As nuvens que você não vê, mas guardam todos os seus dados

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A Plataforma de hoje joga luz sobre os serviços de armazenamento de dados na nuvem, concentrados por poucas empresas muito poderosas, e os riscos envolvidos no contexto de desenvolvimento da inteligência artificial.


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⛅ As nuvens que ninguém vê

A computação em nuvem representou uma das mudanças mais significativas em nossa experiência com a tecnologia. Até então, o espaço livre no HD era uma preocupação permanente de quem tinha um computador. Transferir arquivos de uma máquina para outra? Só com um pendrive. Fazer backup? Era preciso um HD externo (caríssimo, por sinal).

Eis que de repente, não mais que de repente, serviços gratuitos passaram a oferecer um generoso HD virtual em que era possível armazenar fotos sem se preocupar com o espaço disponível, pessoas em diferentes lugares do mundo poderiam trabalhar no mesmo documento ao mesmo tempo, e nos acostumamos a simplesmente não pensar onde nossas memórias de família ou apresentações profissionais estão guardadas.


Os HDs virtuais que podemos acessar a qualquer hora de qualquer lugar são enormes armazéns onde ficam guardados uma das matérias-primas mais valiosas da economia mundial no século XXI: dados. Os data centers se tornaram, pois, a infraestrutura básica da internet contemporânea.

No final dos anos 2000, eles ofereciam uma combinação irresistível para os negócios, como redução nos custos de armazenamento, de compra de hardware, de licenças de software e de folha de pagamento — não era mais preciso manter uma equipe superqualificada de plantão para garantir que os servidores não iam dar pau, ou então que agisse rapidamente para minimizar o problema.

Essa nova infraestrutura impulsionou uma série de novos negócios do chamado SaaS (Software as a Service). Se você não ligou o nome à coisa, é qualquer serviço baseado na web, como provavelmente é o email em que você está lendo esta newsletter. O fato da sua caixa de entrada estar hospedada na nuvem é o que permite você acessá-la de qualquer lugar.


Contudo, essa infraestrutura se tornou ela mesma um oligopólio. Cinco empresas controlam cerca de 80% do mercado, sendo que a AWS (Amazon Web Services) responde por metade disso sozinha. Neste grupo também estão Microsoft Azure, Google, Alibaba e Huaweii. São três empresas americanas e duas chinesas concentrando parte significativa de tudo que está guardado virtualmente.

Esses números constam do trabalho apresentado por Sérgio Amadeu, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), e Rodolfo Avelino, do Insper, no último encontro anual da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação em Pesquisa em Ciências Sociais), e que será publicado numa coletânea.

Amadeu aponta à Plataforma que o avanço da computação em nuvem estabeleceu uma nova divisão internacional do trabalho, semelhante à de três séculos atrás. “Ao concentrar os dados e os serviços em suas infraestruturas, cria-se uma dependência econômica que nos coloca numa situação muito parecida com o início da industrialização do mundo, da qual participamos ofertando matéria-prima”, ele diz.

A matéria-prima, no caso, são os nossos dados, inclusive governamentais.

“Eles dão uma série de facilidades, serviço de qualidade, preço baixo. Nós entregamos os dados, deixamos de construir infraestruturas aqui e de utilizar nossas máquinas”, afirma o professor.


No atual momento de desenvolvimento da inteligência artificial, controlar esses volumes gigantescos de dados tornou-se uma questão estratégica. Quem reconhece isso é Amandeep Singh Gill, enviado especial da ONU para tecnologia e que coordenou o lançamento, no início de novembro, do órgão consultivo das Nações Unidas que tem como objetivo propor diretrizes para a governança da IA.

Em entrevista à Folha de S.Paulo, Gill afirmou que é necessário que os países do Sul Global invistam rápido numa infraestrutura pública mundial em grande escala para garantir a soberania sobre seus próprios dados. Ao elencar as principais preocupações com a IA, ele citou também a concentração de poder, de tecnologia e de informação em poucos locais, principalmente Estados Unidos e China.

“É como se tivéssemos uma nova cadeia alimentar, com esses grandes predadores no topo e o resto, que são grama ou bichos pequenos. Isso tudo tem implicações para a desigualdade digital, as aspirações do Sul Global de alcançar um maior nível de desenvolvimento”, disse.

Amadeu ressalta que os dados são insumo fundamental para treinar qualquer modelo de IA. Sem acesso a eles, não há o que fazer. “É uma conjunção que vai gerar uma perda de recursos e vai reduzir a capacidade inventiva, criativa de tecnologia no país.”


No caso brasileiro, essa discussão se torna mais urgente porque o país está discutindo a Estratégia Nacional de Governo Digital que valerá de 2024 a 2027. É a oportunidade de definir o papel desses serviços e se haverá uma política para “internalizar” data centers no país.

Amadeu explica que o Serpro, empresa pública de tecnologia da informação, já mantém contratos com a AWS e a Microsoft para operar serviços baseados na nuvem — cujos termos são protegidos por cláusulas de confidencialidade.

A própria RNP (Rede Nacional de Pesquisa), que teve papel fundamental na criação de uma infraestrutura pública de internet no Brasil, também já validou parcerias com essas empresas e tem apoiado a expansão delas junto a universidades e institutos de pesquisa.


O negócio das nuvens é outro lado da nossa vida plataformizada. Só que, diferentemente dos apps de delivery ou das redes sociais, essas plataformas realizam uma mediação que fica abaixo da superfície de nossa vida digital. Estabelecem regras, cobram valores, desenham dinâmicas de funcionamento que pouco ou nada sabemos. São plataformas que quase ninguém vê.

Questionado se não haveria cláusulas para impedir que nossos dados fossem transformados em matéria-prima para inteligência artificial ou outras aplicações, Sérgio Amadeu foi cético e argumentou que, no fim das contas, é sempre um cálculo econômico. Se o dado for valioso demais, paga-se a multa, e a vida (e o negócio) segue.

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