Roque de Sá/Agência Senado

🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Setembro de 2019. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Com imprecisões e erros, projetos de lei buscam criminalizar desinformação

Por Amanda Ribeiro

18 de setembro de 2019, 16h41

A discussão sobre como frear a difusão de desinformação ocorre globalmente e mobiliza governos a pensar em soluções legais para conter o fenômeno, que ganha cada vez mais espaço com as redes sociais. No Brasil, a lei 13.834/2019, aprovada em junho, alterou o Código Eleitoral para tipificar como crime a calúnia com finalidade eleitoral. No entanto, o debate está longe de ser encerrado no Congresso, onde pelo menos 28 projetos tramitam com possíveis soluções para o combate à desinformação.

Os congressistas que propõem as medidas entendem que os crimes contra a honra (injúria, calúnia e difamação), previstos no Código Penal, não são suficientes para resolver o problema da desinformação no âmbito da internet, especialmente das redes sociais. O fato é que a Justiça passou a lidar com uma nova gama de ações decorrentes do comportamento dos usuários nas redes. Desde 2002, por exemplo, foram registradas 4.873 ações para retirada de conteúdo do ar, 2.944 delas ajuizadas por políticos.

Para entender que tipo de solução os deputados e senadores estão articulando, Aos Fatos analisou os projetos que tramitam nas duas Casas. O que se observa é que, em geral, eles adotam um caminho punitivisita, com a proposição de penas que vão de multa a oito anos de prisão. No entanto, os projetos não trazem definições claras sobre o que entendem, por exemplo, por notícias falsas e usam até informações falsas em suas justificativas. Segundo especialistas ouvidos por Aos Fatos, as medidas não oferecem soluções efetivas para o controle da desinformação.

Legislação atual. Em junho o Congresso aprovou a lei 13.834/2010, que prevê pena de prisão a quem divulgar conteúdos enganosos durante a época do pleito. Ela incluiu no Código Eleitoral o crime de denunciação caluniosa com finalidade eleitoral e, assim, passou a ser considerado delito “dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, de investigação administrativa, de inquérito civil ou ação de improbidade administrativa, atribuindo a alguém a prática de crime ou ato infracional de que o sabe inocente, com finalidade eleitoral”. Também podem ser responsabilizados os que compartilharem informações caluniosas sabendo da inocência do acusado.

As penas previstas na lei são de dois a oito anos de prisão, aumentadas em um sexto caso o autor da ofensa utilize pseudônimo ou se sirva do anonimato. O presidente Jair Bolsonaro chegou vetar esse trecho que estabelece a pena de prisão. No entanto, o veto foi derrubado por 326 deputados e 48 senadores e a pena permaneceu na nova lei.

De acordo com o advogado e pesquisador do Internet Lab Francisco Cruz, o grande problema do projeto aprovado em junho e de outros que tramitam no Congresso são as possíveis ameaças à liberdade de expressão. “O problema é se acabarmos censurando pessoas que têm discursos legítimos. Se for para tipificar, é muito melhor punir quem contrata pessoas especificamente para disseminar desinformação”, diz.

Até a aprovação da nova lei, a divulgação de desinformação no âmbito eleitoral era julgada de acordo com o entendimento da resolução 23.351, que regula a propaganda eleitoral. De acordo com o texto, “A livre manifestação do pensamento do eleitor identificado ou identificável na internet somente é passível de limitação quando ocorrer ofensa à honra de terceiros ou divulgação de fatos sabidamente inverídicos”. O descumprimento da norma pode fazer com que a plataforma seja obrigada a remover o conteúdo postado, mediante ordem judicial.

Fora das eleições, a maior parte dos casos, como já apresentado por Aos Fatos em outra reportagem, é encaixada no trecho do Código Penal que lida com os crimes contra a honra (injúria, calúnia e difamação). Caluniar, por exemplo, que é atribuir falsamente a alguém um fato definido como crime, pode levar a uma pena uma pena de detenção de seis meses a dois anos, segundo o artigo 138 do Código Penal.

Mas os congressistas querem ir além nessa punição, ainda que não tenham claro que tipo exatamente de comportamento deve ser punido. Apesar de as terminologias fake news e notícias falsas não serem as mais apropriadas para abordar todo o processo de desinformação que circula nas redes sociais, ainda são os termos mais citados pelos parlamentares nas definições e justificativas de seus projetos.

Foi fake news também o termo escolhido pelo Congresso para denominar a CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) que apura questões como perfis falsos e ataques cibernéticos nas redes sociais e seus impactos no processo eleitoral e no debate público. Um dos objetivos da comissão é investigar o impulsionamento de desinformação nas eleições de 2018. As discussões no colegiado, no entanto, ainda estão incipientes.

Por conta do uso ainda propagado pelos congressistas dos termos fake news e notícias falsas para se referirem a desinformação, Aos Fatos fez uma busca por estas terminologias nos sites da Câmara e do Senado e encontrou 28 projetos (dois no Senado e 26 na Câmara). Apesar da multiplicidade de proposições, suas definições e objetivos são similares: 11 propõem alterações ao Código Penal, seis ao Código Eleitoral, e os demais alteram o Marco Civil da Internet ou outras leis, como a de Segurança Nacional.

Vinte e quatro das 28 proposições foram protocoladas entre 2018 e 2019. A maioria acabou sendo apensada — pela semelhança nos assuntos tratados —, no entanto, a outros projetos mais antigos. A proposta que recebeu o maior número de apensados foi o PL 6812/2017, do deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB/PR), que tipifica criminalmente a divulgação de informações falsas e incompletas por meio da internet.

Código Penal. Dentre os projetos encontrados, 11 propõem a inclusão no Código Penal de artigos que estabeleçam uma tipificação criminal para a publicação e a distribuição de conteúdo falso nas redes sociais. As penas, que variam de multa a oito anos de reclusão, são, em sua maioria, mais brandas do que as já estabelecidas para a divulgação de desinformação durante o período eleitoral.

O projeto do deputado Luiz Carlos Hauly, atualmente à espera de um parecer do relator da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara, tem como objetivo punir os responsáveis pela divulgação de “informação falsa ou prejudicialmente incompleta”. As sanções podem ir de dois a oito meses de detenção, além de pagamento de 1.500 a 6.000 dias-multa.

Mas a proposição que institui penas mais duras é a que foi apresentada pelo deputado federal Fábio Trad (PSD/MS). De acordo com o texto, passa a ser crime “criar, divulgar ou compartilhar, por qualquer meio de comunicação social, a terceiros, informação ou notícia falsa que possa modificar ou desvirtuar a verdade sobre pessoa física e ou jurídica, que afetem interesse público relevante”. A punição inicial, de um a quatro anos de prisão, é dobrada caso o crime seja praticado por meio da internet.

Apesar de a maior parte dos projetos prever a responsabilização de quem publicou, ou, eventualmente, compartilhou um conteúdo falso, em alguns casos as plataformas ou mesmo os provedores de conexão podem ser punidos. O deputado federal Heuler Cruvinel (PSD/GO) propõe, por exemplo, que os provedores sejam responsabilizados civil ou criminalmente por conteúdos falsos divulgados por terceiros.

Código Eleitoral. Seis dos projetos em tramitação no Congresso sobre notícias falsas enfocam a desinformação que pode ser potencialmente lesiva ao processo eleitoral e sugerem alterações no Código Eleitoral para tentar coibir essa prática. Nenhum deles, no entanto, prevê penas mais duras do que as aprovadas pela lei 13.834/2019 (dois a oito anos de prisão, que podem aumentar em caso de anonimato do agente).

Todos esses projetos de lei foram apensados a uma proposição do deputado Francisco Floriano (DEM/RJ), que especifica dois novos tipos de delitos eleitorais. O primeiro pune quem divulgar, em propaganda eleitoral, fatos sabidamente inverídicos. Nesse caso, as penas são de dois a seis anos de reclusão, além de multa. O segundo penaliza os que participarem das tarefas de produção e divulgação dos conteúdos enganosos. Para estes, as punições são mais duras: quatro a oito anos de reclusão, e multa.

Alguns textos estabelecem punição também para quem compartilha desinformação relativa a campanhas eleitorais. O PL 10915/2018, do deputado Reginaldo Lopes (PT/MG), por exemplo, prevê prestação de serviços comunitários e multa de até dois salários mínimos nesses casos. No entanto, segundo o texto, só será responsabilizado o usuário que repassar postagens que sabia serem inverídicas.

Com a aprovação da lei 13.834/2019, a tendência é que a tramitação dos PLs na Câmara ocorra de maneira bastante lenta. Para que valham para as próximas eleições municipais, em 2020, os projetos precisam ser aprovados até um ano antes do dia do pleito, ou seja, até 2 de outubro.

Problemas dos PLs e da tipificação. Advogados e especialistas em liberdade de expressão na internet consultados por Aos Fatos apontaram uma série de problemas nos projetos de lei que tramitam no Congresso. O principal deles é a abordagem punitivista das propostas: 24 dos 28 projetos instituem penas para quem publica, compartilha ou hospeda notícias falsas, como multas, prisão ou retirada de conteúdo do ar.

De acordo com Francisco Cruz, advogado e pesquisador do Internet Lab, a discussão brasileira sobre liberdade de expressão ainda é muito incipiente para que adotemos medidas de penalização. “Não acho que seja necessário [uma tipificação penal]. Tenho preferido pensar que a melhor abordagem é tentar modular o comportamento online, de maneira a preservar a liberdade de expressão”, afirma.

Para ele, o governo deveria enfocar o trabalho de sites e perfis que apresentam “comportamento inautêntico”. Um exemplo são páginas que, apesar de aparentarem ter origens diferentes, são comandadas por um mesmo usuário, com o propósito de potencializar determinadas discussões nas redes.

Cruz chama a atenção, ainda, para os projetos que propõem alterações no Marco Civil da Internet e eliminam a necessidade de autorização judicial para remoção de conteúdo. “Isso faz com que as plataformas virem polícias de conteúdo. Imagina um projeto desses em um país em que todo mundo quer tirar tudo do ar?”, diz.

A conselheira da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil) e vice-presidente da Comissão de Direito Penal do órgão, Maitê Cazeto Lopes, também acredita que a tipificação penal não seja a melhor forma de combater a desinformação. “Pode ser uma das medidas, mas não a melhor ou mais efetiva. Atribuir sempre ao direito penal, à criminalização ou ao recrudescimento de pena a única solução para todos os problemas que surgem na sociedade já se demonstrou uma falácia”, diz.

De acordo com ela, “há ainda medidas cíveis mais rápidas e eficientes para se impedir a propagação e também objetivar a indenização pelos danos causados”. Ainda assim, Lopes considera que seria mais eficiente educar e conscientizar a população para que se crie o hábito de checar e averiguar a procedência de uma postagem antes de disseminá-la.

Em parecer publicado em 2018, o CCS (Conselho de Comunicação Social) – órgão do Congresso que faz estudos e recomendações sobre temas de comunicação social – também concluiu que a criminalização da difusão de desinformação não é a melhor solução a ser adotada. “A resposta para o problema, no entanto, não passa pela tipificação de novos crimes, notadamente o da divulgação de notícias fraudulentas, mas sim por um conjunto de medidas para garantir mais informação e educação midiática ao conjunto da sociedade.”

Priscilla Silva, especialista em direito constitucional e pesquisadora do ITS Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro) também defende que não existe lacuna penal no que se refere à publicação de desinformação nas redes. “Temos leis protetivas, na esfera penal, dos direitos da personalidade, através da criminalização da injúria, difamação e calúnia, assim como na esfera civil, através da indenização por violação à honra e à imagem. A lei ainda oferece mecanismos para direitos de resposta.”

Para ela, o compartilhamento de desinformação não deve ser tipificado como crime, porque, nesse caso, arrisca-se culpabilizar uma pessoa que, eventualmente, foi levada a erro, acreditou na notícia e a compartilhou. "Seria muito difícil caracterizar a questão da intenção nesses casos”, afirma.

A solução, segundo Silva, deve partir de um esforço conjunto da sociedade da mídia e da tecnologia no combate à desinformação. "Acredito que estamos no caminho certo, criando mecanismos de fact-checking, educando as pessoas, trabalhando um jornalismo cada vez mais pautado na ética.”

Outro problema dos projetos são as imprecisões e erros usados nos textos de justificativa. O PL 9554/2018, do deputado Pompeo de Mattos (PDT/RS), por exemplo, apresenta uma interpretação equivocada de uma reportagem do Buzzfeed News sobre as eleições presidenciais americanas. De acordo com a justificativa do parlamentar, “Nas eleições presidenciais nos Estados Unidos, por exemplo, as interações de usuários de redes sociais foram maiores com conteúdos considerados falsos do que com notícias de veículos tradicionais, segundo levantamento do site BuzzFeed”.

A matéria do Buzzfeed, na verdade, destaca que os 20 textos falsos com maior alcance tiveram mais engajamento do que as 20 matérias mais lidas que foram publicadas por veículos de mídia mais tradicionais. A argumentação do deputado, portanto, distorce as informações da matéria.

Exemplos internacionais. O esforço para encontrar uma forma de coibir a disseminação de desinformação tem sido global. O Poynter, instituto americano de pesquisa e capacitação de jornalistas, detalha as iniciativas adotadas por órgãos governamentais de 52 países para combater a produção e o compartilhamento desses tipos de conteúdo.

De acordo com a pesquisa, apenas sete países do mundo têm atualmente leis em vigor que combatam a desinformação. No Quênia, esse tipo de conteúdo é citado em uma lei de 2018 que tipifica 17 crimes virtuais. De acordo com ela, pessoas que publicam informações falsas com a intenção de enganar outras podem ser multadas em até US$ 50 mil e passar dois anos na prisão.

Apesar de supostamente representar avanços no sentido de coibir conteúdos enganosos, as legislações aprovadas podem ser usadas como instrumentos de censura estatal. A Bielorússia, o Camboja e o Egito, por exemplo, possuem normas que permitem ameaçam a liberdade da imprensa e que permitem um controle rígido do Estado que acaba criando um ambiente propício a perseguições.

Mesmo leis que não têm o propósito de censurar ou colocar em xeque o trabalho de organizações jornalísticas têm tido problemas na aplicação de medidas como a retirada de postagens do ar. Na França, a legislação permite que autoridades removam conteúdos falsos que tenham se espalhado nas redes ou mesmo derrubem os sites responsáveis por publicá-las. A medida também obriga que conteúdos patrocinados tenham transparência financeira. Por conta desse último ponto, uma campanha do próprio governo foi tirada do ar em abril de 2019.

Na Alemanha, uma lei que entrou em vigor em 2018 obriga plataformas a tirarem do ar conteúdos “obviamente ilegais” em até 24 horas, sob pena de multas de até €50 milhões. A aplicação dessas medidas, no entanto, vem sendo contestada: uma revista satírica foi banida do Twitter depois de publicar uma postagem com ofensas, e o próprio ministro da Justiça teve seus tweets censurados.

Nem todas medidas adotadas por governos internacionais, no entanto, enfocam a penalização dos responsáveis por publicar peças de desinformação e dão margem para ações autoritárias. Um exemplo é a Nigéria, que adotou a estratégia de oferecer educação midiática aos seus cidadãos. O governo lançou uma campanha que ensina a população a identificar conteúdos enganosos. Membros do Exército também passaram a desmentir boatos em rádios e criaram linhas diretas para que o público possa denunciar esse tipo de conteúdo.

A Bélgica também adotou estratégia semelhante. Em maio de 2018, foi criada uma comissão formada por jornalistas e estudiosos, encarregada de buscar possíveis soluções para o problema da desinformação. Também foi lançado um site, que traz dados sobre desinformação e apresenta enquetes em que o público decide quais as melhores medidas para combater a questão.

Referências:

1. Planalto (Fontes 1, 2, 3 e 4)
2. Abraji
3. Tribunal Superior Eleitoral
4. Agência Brasil
5. Aos Fatos
6. Senado (Fontes 1 e 2)
7. Câmara (Fontes 1, 2, 3, 4, 5 e 6)
8. G1
9. Poynter (Fontes 1 e 2)
10. Buzzfeed
11. Tut By
12. The Guardian
13. The Wall Street Journal
14. Independent
15. Reuters
16. The Local
17. Premium Times
17. BBC
19. Stop Fake News


Esta reportagem foi publicada de acordo com a metodologia anterior do Aos Fatos.

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