Méuri Elle/Aos Fatos

Site da Editora Abril para grávidas excluiu textos com indícios de uso de inteligência artificial

Por Alexandre Aragão

28 de fevereiro de 2024, 16h00

Um antigo manual da Editora Abril, feito pelo decano da edição de revistas Thomaz Souto Corrêa, lista as “características de uma capa vencedora”: atratividade, legibilidade, clareza nas chamadas, surpresa e representatividade do conteúdo da revista.

A capa da Veja de duas semanas atrás cumpre ao menos um desses critérios — a surpresa. Em primeiro plano, a mão direita do personagem aponta na direção do leitor e deixa o erro evidente: um sexto dedo que não deveria estar ali, vestígio de que a imagem foi criada por alguma ferramenta de inteligência artificial generativa.

A falha da Veja viralizou nas redes, reaquecendo o debate sobre o uso de IA no jornalismo. E esse pode não ser o único exemplo de conteúdo do tipo veiculado em títulos da Editora Abril.

Textos publicados no site Bebê.com.br sob um nome fictício, Vanessa Tavares, não foram escritos por jornalistas da Redação, conforme apurou a Plataforma. Levantamento feito pela newsletter identificou 50 URLs de conteúdos com essa autoria.

Segundo pessoas que testemunharam o processo de publicação e falaram em condição de anonimato, os textos possuíam indícios de que haviam sido gerados por IA. Disponíveis ao menos até o final de janeiro, todos já foram excluídos, conforme foi possível verificar.

A Editora Abril não respondeu ao pedido de posicionamento, enviado na segunda-feira (26) e reiterado na terça (27).

A Plataforma de hoje é sobre o uso de IA no jornalismo.


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Hexadáctilo. Homem de seis dedos ilustrado na capa da Veja (Reprodução)


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Os cinco textos acima, publicados no Bebê.com.br sob autoria de Vanessa Tavares, se propunham a apresentar serviços relevantes para gestantes e puérperas. Todos foram ao ar entre dezembro passado e janeiro deste ano — e não estão mais disponíveis, apesar de ainda aparecerem indexados na busca do Google.

Consultado pela Plataforma há cerca de um mês, quando ainda estava acessível neste link, o exemplo que promete ajudar na escolha de um “obstetra ideal para um parto seguro” citava como única fonte a revista Crescer, da Editora Globo. Em reportagem de 2016 — assinada por duas repórteres e com entrevistas, informações de livros e dados do Ministério da Saúde —, a Crescer detalha como selecionar um médico.

Antes de irem ao ar, os textos de Vanessa Tavares eram incluídos no publicador do Bebê.com.br por uma empresa terceirizada e não eram editados por jornalistas do site. Nenhum deles incluía conteúdo novo, como entrevistas com especialistas.

Apesar de a Plataforma ter identificado apenas 50 textos com o nome fictício, a Redação do Bebê.com.br chegou a receber 20 notas diárias da empresa terceirizada, segundo profissionais que tiveram acesso ao sistema.

O objetivo seria aumentar o volume de publicações, a audiência do site via busca do Google e, consequentemente, o faturamento com anúncios — além de abrir a possibilidade de demitir jornalistas.

Questionada por que todos os textos foram excluídos, a Editora Abril não respondeu.


A Editora Abril construiu a reputação de seus títulos com décadas de jornalismo de qualidade. Caso de fato conteúdos do site Bebê.com.br tenham sido produzidos por modelos computacionais, é perturbador imaginar a possibilidade de que uma grávida tomasse decisões de vida ou morte com base neles.

Além do risco à reputação, há também um possível risco jurídico. O tema da propriedade intelectual é central no debate sobre conteúdo gerado por IA. Em dezembro, o New York Times entrou com uma ação judicial para impedir que a Microsoft e a OpenAI, dona do ChatGPT, utilizem conteúdo do jornal para treinar modelos generativos.

A matéria-prima do jornalismo é a novidade, e é boa prática citar e linkar outros veículos que já tenham abordado o tema em pauta. No caso de conteúdo gerado por IA, no entanto, seria grave que um texto usasse como fonte uma publicação concorrente, levando em consideração os direitos sobre a propriedade intelectual. Jornalismo de qualidade custa caro, como preconiza o paywall.

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O uso de IA no jornalismo é inevitável, mas há responsabilidades do ofício a serem consideradas. O Núcleo, veículo especializado na cobertura de redes, foi pioneiro ao lançar em maio passado uma política de uso de IA. Entre os compromissos está o de nunca usar ferramentas para “gerar conteúdo completo de uma publicação” ou “como editor ou produtor final de uma publicação”.

“Jornalismo precisa levar a sério o processo de edição de textos e outras peças jornalísticas. É o controle de qualidade de um veículo”, explica à Plataforma Sérgio Spagnuolo, diretor-executivo do Núcleo.

“Por mais que repórteres e editores possam cometer erros, são responsáveis pelo material e seu interesse é que seja o melhor possível”, ele continua. “Já recursos de IA, em todos os seus méritos e utilidades, não se interessam nem se responsabilizam pelo processo jornalístico, só pelo que cospem, muitas vezes com resultados imprevisíveis.”

Ao menos no caso da capa da Veja, essa premissa se mostrou verdadeira, com consequências que vão além da baixa qualidade da ilustração.

Em um post no LinkedIn, o jornalista Rafael Kenski, que trabalhou em títulos da Editora Abril e hoje atua como consultor de IA, resumiu o drama: “O triste do caso da revista Veja é que a Abril tem uma longa história e tradição em descobrir, desenvolver e apoiar ilustradores e fotógrafos brasileiros”, ele escreveu. “Na atual crise do jornalismo, estamos perdendo também essa cultura.”

Aos Fatos já utilizou imagens criadas por IA generativa para subsidiar colagens feitas por humanos, nesta reportagem, e para ilustrar reportagens sobre IA, como esta. Em todos os casos, há avisos ao leitor informando que o Midjourney foi utilizado. São exceções. A maioria das reportagens do Aos Fatos é ilustrada por Méuri Elle, artista que faz parte da equipe e influencia todo o processo editorial.

Para construir a FátimaGPT, robô checadora que usa o modelo da OpenAI, o Aos Fatos desenvolveu um protocolo que minimiza o risco de erros factuais.

  • O bot utiliza uma técnica de geração aumentada por recuperação (RAG, na sigla em inglês para “retrieval augmented generation”), que obtém informações apenas de um banco de dados próprio;
  • Desta forma, as informações do bot são atualizadas, e o risco de alucinações é reduzido;
  • Também estabelecemos um rigoroso processo de controle de qualidade: os usuários relatam erros, e o bot passa por testes periódicos para avaliar a precisão e identificar possíveis viéses.

Como toda inovação, o uso de IA generativa no jornalismo pode partir de decisões equivocadas e produzir resultados catastróficos e perigosos. Além de humanos na supervisão, há um ingrediente imprescindível para mitigar os riscos: uma boa dose de transparência com vossa excelência, o leitor.

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De 2002 até sua morte, em 2013, Roberto Civita organizou seminários para os executivos da Editora Abril em que repetia mais ou menos os mesmos conselhos, conforme Carlos Maranhão — presente na maioria dos encontros — registra na biografia “O Dono da Banca: a vida e as ideias do editor da Veja e da Abril” (Cia. das Letras). A citação reflete como o olhar humano é insubstituível no bom jornalismo:

“Siga sua intuição e se coloque no lugar do leitor. Fale olho no olho com um só leitor. A cada semana você tem que surpreendê-lo e seduzi-lo. Conte boas histórias, encante, ensine e divirta sua audiência. Chame as coisas pelos nomes certos. Feito o texto, ler, reler e ler de novo, corrigindo cada nova versão sem dó. Fuja da ordem inversa, da voz passiva, do particípio e do gerúndio como o diabo da cruz. Não tenha amigos na matéria e trate com dignidade os que, eventualmente magoados, nos tratarem como inimigos. Sempre, sem exceções, mesmo sob o fogo do inferno, deixar aberta — ou reabrir, com pé de cabra, se preciso — a porta do diálogo. Faça tudo com paixão. E nunca, nunca mesmo, esquecer que esta é a melhor profissão do mundo.”

Colaborou Bruno Fávero.

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