Não é verdade que um estudo comprovou que mosquitos geneticamente modificados soltos em um experimento de combate à dengue na Bahia são mais resistentes e estariam por trás da alta no número de casos da doença no país. As publicações nas redes que fazem essa alegação se baseiam em um estudo que foi refutado pela comunidade científica. Pesquisadores apontam como motivos para o surto atual o excesso de chuvas, as altas temperaturas e a circulação de uma variante para a qual a população não tem anticorpos.
As peças desinformativas acumulavam milhares de curtidas no Instagram e centenas de compartilhamentos no Facebook até a tarde desta terça-feira (20).
Empresa britânica cria mosquitos da dengue geneticamente modificados, solta na Bahia, e como resultado temos mosquitos ainda mais resistentes e uma epidemia de dengue! Mas quem poderia imaginar né?
Publicações enganam ao insinuar que mosquitos geneticamente modificados soltos no município de Jacobina (BA) entre 2013 e 2015 em um experimento de combate à dengue teriam relação com o atual surto da doença no Brasil.
As peças compartilham uma reportagem de 2019 da BandNews que afirma, com base em um estudo publicado naquele ano na revista Nature, que insetos criados em laboratório pela multinacional britânica Oxitec — que pertencem à linhagem OX5034, conhecida como “Aedes do Bem” — poderiam ser mais resistentes a inseticidas do que mosquitos comuns. Faltam, porém, evidências científicas que sustentem a alegação.
A técnica de combate à dengue usando insetos geneticamente modificados consiste em introduzir em um local machos do mosquito Aedes aegypti com uma alteração que torna seus descendentes mais frágeis. Como são as fêmeas as responsáveis por transmitir a dengue, a introdução dos machos não aumenta a incidência da doença e promete reduzi-la com o passar do tempo, já que a maior parte das larvas resultantes do cruzamento são incapazes de chegar à idade adulta.
Em setembro de 2019, porém, um estudo publicado pela Nature sugeriu que a mutação genética dos mosquitos criados em laboratório era transmitida para novas gerações e que haveria um risco de os descendentes híbridos serem mais resistentes do que os insetos selvagens.
Alguns dos próprios pesquisadores que assinaram o artigo, porém, não concordaram com a conclusão. Eles alegaram que o texto interpretava de forma errônea os dados coletados na pesquisa e disseram não ter tido acesso à redação final antes da publicação. Após as críticas, a própria Nature publicou em editorial em março de 2020 expressando preocupações com as fragilidades do artigo.
“A única coisa que aquele artigo mostrava é que todas as linhagens do mosquito transmitiam a dengue da mesma maneira”, afirma Margareth Capurro, pesquisadora do ICB-USP (Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo) e uma das autoras da pesquisa. Segundo ela, a propagação da dengue diminuiria justamente pela transmissão da alteração genética para os descendentes dos mosquitos. “O híbrido morre e não chega à vida adulta. Mas, mesmo se algum híbrido sobreviver, ele não vai transmitir a doença mais que os outros”.
Após os testes, em 2020, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança aprovou parecer para a liberação comercial do mosquito geneticamente modificado da Oxitec, que também possui autorização para uso experimental nos Estados Unidos.
A importância dos testes com mosquitos transgênicos para combater doenças como a dengue e a malária é reconhecida pela OMS (Organização Mundial da Saúde), que vê na genética uma possível saída para contornar a resistência dos mosquitos criada pelo uso contínuo de inseticidas.
A alta nos casos de dengue, portanto, não tem nenhuma relação com o mosquito desenvolvido pela empresa britânica. De acordo com a pesquisadora do ICB-USP, há três fatores principais por trás do atual surto da doença no país:
- O excesso de chuvas e as altas temperaturas neste verão;
- O aumento nos criadouros de mosquitos durante a pandemia, que limitou a ação dos agentes de saúde que combatem os focos da doença;
- A propagação de uma variante da dengue para a qual a maior parte da população brasileira não tinha anticorpos.
Publicações desinformativas similares também foram desmentidas pelo projeto Comprova.