🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Novembro de 2023. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Como transformar a internet das plataformas em uma internet para as pessoas

Por Leonardo Cazes

8 de novembro de 2023, 18h40

Desbloquear a tela do celular é como abrir a porta de um quarto onde há várias outras portas. É possível abrir uma nova porta, ver o que há ali e retornar para o primeiro quarto. Há quartos que se conectam, outros não. A única regra é que o acesso é sempre feito por aquele primeiro quarto.

Esse primeiro quarto é o sistema operacional que roda no seu celular, seja Android (do Google) ou iOS (da Apple) — 99% de todos os aparelhos do mundo usam algum dos dois sistemas. Assim, Google e Apple conseguem filtrar, de partida, quase todos os aplicativos que você conseguirá acessar do seu dispositivo.

Talvez você nunca tenha pensado nisso porque, afinal, sempre encontrou tudo que queria na Play Store ou na App Store. Sim, as duas empresas podem simplesmente fazer desaparecer um aplicativo e você não poderá fazer nada sobre isso.

Poder semelhante tem a Meta, dona do Facebook e do Instagram, que desde junho deste ano impede o compartilhamento de links para notícias publicadas por veículos canadenses. A razão? Não concorda com uma lei aprovada no país que prevê a remuneração dos produtores de conteúdo. A empresa tem a chave de uma porta que, como se vê, é capaz de controlar muitas outras.

Os "jardins murados" descritos por Chris Anderson há mais de 10 anos na reportagem de capa da revista Wired (Plataforma #15) parecem bem mais perigosos hoje do que no passado.

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Vivemos em e através de uma internet das plataformas, onde grandes empresas de tecnologia decidem o campo de jogo e as regras que, claro, podem mudar conforme a conveniência dos acionistas. As pessoas, transformadas em usuários, que se adequem às demandas do negócio.

Mas nem sempre foi assim. A internet já foi um condomínio de muitas portas cujo princípio de organização era de que jamais haveria um quarto sem portas ou apenas uma porta que abrisse o caminho para todos os outros quartos. Neste condomínio não havia entrada nem saída, pois era possível entrar e sair de tantos lugares quantas redes estivessem conectadas.

O próprio nome, internet, vem de internetworking, o termo usado por cientistas da computação envolvidos na sua gênese na década de 1970. Eles se referiam ao trabalho de fazer redes interligadas trabalharem juntas. Dito de forma mais simples, eles queriam tornar possível que mensagens enviadas de um computador dentro de uma van em movimento numa rodovia na Califórnia chegassem aos destinatários em vários cantos do planeta — em 2 segundos.

Bem, eles conseguiram isso em 1977 e o cara que enviou as mensagens de dentro da van era ninguém menos que Vint Cerf, o sujeito que, junto com Robert Kahn, criou a "língua comum" da internet ou a matriz das chaves de todas as portas: os protocolos TCP/IP.

Capa do livro Internet for the People, do autor americano Ben Tarnoff
Portas fechadas. Em livro, escritor americano Ben Tarnoff discute como internet deixou de ser território livre (Divulgação)

Essa história, e muitas outras, estão no livro "Internet for the people: The fight for our digital future" ("Internet para as pessoas: a batalha pelo nosso futuro digital", em tradução livre), do escritor americano Ben Tarnoff. O autor parte da história da internet para compreender como saímos de um território aberto e livre, onde qualquer um poderia se conectar, conhecer e inventar qualquer coisa, para o atual universo cheio de cancelas e check-points de segurança.

Tarnoff lembra que toda a infraestrutura da internet foi criada com um pesado investimento público ao longo de mais de duas décadas. Estima-se que só nos Estados Unidos foram gastos mais de US$ 2 bilhões até o início dos anos 1990 para aquela internet existir. Dos cientistas aos militares, muita gente trabalhou junto por muito tempo e com muita grana para viabilizar a ideia que transformou nossas vidas.


Então, o que deu errado? O pecado original, para o autor, é a privatização da infraestrutura que sustentava essa internet dos primórdios. Em 1995, nos Estados Unidos, foi desligada a espinha dorsal pública que tinha permitido o desenvolvimento da rede até ali. As infraestruturas privadas eram até então complementares e vinham sendo implementadas desde o início da década de 1990.

Ok, o próprio sucesso da internet exigia novos investimentos gigantescos, porque o volume do tráfego de dados crescia de modo exponencial. Contudo, ao abrir mão do controle público em prol de um oligopólio privado — segundo Tarnoff, 5 empresas controlavam toda a infraestrutura da rede em 1995 nos EUA, contra 12 atualmente — o eixo das preocupações se deslocou de como conectar mais pessoas para como é possível ganhar o maior volume de dinheiro possível.

Este ciclo de abertura, democratização e liberdade seguido pela formação de grandes monopólios ou oligopólios também foi observado por Tim Wu, professor de Direito na Universidade Columbia, em seu livro "Impérios da Comunicação" (Zahar, 2012).

Um dos argumentos de Wu no livro é que a infraestrutura de telecomunicações demanda um tal nível de recursos para avançar que tende sempre ao monopólio. E simplesmente quebrar esses monopólios, mostra ele no livro, não leva necessariamente a uma melhora dos serviços para os usuários, pelo contrário.

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A saída para esse impasse, na visão de Tarnoff, é retornar a algo mais próximo de uma internet dos primórdios, descentralizada e sustentada por redes comunitárias. O autor aponta que, só nos Estados Unidos, já existem 900 redes de banda larga mantidas por municípios ou cooperativas.

Entre suas vantagens estão a maior qualidade, já que conseguem reinvestir seus lucros na própria rede e não distribuí-los aos acionistas, assim como aproximar os cidadãos da gestão de uma infraestrutura crucial para suas vidas. Uma internet aberta e democrática desde as suas bases.


Não há panaceia para resolver essa questão e, no caso brasileiro, é possível imaginar problemas que vão desde a falta de dinheiro até a participação de grupos criminosos na exploração desse tipo de serviço em cidades como o Rio de Janeiro.

Contudo, parece que estamos como um dos generais de Saladino levado preso para o castelo de Trípoli. Ao fundo de sua cela, havia duas portas, guardadas cada uma por um soldado. O prisioneiro podia fazer uma pergunta que seria respondida pelos dois e, assim, escolher a porta por onde sair. Uma levava à liberdade. Outra, à sala do carrasco.

Um dos soldados só falava a verdade, o outro sempre mentia. O general fez a pergunta, os dois apontaram a mesma porta. Ele saiu pela outra, livre.

Caberá a nós, tal qual o general, decifrar a nossa versão do enigma e escolher a porta que nos levará a liberdade. Ou não.

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