Desde o fim do ano passado, a Havan tem enxugado gelo ao tentar conter uma enxurrada de anúncios fraudulentos que usam a IA (inteligência artificial) para promover um golpe que se tornou viral. Os conteúdos, que são acompanhados de um vídeo falso do empresário Luciano Hang, circulam livremente ainda hoje em plataformas como Facebook e Instagram graças a falhas de moderação. Alvo de milhares de reclamações das vítimas dos estelionatários, a varejista cobra a responsabilização das big techs.
A fraude, que estourou nas semanas anteriores ao Natal, usa uma “deep fake” — nome dado a conteúdos falsos gerados por IA — de Hang para inventar que a Havan teria sido obrigada pelo Procon a vender celulares de última geração a R$ 179. Só nas duas primeiras semanas de dezembro, a varejista registrou ao menos 3.000 contatos de consumidores por causa do falso anúncio, que também motivou uma enxurrada de queixas no Reclame Aqui e até incidentes em lojas físicas.
O principal canal para a veiculação do golpe foram anúncios pagos nas redes sociais. As propagandas fraudulentas podem ser encontradas na Biblioteca de Anúncios da Meta, que é responsável por Facebook, Instagram e WhatsApp. Em comentários no Reclame Aqui da loja online da Havan, consumidores também relatam ter se deparado com o golpe no Google e no Kwai. O Aos Fatos identificou ainda versões da “deep fake” circulando no TikTok.
Só na última segunda-feira (15) — mais de 40 dias depois de o caso ganhar o noticiário —, pelo menos 15 novos anúncios do golpe subiram nas redes da Meta. Além disso, ao menos dez peças publicitárias enganosas completaram um mês no ar sem terem sido derrubadas. Não foi possível verificar a circulação da fraude em outras plataformas, já que a Meta é a única empresa que dispõe de uma biblioteca de anúncios que permite pesquisas por tema.
Antes da fraude viral, só no ano passado, a Havan já tinha denunciado mais de 580 links que usavam a marca para aplicar golpes. Por causa da dimensão do problema, a varejista contratou uma empresa de segurança digital para investigar os sites reportados. Para cada link que conseguem derrubar, porém, novas páginas surgem. “É uma guerra inglória”, afirmou ao Aos Fatos Fábio Roberto de Souza, responsável pelos canais de relacionamento da empresa.
FALHAS DE MODERAÇÃO
O objetivo da Havan é chegar aos golpistas, mas para isso a empresa depende de ações na Justiça para derrubar o sigilo bancário dos beneficiários dos pagamentos e obter dados sobre os anunciantes. “Às vezes, o responsável que a gente identifica como preliminar é só fachada, nem sabe que o nome dele está sendo usado”, disse Souza.
Parte do problema é causado pelas plataformas, que não checam sistematicamente a identidade de quem publica os anúncios. Os golpistas também usam outras estratégias para evitar serem responsabilizados:
- Os anúncios no Facebook são publicados por contas descartáveis, provavelmente compradas no mercado ilegal, já que os perfis costumam ser novos e, ainda assim, registrar números substanciais de curtidas e seguidores, apesar de não publicarem conteúdo;
- Os criminosos registram os domínios golpistas em outros países, contratando planos que preveem a proteção dos dados de cadastro;
- O código-fonte das páginas fraudulentas mostra a utilização de recursos e scripts hospedados em outros sites — o que pode indicar atuação em rede, embora não seja possível dizer com segurança que os donos dos sites copiados sabem que estão sendo usados;
- Em vários portais, há indícios de que os mesmos domínios são usados para promover diferentes golpes — em alguns sites encontrados pelo Aos Fatos, por exemplo, a fraude do celular da Havan dividia espaço com a do falso leilão do Magazine Luiza.
Embora algumas dessas estratégias dificultem a identificação dos criminosos, a repetição desses padrões poderia ajudar as plataformas a suspeitar dos anúncios fraudulentos.
Diante da dificuldade de chegar aos anunciantes, o representante da Havan considera que as redes deveriam ser responsabilizadas por não “tomar cuidado de verificar, fazer aquela pré-checagem” antes de permitir que propagandas falsas circulem. Segundo Souza, porém, as big techs costumam recorrer ao Marco Civil da Internet (lei nº 12.965/2014) para dizer que não são responsáveis pelo conteúdo publicado por terceiros.
“Eu acho que a temática precisa ser discutida e precisa ter uma legislação um pouco mais abrangente na busca tanto de criar regras para que certos conteúdos possam ir ao ar como também na parte punitiva, se identificada a fraude. O Marco da Internet só hoje não está suprindo isso”, afirma o funcionário da Havan.
Souza é pessimista e acredita que o problema dos golpes deve se agravar com a popularização da IA entre os estelionatários. “Este ano a gente está entrando num período eleitoral, imagina só o que não vai sair de montagem com inteligência artificial? Dá até medo”, diz, antecipando que “toda rede varejista vai ser vítima desse tipo de fraude daqui pra frente.”
A responsabilização das plataformas pelo conteúdo pago — como os anúncios — é um dos pontos previstos pelo “PL das Fake News” (PL 2.630/2020), que aguarda votação na Câmara. Após intensa campanha das big techs contra o projeto, porém, ele foi apelidado de “PL da Censura” por políticos de direita, o que contribuiu para travar sua tramitação. Segundo Souza, a Havan “não vem se envolvendo nessa discussão”.
Além da discussão no Congresso, a responsabilização das plataformas também vai ser julgada pelo STF (Supremo Tribunal Federal).
O proprietário da Havan é conhecido por seu apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e está com seus perfis bloqueados nas redes desde 2022, por determinação do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes. Hang foi apontado como um dos membros de um grupo de empresários que defendiam um golpe de Estado em caso de vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições de 2022. Na época dos bloqueios, a Havan alegou que Hang teria sido “vítima de censura”.
Consequências econômicas. Para o coordenador do Conselho de Segurança Cibernética e de Dados Pessoais da ACSP (Associação Comercial de São Paulo), o advogado Luiz Augusto D’Urso, o aumento das fraudes não prejudica apenas a imagem das empresas, que têm seus nomes usados pelos golpistas, mas pode afetar também suas vendas, já que o medo desestimula o mercado digital.
“O empreendedor precisa convencer o consumidor que um anúncio é real, é legítimo, principalmente quando faz grandes promoções”, considera.
D’Urso também cobra mais atuação das plataformas, que diz não serem “as melhores parceiras” de diálogo dos empresários para combater o problema dos golpes. “Nós precisamos repensar a responsabilidade das plataformas porque, além de hospedar todo esse ecossistema, elas dão mais publicidade aos golpistas quando aceitam o dinheiro do impulsionamento e não verificam adequadamente se aquele anúncio é fraudulento”, argumenta.
Outro lado. Procurada para comentar a propagação do golpe em suas redes, a Meta afirmou que "atividades que tenham como objetivo enganar, fraudar ou explorar terceiros não são permitidas” em suas plataformas e que está aprimorando sua tecnologia para combater atividades suspeitas. A empresa também orientou os usuários a denunciar esses conteúdos.
Já o Kwai disse que “está equipado com mecanismos de segurança que atuam 24 horas por dia, combinando inteligência artificial e análise humana” para identificar e remover rapidamente conteúdos que violem suas regras e que os anúncios do golpe da Havan foram retirados do ar em dezembro de 2023. O Kwai também declarou que “acompanha e apoia as discussões e iniciativas relacionadas à construção de um ambiente digital mais seguro e confiável” e que respeita e segue as leis e regulamentações dos países onde opera.
O TikTok, por sua vez, disse que não permite tentativas de fraudar ou enganar sua comunidade e que, quando identificados, esses conteúdos são removidos. A empresa disse ainda que disponibiliza um guia para ajudar a identificar golpes online e estimula os usuários a denunciar as fraudes no próprio aplicativo.
O Google não respondeu ao pedido de posicionamento do Aos Fatos até a publicação deste texto.