Méuri Elle/ Aos Fatos

🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Novembro de 2023. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Grupo ligado a igrejas usa perfis falsos e treina voluntários para enganar mulheres que buscam informação sobre aborto

Por Bianca Bortolon e Ethel Rudnitzki

27 de novembro de 2023, 12h05

“Mulher, você é incrível! Não deixe que nada mude a forma como você se vê. Tenha orgulho de suas escolhas e de quem você é. Tudo o que viveu te trouxe até aqui. Se você está em uma gravidez indesejada, entre em contato, podemos ajudar você!”. É o que diz uma das publicações da página Gravidez Indesejada no Facebook, com mais de mil seguidores. O post vem acompanhado de hashtags usadas por grupos que defendem o direito ao aborto, como #NemPresaNemMorta e #NinguémSoltaAMãodeNinguém.

Ao contrário do que aparenta, a página é na verdade uma armadilha para, a qualquer custo, convencer mulheres a manterem uma gravidez indesejada – inclusive em casos em que o aborto é permitido pela lei brasileira. Por trás das publicações que falam em liberdade de escolha está uma organização antiaborto chamada Brazil4Life.

Além dessa página, Aos Fatos encontrou outros cinco perfis falsos no Facebook, três no Instagram, um no X (ex-Twitter) e um site enganoso administrado pela mesma organização. Manter páginas e perfis que ocultam seu verdadeiro intuito viola as Diretrizes de Comunidade da Meta, empresa dona de Facebook, Instagram e WhatsApp.

A estratégia desses perfis e páginas é a mesma: oferecer ajuda a mulheres que vivem gravidez indesejada em publicações de tom feminista, nas quais divulgam um número de WhatsApp — o mesmo usado por integrantes da Brazil4Life em redes sociais.

Além de postar em seus próprios feeds, as contas também divulgam o serviço por meio de comentários em grupos e publicações feministas para atrair quem esteja em busca de opções diante de uma gravidez indesejada — entre elas, um aborto, legal ou não.

“E quando a gestação não é planejada? O que fazer? Entre em contato. Nós podemos te ajudar”, publicou o perfil Indesejada Gravidez no grupo Gravidez Menstruação e Período Fértil, com mais de 128 mil membros no Facebook.

O podcast Caso das 10 mil, da Folha de S.Paulo, tratou, em um de seus episódios, da abordagem enganosa e do curso oferecido pela Brazil4Life.

“Procura ajuda.” Em publicação sobre aborto seguro do portal Catarinas, um perfil falso ligado a organização antiaborto usa os comentários para “oferecer ajuda” e divulgar número de telefone (Reprodução)
“Procura ajuda.” Em publicação sobre aborto seguro do portal Catarinas, um perfil falso ligado à organização antiaborto usa os comentários para “oferecer ajuda” e divulgar número de telefone (Reprodução)

Terapia de choque

A partir do momento em que as mulheres entram em contato com as páginas procurando ajuda, são atendidas por voluntários que pedem informações sobre a gestação. Eles, aos poucos, tentam convencer essas pessoas a manter a gravidez, ignorando inclusive quando há casos de aborto legal. A legislação brasileira permite o aborto em casos de estupro, risco à vida da gestante e anencefalia do feto.

Os voluntários realizam treinamentos oferecidos pela Brazil4Life para se tornarem ativistas “pró-vida”. A reportagem participou de um desses cursos online, vendido por R$ 70 na plataforma Sympla e transmitido via Zoom nos dias 19, 20 e 21 de outubro deste ano.

Durante os três dias de aulas, as sócias da Brazil4Life e outras integrantes da organização ministraram palestras sobre como rebater argumentos em defesa do direito ao aborto e quais são as técnicas para abordar gestantes. O curso também revela casos em que a organização já atuou.

“Eu gosto de começar com algumas perguntas que eu acho importante, por exemplo: a idade da gestante, a idade gestacional, se ela já cometeu algum aborto e se tem filhos. A partir daí, eu começo a conversar com ela sobre os riscos. Até então, elas não sabem que somos ‘pró-vida’”, afirmou Anne Carrero, integrante da Brazil4Life, durante treinamento para novos voluntários da organização.

Ao final do curso, as organizadoras enviam materiais para que voluntárias e voluntários (homens também podem participar) deem continuidade, por conta própria, aos “atendimentos”, termo usado para as abordagens.

Além de vídeos antiaborto e imagens de embriões em desenvolvimento, é enviada uma apostila com direcionamentos específicos para o contato com as gestantes. O material explicita a abordagem enganosa, alertando que a pessoa tem interesse em medicamentos para abortar e que não sabe o propósito da organização.

“Lembre-se: a pessoa chegou até você para comprar a medicação e até o momento não sabe com quem está falando, então nesse momento podemos lidar com ela como se fossemos uma ‘empresa’ que vai atendê-la em sua necessidade”, diz o documento.

Fluxograma mostra como é a abordagem dos voluntários da Brazil4Life com as mulheres (Luiz Fernando Menezes/ Aos Fatos)

Em relação aos supostos riscos à saúde da gestante, é importante ressaltar que a OMS (Organização Mundial da Saúde) considera as intervenções para interromper a gravidez seguras, se feitas com acompanhamento de profissional de saúde capacitado. Já as alegações de que o aborto causa depressão e comportamentos suicídas ou que aumenta o risco de câncer de mama são enganosas, surgidas de estudos com falhas metodológicas e que já foram desmentidos por especialistas.

Em entrevista à Rede Super em 2016, uma das fundadoras da Brazil4Life admite que a intenção da abordagem é assustar as gestantes. “A gente choca elas para elas verem mesmo como é a realidade. Não é um monte de célula. É um ser humano igual a ela. E aí nós mostramos como é feito o aborto, e nós explicamos a ela que ela já é mãe. Agora ela tem que decidir se ela quer ser mãe de um bebê vivo ou de um bebê morto”, diz.

Print de conversa entre voluntário da Brazil4Life e gestante atendida‘Vocês não são a favor do aborto’. Conversa de WhatsApp entre gestante e voluntária da Brazil4Life divulgada durante o treinamento (Reprodução).

A organização

A instituição diz oferecer “acolhimento a mulheres em situação de gravidez indesejada”, além de cursos e palestras contra o aborto e a Escola de Princesas, um evento cristão de etiqueta para meninas realizado em igrejas.

Assim como o treinamento do qual Aos Fatos participou, a Brazil4Life também oferece cursos para influenciadores em que ensina a divulgar o discurso antiaborto para seus seguidores.

O objetivo é que cada um desses voluntários possa trabalhar por conta própria para convencer mulheres a serem contrárias ao aborto. “Ao invés de por receita de bolo no Facebook, põe lá ‘Eu sou a favor da vida. Está grávida e precisa de ajuda? Liga pra esse número'. Se você fizer isso todos os dias no Facebook, Instagram ou Twitter eu tenho certeza que você já teria salvado muitas vidas”, incentivou uma das fundadoras da Brazil4Life no início do treinamento.

A Brazil4Life diz já ter “salvado mais de 13 mil bebês” do aborto no Brasil e no mundo. Fundada em 2000 pela ativista antiaborto Ina Braniff e por sua irmã Vera Ribeiro, a organização tem uma sede em Belo Horizonte e outra em Chicago, nos Estados Unidos.

Lá, Ina e o marido dela, o pastor americano aposentado Jim Braniff, atuam abordando gestantes em entradas de clínicas de planejamento familiar que realizam o procedimento de aborto, legalizado em muitos estados americanos.

Esse modelo de atuação foi importado por ela ao Brasil e para as redes. Durante o treinamento de voluntários, a Brazil4Life utiliza materiais da organização cristã PreBorn, que financia “clínicas de gravidez pró-vida” nos Estados Unidos.

A organização também traz personalidades do movimento antiaborto americano para fazer palestras e eventos no Brasil. No início de novembro, a convite da Brazil4Life, Rebecca Kiessling, fundadora da organização Save the 1 (salve o 1%, em português), que atua contra a permissão de aborto em casos de estupro, foi convidada a discursar em igrejas em São Paulo e Pernambuco.

Postagem de Rebecca Kinssley ao lado de Ina Braniff em Igreja da Assembleia de Deus em São Paulo em novembro de 2023
Convidada especial. Ina Braniff e Rebecca Kiessling viajaram por igrejas no Brasil fazendo palestras contra o aborto em casos de estupro (Reprodução)

“Há uma articulação transnacional [do movimento antiaborto], na qual o Brasil é território estratégico”, afirmou ao Aos Fatos Clara Wardi, assessora técnica do CFEMEA (Centro Feminista de Estudos e Assessoria).

A estratégia também não é nova. Em 2018, reportagem da Agência Pública revelou que um padre ligado à Opus Dei administrava um site falso como armadilha para gestantes em busca de aborto para convencê-las a manter a gravidez. Aos Fatos identificou uma página falsa ligada a ele ainda ativa e com mais de 450 seguidores no Instagram.

Impedindo o aborto legal

Durante o treinamento do qual a reportagem participou, uma das voluntárias da organização compartilhou sua experiência pessoal. A mulher conta que engravidou aos 14 anos após ser estuprada pelo pai. Nesse caso, o procedimento é autorizado por lei no Brasil, assim como em casos de anencefalia do feto e risco de vida à gestante.

Ao descobrir a gravidez da vítima, o estuprador não buscou o aborto legal e tentou comprar um medicamento abortivo na farmácia. A atendente alertou para o suposto risco de vida do procedimento, e a menina, assustada, foi convencida a prosseguir com a gravidez e orientada a entregar o bebê para adoção após o nascimento, em processo que não foi assistido pela Brazil4Life. Hoje, ela atua na organização convencendo mulheres a fazer o mesmo.

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Ao longo do treinamento, outros depoimentos e argumentos contrários ao aborto, mesmo em casos de estupro, foram compartilhados pelas palestrantes. Vera Ribeiro contou, por exemplo, que a organização tentou impedir aborto de uma menina de dez anos que havia engravidado de gêmeos após ser estuprada pelo padrasto. O caso teve repercussão nacional e envolveu a mobilização de outras organizações antiaborto, mas a criança conseguiu prosseguir com o aborto legal.

Outros casos de grupos religiosos tentando impedir o acesso ao aborto legal foram registrados nos últimos anos. Em São Paulo, a Defensoria Pública denunciou uma ONG por tentar coagir uma mulher a desistir do procedimento usando dados pessoais vazados de um processo sigiloso.

“A forma como eles agem caracteriza um crime de violência psicológica e um atentado aos direitos humanos, à saúde e à privacidade”, disse a Defensoria ao jornal O Globo.

O PL998/2023, proposto pela pela deputada Sâmia Bonfim (PSOL-SP), pretende enquadrar como crime de tortura a tentativa de convencer mulheres a não prosseguir com o direito de aborto nos casos previstos em lei. O projeto foi direcionado à Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, em que aguarda a designação da relatoria.

Um núcleo em cada igreja

Mesmo sem conseguir impedir o procedimento, a Brazil4Life continuou em contato com a família da menina de dez anos estuprada pelo padrasto, direcionada para célula de uma igreja presbiteriana em sua cidade.

Esse é o modus operandi adotado pela organização também em casos em que conseguem impedir a realização do aborto. “Nós não podemos largar essa mulher [após a gravidez], não podemos simplesmente dizer ‘tchau’. Nós precisamos focar ela numa Igreja com um líder que vá dar pra ela apoio”, afirmou Ribeiro na terceira aula do treinamento.

A relação da Brazil4Life com igrejas não se restringe a esse redirecionamento de mulheres atendidas. A organização também atua dentro das instituições oferecendo treinamentos — como o que Aos Fatos acompanhou —, palestras, cursos e eventos em que defende a pauta antiaborto, além de promover a criação de “núcleos de atendimento a grávidas” dentro das igrejas.

Tal qual as páginas falsas, esses espaços funcionam como iscas para atrair mulheres com gravidez indesejada e convencê-las a não abortar. Um desses núcleos, a AMGI (Associação de Apoio a Mulheres com Gravidez Indesejada), é vinculado à Igreja Batista Lagoinha, pertencente à família Valadão.

“Elas chegam achando que é uma clínica de aborto”, admite uma voluntária do núcleo em entrevista ao canal da Lagoinha no YouTube em 2019.

A igreja também contribuiu para a divulgação do trabalho da Brazil4Life entre evangélicos. Em 2016, anúncios sobre a atuação da organização e do núcleo AMGI foram veiculados na Rede Super de televisão e em revistas vinculadas à Lagoinha.

Além da Lagoinha, a Brazil4Life já promoveu eventos na Igreja Batista Getsemani e na Igreja Batista Mineirão, em Belo Horizonte; na Igreja Nasci Para Deus e na Assembleia de Deus, na região metropolitana de São Paulo; além da Igreja Batista Shalom e a Família 61, no Recife, entre outras.

Como a AMGI, a organização diz ter 45 núcleos espalhados em 14 estados e no Distrito Federal. Esses núcleos, por sua vez, também administram páginas e perfis em redes sociais que se passam por empresas que atendem mulheres grávidas.

“Quando eu questiono elas no WhatsApp eu coloco ’oi’, ’bom dia’, ou ’boa tarde’ e elas perguntam quem é, e eu digo ’você entrou em contato conosco, com a nossa empresa. Somos a empresa Mulheres com gravidez indesejada’”, relatou a diretora de núcleo no Rio de Janeiro, Iraci Bittencourt, durante o treinamento acompanhado pelo Aos Fatos.

Contra as regras

A criação de páginas e perfis que ocultam seu verdadeiro intuito viola ao menos três das Diretrizes de Comunidade da Meta.

  • Em sua política de fraude e dolo, a empresa proíbe a publicação de “golpes de identidade falsa”, entre eles “golpes de instituição beneficente falsa” e “estabelecimento de empresas ou entidades falsas”;
  • Na política de integridade da conta e autenticidade de identidade, a Meta afirma que desativará ou aplicará punições se uma página ou perfil “criar ou usar uma conta que deliberadamente representa, de forma falsa, sua identidade para enganar ou iludir outras pessoas”;
  • E a política de comportamento inautêntico proíbe “ocultar a finalidade de uma página enganando os usuários sobre a propriedade ou controle dela”.
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Outro lado

Aos Fatos enviou à Meta os links para os perfis e páginas falsas no Facebook e Instagram, mas a empresa afirmou que "não vai comentar o assunto". Até a publicação desta reportagem as contas continuavam no ar.

A reportagem também questionou a Brazil4Life sobre a administração das contas por e-mail, enviado no dia 21 de novembro, e novamente por Whatsapp, dois dias depois, mas não obteve resposta. Até o dia 24 de novembro, Aos Fatos também tentou diversas vezes contato por telefone com a organização. Em uma dessas tentativas, uma pessoa que não quis se identificar atendeu a reportagem, mas alegou que não poderia confirmar o recebimento das mensagens, respondê-las ou indicar alguém para isso.

Referências:

1. Folha de S. Paulo
2. Planalto
3. STF
4. OMS
5. American Cancer Society
6. The New Yorker
7. Agência Pública
8. G1
9. O Globo
10. Câmara dos Deputados
11.
Meta (1, 2, 3)


Esta reportagem integra a série Ofensiva contra o aborto legal: das redes ao Legislativo. Participaram do projeto Ethel Rudnitzki e Bianca Bortolon (reportagem), Méuri Elle (ilustração), Luiz Fernando Menezes (ilustração), Leonardo Cazes (chefia de reportagem), Alexandre Aragão, Amanda Ribeiro, Bernardo Moura e Fernanda da Escóssia (edição).

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