Na semana passada, dividi a atenção entre dois livros: a recém-lançada edição brasileira de “Como Resistir à Amazon e Por Quê”, do autor Danny Caine — e uma coleção de textos da lavra de Jeff Bezos, que adquiri na Amazon e li no Kindle.
A Plataforma desta semana traz uma conversa com Caine, que é dono de uma livraria no estado americano do Kansas, e reflete sobre o poder da empresa fundada por Bezos nos Estados Unidos e no Brasil.
EM 5 PONTOS:
- O Amazon Prime é central para fidelizar clientes e coletar dados;
- O mercado de livros é exemplar dos métodos praticados pela Amazon para espremer a concorrência;
- A FTC, órgão antitruste dos EUA, acusa a Amazon de enganar consumidores para que assinem o Prime;
- E no Brasil, o Cade poderia fazer algo a respeito? A advogada Ana Frazão, ex-conselheira do órgão, afirma que sim;
- Mas, afinal, é possível boicotar a Amazon? Danny Caine suspeita que não.
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🚚 É possível resistir à Amazon?
Seja por ironia do destino ou por estratégia de um clube de leitura que assino, recebi em casa o livro sobre como resistir à Amazon exatamente no Prime Day, data em que usuários do serviço por assinatura Amazon Prime têm mais incentivos para comprar.
“Nós sempre nos perguntávamos como poderíamos fazer um programa de fidelidade, e então um engenheiro de software júnior sugeriu a ideia de oferecermos frete rápido, grátis e ilimitado”, recorda Jeff Bezos no livro em que reúne memórias e cartas a investidores.
- Só os clientes mais fiéis assinavam o Prime nos primeiros meses, e o alto custo de não cobrar pelos envios quase fez Bezos desistir;
- Mas a empresa tinha liquidez financeira e bancou a ideia, que se mostrou uma aposta correta.
Para Caine, “a assinatura Prime facilita muito que você dê dinheiro e dados à Amazon”. Ele argumenta que a oferta de entrega rápida, grátis e ilimitada diminui o lucro, “mas o que [a Amazon] perde no transporte, ganha em dados: os membros Prime não só compartilham seus hábitos de compra, navegação, escuta e streaming com a empresa mais valiosa do mundo como pagam para fazê-lo”.
A empresa não divulga números exatos, mas reforça a relevância do mercado brasileiro. “O Brasil é um dos países com crescimento mais rápido de membros Prime no mundo, além de estar entre os maiores em número de cliente”, disse Lilian Dakessian, head de marca e comunicação da Amazon Brasil, ao comentar a estratégia de divulgação do Prime Day em entrevista recente ao Meio&Mensagem.
O livro “Como Resistir à Amazon e Por Quê” custa R$ 60 no site da editora, mais frete de R$ 15. Na Amazon está mais barato: R$ 43,83, com entrega grátis para assinantes Prime.
Em 1999, Jeff Bezos foi escolhido “pessoa do ano” pela revista Time, e a Amazon já havia revolucionado o comércio de livros — o primeiro mercado em que a empresa atuou, por decisão estratégica, conforme o fundador rememorou.
“Eu fiz uma lista de produtos que poderia vender online. Fiz um ranking e escolhi livros porque se diferenciam em um aspecto específico: há mais itens nessa categoria do que em qualquer outra”, escreveu Bezos. “A ideia fundadora da Amazon era oferecer uma seleção universal de livros impressos.”
Em 2019, Danny Caine endereçou uma carta pública ao fundador da Amazon que recebeu atenção da imprensa americana. “Corrija-me se eu estiver errado”, ele escreveu, “mas me parece que o seu negócio funciona assim: vender livros com prejuízo para fisgar pessoas com as assinaturas Prime, com Kindles, Alexas e outros produtos cujas margens de lucro são mais altas.”
Ele refina o argumento no livro, que foi lançado em 2021 e agora ganha edição brasileira pela Editora Elefante. Com linguagem didática e exibindo cálculos da cadeia de produção de livros, Caine exemplifica as formas pelas quais a Amazon espreme a concorrência de livreiros que não se submetem ao marketplace dela.
O mesmo ocorre no Brasil, onde as editoras têm margens estreitas — o custo do papel é atrelado à cotação do dólar. No início do mês, o influenciador Felipe Neto reclamou no Twitter que livros são caros demais, levando em conta a renda da população: “Aqui é uma mistura de ganância com burrice que transforma o livro em item da elite”, escreveu.
O editor André Conti refutou a ideia em texto na Folha de S.Paulo, na semana passada. Ele exemplifica com os custos que editoras têm para publicar um livro estrangeiro: adiantamento ao autor, tradução, preparação de texto, revisões, diagramação, textos de divulgação, impressão. “Dez meses depois, portanto, o taxímetro está marcando R$ 57 mil”, escreveu Conti. “Na publicação, pagamos o restante do adiantamento, então o valor sobe para R$ 64 mil.”
Mais à frente, ele conclui: “Ou seja, se ao longo de um ano toda a tiragem for vendida — o que, vale repetir, frequentemente não ocorre —, sobrará para a editora um faturamento de mais ou menos R$ 39 mil, de um investimento inicial de R$ 65 mil, e de mais de 12 meses de taxímetro ligado (na melhor das hipóteses). Com esse dinheiro, a editora paga aluguel, salários e todos os demais custos fixos. O que sobra é lucro.”
Uma pesquisa da Nielsen divulgada em maio, feita em parceria com a Câmara Brasileira do Livro e com o Sindicato Nacional dos Editores de Livros, mostrou que o faturamento das editoras com vendas em lojas virtuais (35,2%) foi maior do que em lojas físicas (26,6%) pela primeira vez. E você sabe qual é a loja virtual que mais vende livros, no Brasil e nos Estados Unidos.
A FTC (Federal Trade Commission), autoridade antitruste dos Estados Unidos, é liderada desde 2021 pela advogada Lina Khan. Ela ganhou notoriedade em 2017, quando era estudante da Yale Law School e publicou um artigo intitulado “O Paradoxo Antitruste da Amazon”.
- Até então, predominava a doutrina de que o preço para o consumidor final é a métrica mais relevante para o direito antitruste, independentemente da dominância que empresas tenham no mercado;
- Khan usou o exemplo da Amazon para argumentar que, mesmo com preços menores, o consumidor é prejudicado pelo o que classificou como um monopólio da empresa de Bezos;
- No mês passado, a FTC entrou com a primeira ação contra a Amazon sob a liderança da advogada, argumentando que a empresa engana consumidores para coagi-los a assinar o Prime;
- O processo não entra no mérito sobre práticas anticompetitivas, cerne do artigo de Khan sobre a Amazon, mas a expectativa é que haja mais ações;
- A empresa nega e diz que “os consumidores amam o Prime e que, por design, o serviço foi feito de forma clara e simples para que consumidores possam assiná-lo ou cancelá-lo”.
Em uma troca de emails nesta semana, Caine comemorou e disse acreditar que a FTC tem capacidade para “fazer progressos relevantes contra a Amazon e outros monopólios”.
No Brasil, o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) poderia agir. “O Cade já poderia abrir, se quisesse, uma investigação de ofício — sem precisar de um tipo de provocação, para fazer essas mesmas investigações no Brasil”, me explicou a advogada Ana Frazão, ex-conselheira do órgão, em conversa por videoconferência na última segunda-feira (24).
Em 2017, quando começou a vender eletrônicos no Brasil, a Amazon seguiu a cartilha que já aplicara em outros países. Oferecendo condições melhores para que vendedores utilizassem seu marketplace — taxas menores e pagamento à vista em compras a prazo —, a empresa fez despencarem as ações dos principais concorrentes, como B2W, Magazine Luiza, Via (antiga ViaVarejo) e Mercado Livre.
Na época, questionei o então country manager da Amazon Brasil, Alex Szapiro, se a empresa utilizava sua liquidez financeira para agir, na prática, como um banco. “Na verdade, a gente não entra muito nesse meandro, mas do ponto de vista do vendedor é isso”, ele me disse, para reportagem no finado BuzzFeed News. “A gente quer dar a melhor oferta de financiamento para o comprador, sem onerar o vendedor.”
“Nos Estados Unidos, a Amazon tem uma posição dominante muito maior do que a que tem aqui no Brasil”, ponderou Ana Frazão. “Se a gente está falando de determinados produtos, pode ser uma posição dominante. Então, a gente tem que segmentar esses mercados, mas fato é que o direito da concorrência se preocupa com o agente que detém posição dominante — e isso inequivocamente a Amazon detém no Brasil.”
Em artigo recente no JOTA, ela detalhou os “dark patterns” (“padrões obscuros”) mencionados pela FTC para acusar a Amazon de enganar consumidores. São táticas que quem compra na internet já viu. Por exemplo, oferecer um suposto desconto e apresentar duas opções: “sim” e “não, quero pagar mais”, a fim de despertar sentimentos negativos.
“Se a questão é extração de renda do consumidor, se a Amazon se utiliza no Brasil desses mesmos expedientes, o fato é que está extraindo ilicitamente a renda do consumidor também aqui”, Frazão explicou.
“Pouco importa se lá são milhões a mais ou aqui são milhões a menos, a gente tem uma base de usuários grande o suficiente para mostrar que aquele problema pode estar acontecendo aqui, ainda que em proporções menores, o que não afasta o direito antitruste.”
Em uma nota à imprensa divulgada em maio, a Amazon disse que “os pequenos e médios negócios que vendem no marketplace da Amazon.com.br, lançado em 2017, já geraram mais de 54 mil empregos diretos e indiretos no Brasil relacionados à [sic] essa parceria”.
“Eles têm uma ideia clara sobre como querem ser percebidos pelo mundo: uma empresa essencial, conveniente, amiga dos pequenos negócios e do meio ambiente”, escreveu-me Caine. “Infelizmente, não importa o quanto distorçam, há muitas evidências de que essas histórias não são verdadeiras.”
“Até onde eu sei, o servidor do Gmail que eu estou usando para responder suas perguntas pode utilizar tecnologia da AWS”, continuou o autor. “Essa é parte do perigo de empresas monopolistas ficarem tão grandes. Não consigo evitá-las mesmo que eu queira.”
De todos os mercados em que a Amazon atua, o mais lucrativo é o da AWS (Amazon Web Services), que foi criada em 2006 como pioneira em serviços de computação na nuvem. É líder no segmento, à frente de Azure (Microsoft) e Google Cloud. Parte relevante da internet é hospedada usando serviços da AWS.
“Não tenho certeza se um usuário da internet é capaz de boicotar a Amazon; mesmo que quisesse, é muito difícil saber quais serviços um site está no usando no backend. Isso torna ainda mais importante resisitir à Amazon de outras formas”, concluiu o autor de “Como Resistir à Amazon e Por Quê”.