para impulsionar as vendas no “nicho black”.

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