Criminosos que lucram com a venda de imagens de abuso sexual infantil no Telegram usam contas bancárias de laranjas para garantir o anonimato na plataforma e escapar do escrutínio das autoridades. O Aos Fatos verificou que as chaves Pix usadas para a venda do conteúdo ilegal são registradas em nomes de terceiros, que ou emprestaram seus nomes em troca de uma participação nos lucros ou podem ter sido vítimas de golpes bancários.
- Como mostrado em reportagem anterior, os criminosos oferecem fotos e vídeos de abuso infantil em grupos no Telegram que somam 2 milhões de membros;
- O pagamento pelos serviços é intermediado por robôs e feito via Pix, com chaves cadastradas em nome de pessoas físicas e jurídicas preferencialmente em bancos digitais, como Mercado Pago e Nubank;
- Os responsáveis pelas chaves, no entanto, não são os criminosos que vendem as imagens ilegais, e sim terceiros. Procurado pelo Aos Fatos, um deles disse ter emprestado seus dados em troca de dinheiro; já outros negaram ter conhecimento do caso ou não responderam;
- Em consulta à situação cadastral na Receita Federal, a reportagem verificou que ao menos cinco proprietários das contas bancárias forneceram endereços falsos e ao menos a metade informou emails inexistentes;
- De acordo com a advogada criminalista Thaís Molina Pinheiro, quem empresta a conta bancária tendo conhecimento de que será usada para venda de conteúdo ilícito pode ser considerado coautor do crime.
Um dos responsáveis pelas contas laranjas é Antonio Weslley Sobrinho Barros, que desenvolve robôs para intermediar o pagamento de serviços no Telegram. Ele confirmou à reportagem que empresta os próprios dados bancários para o recebimento de valores mediante o pagamento de uma taxa de 8%, mais R$ 1 por transação.
Apesar de admitir que cerca de 70% de seus 110 robôs atuam na venda de material pornográfico, Barros nega envolvimento com a negociação de imagens de abuso sexual infantil. Ele também disse que, por falta de informações cadastrais, não é capaz de identificar os criminosos que usam dois de seus robôs para lucrar com o conteúdo ilegal no Telegram.
Após a publicação da reportagem, Barros enviou e-mail ao Aos Fatos reiterando que não tem envolvimento com a negociação de imagens de abuso sexual infantil. “Quando procurado pelo jornalista eu dei as informações de forma correta e clara, falando que não toleramos qualquer tipo de pornografia infantil ou abuso infantil ou de outros crimes. (...) O repórter me perguntou se um vip em questão se utilizou da plataforma e falei que tal bot não estava vinculado e que a conta em questão que ele mencionava tinha sido excluída! (...) Forneci inclusive dados e informei que iríamos adotar novos procedimentos de segurança."
A advogada criminalista Thaís Molina Pinheiro afirmou ao Aos Fatos que, caso seja provado que o responsável pela conta tinha conhecimento de que seus dados estavam sendo usados para a venda de material ilegal, é possível que ele seja considerado coautor do crime. A venda de imagens de abuso de crianças e adolescentes é punível com três a seis anos de prisão.
Ainda segundo a advogada, caso o juiz entenda que a conta foi usada para ocultar o real beneficiário da venda ilícita, é possível que o responsável pelos dados bancários seja punido também pelo crime de lavagem de dinheiro, cuja pena é de três a dez anos de reclusão.
O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) diz que é crime “produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente”. A pena, de quatro a oito anos de prisão e multa, também é aplicada a quem vende o conteúdo. Para quem compra ou armazena as imagens, a pena vai de um a quatro anos de prisão e multa.
É possível denunciar conteúdo sobre abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes de forma anônima no Disque 100 ou na Central Nacional de Denúncias da ONG Safernet Brasil.
O ‘CACIQUE’ DO ABUSO INFANTIL
Há indícios, no entanto, de que alguns proprietários de contas bancárias não têm conhecimento de que estão tendo os dados usados para a venda de conteúdo ilegal. Exemplo disso é a chave Pix fornecida em grupos no Telegram por um criminoso conhecido como Rei Índio. A conta bancária vinculada à chave pertence a uma idosa de 72 anos que mora em Minas Gerais.
Rei Índio, também chamado de Chefe Cacique, era o proprietário de um grupo com mais de 5.000 participantes que promovia a divulgação e a venda de vídeos de abuso infantil. Deletado no fim de fevereiro, o grupo foi posteriormente recriado pelo usuário, e em duas semanas já acumula 1.700 membros. Ali, são oferecidos pacotes de conteúdo ilegal a partir de R$ 14,90, pagos sempre via Pix.
base de dados do Banco Central. Ali estão listadas informações sobre todas as contas, chaves Pix e empréstimos registrados em nome de uma pessoa.
CONTATOS INTERROMPIDOS
Os proprietários de outras duas chaves Pix deixaram de responder ou bloquearam a comunicação com o Aos Fatos após serem informados que seus dados estavam sendo usados para a venda de material sobre abuso infantil.
Um deles é Thiago Alexandre Schutze, microempreendedor com sede em Ubatuba (SP) que tem como atividade comercial registrada a edição de livros. Ao ser questionado sobre uma chave Pix associada a uma conta no Mercado Pago que vinha sendo usada para comercializar material sobre abuso infantil, Schutze negou ter conhecimento sobre o caso e disse que nem mesmo possuía conta no banco digital.
Três dias depois do contato inicial da reportagem, o microempreendedor disse que havia entrado em contato com o Mercado Pago e solicitado que a conta fosse deletada.
A mesma chave, porém, segue ativa e passou a ser atrelada a Yuri Medeiros Oliveira, sediado em Bertioga (SP). Aos Fatos tentou contato com Oliveira pelo telefone e pelo endereço de email fornecidos à Receita Federal, mas não houve resposta. Questionado sobre uma possível relação com Oliveira, Schutze também não retornou o contato.
Outra chave Pix identificada como meio de pagamento para acesso a material criminoso no Telegram está atrelada ao CPF de
******* ******** ** ***** ********, microempreendedora de Imbituva (PR).
Informada sobre o caso, ******** disse que iria verificar o que estava acontecendo. Minutos depois, no entanto, ela bloqueou a reportagem no WhatsApp e parou de atender ligações telefônicas.
Após a publicação da reportagem, a microempreendedora enviou email ao Aos Fatos afirmando: "Usaram meu nome em uma reportagem me acusando de vender conteúdo de crianças, eu não fiz e não compactuo com esse tipo de coisa, meus grupos são de conteúdo +18, minhas verificadas são tudo maior de idade eu não aceito qualquer tipo de conteúdo ilegal nos grupos.”
DENÚNCIA
Em nota, o MPF (Ministério Público Federal) informou ao Aos Fatos que tem um procedimento em aberto que apura as deficiências do Telegram no combate à desinformação. A investigação, no entanto, não aborda questões relacionadas à exploração sexual de crianças e adolescentes na plataforma.
“Não está descartada a possibilidade de abrir uma nova frente de investigação, o que poderia envolver dois planos: uma investigação cível em face da plataforma, por deficiências de moderação de conteúdo, que é de responsabilidade do Telegram; e uma investigação criminal contra quem produz e compartilha esses conteúdos”, afirmou o MPF.
Procurada, a PF não respondeu até a publicação desta reportagem.
Outro lado. Aos Fatos questionou o Telegram sobre sobre a venda de conteúdo ilegal em grupos e o uso de laranjas, mas não obteve resposta. A plataforma não respondeu o contato, mas tirou do ar o perfil de Rei Índio e todos os grupos administrados por ele.
Esta reportagem foi atualizada para incluir as manifestações de Antonio Barros e ******* ******** ** ***** ********.
*Esta reportagem foi novamente atualizada para remover o nome de um dos personagens citados, em cumprimento à decisão da 3ª Vara do Juizado Especial Cível, Criminal e da Fazenda Pública de Ponta Grossa, Paraná.