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Vandalismo machista na Wikipédia concentra ataques em março, mês que celebra luta das mulheres

Por Ethel Rudnitzki

8 de março de 2024, 09h07

Quem acessou o verbete sobre o Dia Internacional da Mulher na Wikipédia — enciclopédia virtual mais popular do mundo — quatro dias atrás correu o risco de se deparar com um ataque machista logo no início do texto. “As mulheres não serão melhores que os homens”, dizia uma frase inserida às 18h12 da última segunda-feira (4) por um usuário recém-criado. O registro do vandalismo — como são chamadas as edições mal-intencionadas dentro da comunidade — ficou no ar por três minutos até ser corrigido por um editor voluntário.

Essa não é a primeira vez que ocorrem ataques a páginas da Wikipédia dedicadas às questões de gênero. Em 8 de março de 2022, por exemplo, a página sobre o Dia Internacional da Mulher teve o título alterado para “Dia Internacional da cozinha e de lavar louça”. O ataque foi apagado sete minutos depois. Apesar de se concentrarem no mês de março, essas manifestações ocorrem o ano todo.

  • Aos Fatos identificou 106 episódios de vandalismos em nove dos dez principais verbetes em português sobre gênero nos últimos cinco anos;
  • Entre esses ataques, 84 (80%) tinham conteúdo machista, misógino ou transfóbico;
  • O artigo mais atacado na enciclopédia virtual é o que trata de Feminismo, que sofreu mais de 27 edições mal-intencionadas nos últimos cinco anos;
  • Atrás dele aparecem os verbetes Mulher e Machismo, com 23 ataques registrados no período.
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“No Dia Internacional das Mulheres, a página sobre a data tende a passar por uma quantidade muito alta de acessos. Isso faz com que o artigo esteja vulnerável a edições danosas que podem ser vistas por muitos outros usuários”, disse ao Aos Fatos o jornalista e wikipedista Tiago Abreu, que atua como editor na plataforma sob o pseudônimo Fronteira.

Nos últimos dois anos, ele foi responsável por restringir a capacidade de edição do verbete no início de março — feito que repetiu após os ataques de quatro dias atrás. “Como somos poucos editores e temos muitas páginas na Wikipédia, acabamos por utilizar o recurso de proteção de páginas para evitar mais danos em contextos como esses”, conta. Graças a ele, até o dia 9 de março o verbete só poderá ser editado por autorrevisores — um grupo mais restrito de editores da plataforma.

De acordo com as políticas da Wikipédia, edições de artigos devem ser amparadas por fontes confiáveis e verificáveis, como a imprensa profissional, revistas científicas, documentos públicos e artigos acadêmicos. Porém, por ser uma enciclopédia colaborativa, a construção e a moderação desses conteúdos estão a cargo de editores voluntários como Fronteira, que vigia mais de 15 mil verbetes.

Na maioria dos casos, o sistema de moderação funciona: 90 dos 106 casos de vandalismo (85%) constatados pelo Aos Fatos em páginas sobre temas ligados a gênero foram revertidos em menos de uma hora.

Alguns episódios, no entanto, não têm resolução tão rápida: no dia 29 de fevereiro deste ano, um usuário inseriu a frase “Em fim às [sic] mulheres não têm direitos” no artigo sobre Direitos das Mulheres, vigiado por 40 usuários. O ato de vandalismo permanecia no ar até a publicação desta reportagem, uma semana depois.

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TRANSFOBIA

O caráter colaborativo da plataforma faz com que qualquer conteúdo disponível seja vulnerável a ataques. No caso de verbetes relacionados a gênero e minorias, no entanto, esses atos de vandalismo têm um padrão de preconceito relacionado.

“Eu percebo que, quando nos referimos a minorias, existem uma série de desafios e algumas ‘gracinhas’ ditas por pessoas preconceituosas”, afirmou Fronteira em entrevista ao Aos Fatos. Ele cita como exemplo os ataques dos vândalos a biografias de pessoas transgênero. “Não é raro ocorrerem edições maldosas de indivíduos alterando o gênero da pessoa biografada, ou colocando seu nome morto”, conta.

Entre os ataques constatados nos artigos relacionados a gênero, dez (9,4%) eram edições transfóbicas que tentavam excluir mulheres trans do verbete Mulher. Em 16 de setembro de 2023, por exemplo, um usuário recém-criado de pseudônimo CorrectEarth (ou Corrija a Terra) inseriu três vezes no artigo um parágrafo que dizia que mulheres trans não deixavam de ser homens. Na primeira tentativa, a alteração — feita na madrugada — permaneceu por mais de uma hora no ar.

No mesmo dia, o vândalo também fez uma edição parecida no verbete Homem para atacar homens trans, mas o ataque permaneceu por menos de 20 minutos no ar.

REINCIDÊNCIA

O Aos Fatos também identificou outros 12 ataques de vândalos reincidentes em verbetes relacionados a gênero. O mesmo usuário que editou o verbete sobre Feminismo para inserir que se trata de um movimento “de mulheres que não sabem de nada” incluiu no artigo sobre História do Feminismo um trecho que afirma que o objetivo do movimento é a “destruição da família e de toda a raça humana”. A conta foi bloqueada do site 30 minutos depois.

A maioria (60%) das contas responsáveis por atos de vandalismo identificados pelo Aos Fatos também passou por bloqueios após as edições preconceituosas.

Já outros vândalos, apesar dos ataques reiterados, acabam driblando a vigilância da enciclopédia. Um editor que se identifica com o pseudônimo Ação Humana, por exemplo, incluiu no artigo sobre Feminismo uma ligação do movimento com a misandria — ou ódio aos homens — que foi revertida oito minutos depois.

No mesmo dia, o usuário editou artigo sobre Manosfera — subcultura que promove a masculinidade e faz oposição ao feminismo — para incluir um parágrafo que justificava a existência do movimento e alegava a “inexistência de um privilégio masculino”, alteração que também foi revertida. Um mês depois, ele voltou a incluir um texto quase idêntico no artigo.

Mesmo assim, a conta continua ativa na plataforma. Entre os artigos editados pelo usuário estão Censura no Brasil, Direita (política) e até a biografia do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

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LACUNA DE GÊNERO

Para Fronteira, os problemas causados pelos ataques a artigos e as falhas na moderação desses conteúdos são agravados pela desigualdade de gênero entre os editores da enciclopédia. Segundo dados da Fundação Wikimedia de 2022, responsável pela enciclopédia, apenas 13% dos editores ativos dizem ser do gênero feminino.

“Isso se reflete tanto no interesse da comunidade em verbetes sobre mulheres e seus direitos quanto no maior acompanhamento de vandalismos”, avalia Fronteira.

Há também uma lacuna de gênero no conteúdo publicado na enciclopédia: menos de 20% das biografias disponíveis na plataforma são de mulheres ou pessoas não-binárias. Uma pesquisa realizada pelo Departamento de Ciência da Computação da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) mostrou que, além da menor representatividade, existem diferenças na maneira como as mulheres são retratadas em suas biografias quando comparadas aos homens.

Verbetes sobre mulheres, por exemplo, apresentaram mais palavras relacionadas a relacionamentos amorosos e familiares do que artigos sobre homens.

“A gente pode visualizar que o viés que a gente vê na sociedade também está inserido na Wikipédia. Eu acho que talvez ele não seja tão maior, mas pelo fato dos homens serem a maior parte dos editores, é óbvio que eles vão escrever muito mais sobre homens e quando vão escrever sobre mulheres fazem sob uma perspectiva um pouco mais sexista”, analisa a pesquisadora Isadora Salles. Para ela, a melhor solução para combater o problema seria a maior participação de mulheres na plataforma.

Nesse sentido, a Wikimedia tem promovido campanhas para incentivar a adesão de mulheres à Wikipédia e a produção, tradução e edição de verbetes sobre mulheres. Todo mês de março, a fundação realiza a campanha “Atenção! Mulheres fazendo história”, que promove uma maratona para criar, traduzir e editar artigos sobre mulheres ou relacionados a gênero na enciclopédia. Também há a iniciativa Celebrate Women (celebre mulheres, em português), que realiza eventos entre Wikipedistas para discutir e solucionar problemas relacionados à lacuna de gênero.

No Brasil, a fundação apoia o projeto Mais Teoria da História na Wiki, idealizado pela professora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) Flávia Varella e realizado em parceria com núcleos de historiografia de outras universidades do país. Um dos braços do projeto é o evento Mais Mulheres em Teoria da História na Wiki, que promove a criação e edição de verbetes sobre historiadoras e suas descobertas na enciclopédia virtual.

Este ano, o evento acontecerá entre junho e julho, sob a coordenação da professora Mariana Silveira, da UFMG, e promoverá uma maratona de edição de verbetes sobre mulheres na história, além de cursos para novas editoras na Wikipedia. “A gente enfrenta o desafio da capacitação para lidar com os materiais informáticos, que historicamente foi algo também muito masculinizado. Se a disparidade [de gênero] entre editores da Wikipédia reflete alguma coisa em termos das disparidades sociais, eu diria que vem dessa disparidade no trato com a tecnologia”, avalia.

Embora não seja necessário conhecimento de programação, para realizar edições dentro da Wikipedia é necessário saber escrever na linguagem HTML.

Para Silveira, contudo, as disparidades presentes na enciclopédia virtual são mais acentuadas do que as da sociedade no geral. “Eu acho que talvez o que ainda possa ser feito com mais profundidade é justamente trabalhar na capacitação, para que existam mais editoras mulheres, e também mais pessoas negras editando também, mais pessoas que sejam de populações indígenas etc.”

Banner presente em página da Wikipédia mostra imagens de três mulheres e convida usuários a combaterem lacunas de gênero na plataforma
Mulheres fazendo história. Banners divulgam campanhas contra lacuna de gênero na Wikipédia (Reprodução/Wikipédia)

LACUNA DE IDIOMA

Os projetos de igualdade de gênero acabam alcançando maior mobilização entre editores da plataforma em inglês. A campanha “Mulheres fazendo história”, por exemplo, tinha apenas cinco artigos sugeridos em português para criação ou tradução. Entre eles estava a sugestão para publicação de um verbete sobre a Lei de Igualdade Salarial (14.611/2023), sancionada em julho do ano passado e que ainda não tem página na enciclopédia. Já o projeto Celebrate Women não tem nenhum evento cadastrado no Brasil ou em português.

Essa lacuna de idioma entre as versões da Wikipédia em português e em inglês não é exclusiva em projetos e conteúdos sobre mulheres. “Eu costumo editar temas relacionados ao movimento de pessoas com deficiência e muitos temas relevantes não existiam (ou ainda não existem) na versão lusófona”, ressalta Fronteira.

A enciclopédia conta com 8.422 editores ativos e 1,1 milhão de artigos na versão em português. Já a versão em inglês tem mais de 124 mil editores ativos e 6,8 milhões de artigos. Tal diferença no volume de verbetes e voluntários, afirma Fronteira, reflete diretamente na capacidade da plataforma de moderar e combater atos de vandalismo.

Aos Fatos enviou email no dia 5 de março para a Fundação Wikimedia questionando sobre os ataques em artigos de gênero encontrados e sobre as iniciativas do grupo para combater lacunas de gênero e de idioma na Wikipédia. A organização respondeu três dias depois pedindo mais informações sobre os episódios de vandalismos encontrados e mais prazo para analisar os casos.

“Levamos muito a sério quaisquer casos de vandalismo e as nossas comunidades têm inúmeras políticas e práticas em vigor para resolver quaisquer problemas”, disseram.

A reportagem continuará acompanhando a resposta da fundação, que será registrada aqui.

Referências:

1. Wikipédia (1, 2, 3, 4, 5, 6)
2.
Wikimedia (1, 2, 3)
3. Planalto
4. Sociedade Brasileira de Computação
5. Projeto Mais Teoria da História na Wiki

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