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Projeto para regular trabalho por aplicativo pode abalar o bolso de motoristas e passageiros

Por Luiz Fernando Menezes

12 de março de 2024, 11h41

Bandeira trabalhista defendida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) desde a campanha eleitoral, a regulação da profissão de motorista de aplicativo de transporte de passageiros começou a tramitar no Congresso na semana passada, quando o governo enviou o PLP 12/2024. Alvo de divergências dentro da categoria, a proposta tem sido objeto de uma campanha de desinformação nas redes, que a descreve como “o fim da Uber” no país.

Entre as informações falsas disseminadas estão a de que os motoristas serão obrigados a se sindicalizar ou serão obrigados a aceitar o regime CLT — o que o projeto busca, na realidade, é tornar obrigatória a contribuição ao INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social). As mentiras têm circulado junto de dúvidas legítimas sobre a proposta, como o impacto da contribuição previdenciária sobre os rendimentos dos trabalhadores e também sobre o valor pago pelos consumidores nas corridas.

O Aos Fatos conversou com especialistas para esclarecer os principais pontos do texto:

  1. Já há novas regras em vigor?
  2. Os motoristas vão ganhar menos?
  3. O que muda na jornada de trabalho?
  4. Os passageiros vão pagar mais?
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1. Já há novas regras em vigor?

Não. O projeto de lei que regula o trabalho de motoristas de aplicativo que trabalham com transporte de passageiros — caso da Uber e da 99 — foi enviado pelo governo federal ao Congresso na última segunda-feira (4). A proposta está no início da tramitação e ainda deve ser discutida e votada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado. Caso aprovada, ela segue então para sanção presidencial.

Em resumo, o projeto cria uma nova modalidade trabalhista — chamada de “trabalhador autônomo de plataforma” — e estabelece direitos e deveres como jornada máxima de trabalho, remuneração mínima e contribuição previdenciária. Nesse momento, entregadores de aplicativo, que prestam serviços para empresas como iFood e Rappi, não estão incluídos nas novas regras.

O texto foi proposto após um acordo de um grupo de trabalho criado em 2023 e formado por representantes do governo, de trabalhadores e de empresas como Uber, iFood, Zé Delivery, Rappi e Mercado Livre.

“Vocês acabaram de criar uma nova modalidade no mundo do trabalho. Ou seja, foi parido uma criança nova no mundo do trabalho em que as pessoas querem ter autonomia, vão ter autonomia, mas ao mesmo tempo as pessoas resolveram acordar com os empresários e com o governo de que eles querem autonomia, mas eles precisam de um mínimo de garantia.” — Lula, na cerimônia de assinatura do projeto, em 4.mar.2024.

Vale ressaltar que o projeto será debatido em regime de urgência — ou seja, se não for votado em um período de 45 dias, até o dia 19 de abril, a pauta normal do Congresso será paralisada até que seja analisado. O regime de tramitação pode ser alterado, mas essa costuma ser uma sinalização do Legislativo de um compromisso para votar determinadas pautas.

Foto mostra Lula segurando projeto assinado junto do ministro do Trabalho, Luís Marinho (PT), e outros membros do governo
Assinatura. Lula classificou o projeto como o criador de ‘uma nova modalidade de trabalho’ (Ricardo Stuckert/PR)

2. Os motoristas vão ganhar menos?

Ainda não é possível dizer. Conforme explicou ao Aos Fatos Sandro Sacchet, técnico de planejamento e pesquisa da Diretoria de Estudos e Políticas Macroeconômicas do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), não se sabe quanto a Uber e outras empresas repassam, de fato, para os motoristas. Logo, não é possível saber se o valor proposto pela lei é maior ou menor do que o atual.

  • O projeto do governo determina um valor mínimo por hora trabalhada de R$ 32,10;
  • Desse montante, R$ 24,07 são destinados a cobrir os custos da prestação do serviço, como combustível e acesso à internet, e R$ 8,03 servem como retribuição ao motorista;
  • O projeto também determina que os trabalhadores que atuarem por 44 horas semanais devem receber por mês ao menos um salário mínimo (R$ 1.412), excluídos os custos de trabalho;
  • Isso significa que o motorista não poderá receber menos de R$ 32,10 por hora trabalhada — ou seja, em momentos em que efetivamente está realizando corridas. Nada impede, no entanto, que ele receba mais do que esse valor.

Atualmente, em um cenário em que não há regulação, motoristas de aplicativo possuem rendimento médio real de R$ 2.454 mensais e trabalham em média 47 horas semanais. Os dados, referentes a 2022, são de uma pesquisa divulgada no ano passado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Isso significa que esses profissionais recebem cerca de R$ 11,80 por hora trabalhada — já descontados os gastos da gasolina, internet e outros custos da profissão.

De acordo com a estimativa do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego), levando em consideração o novo valor de hora mínima proposto pelo projeto, “o trabalhador que realizar uma jornada de 8 horas diárias, durante 22 dias, receberá R$ 5.649,60”. A pasta omite, no entanto, que R$ 4.236,32 desse total seriam referentes ao ressarcimento dos custos.

Representantes dos motoristas temem que o valor mínimo proposto pelo governo não consiga cobrir os custos do carro e se torne uma desculpa para não aumentar os repasses em eventuais discussões entre os trabalhadores e as empresas.

Outro problema levantado por Sandro Sacchet é que o valor mínimo não leva em consideração as diferenças regionais, uma vez que o valor do combustível, por exemplo, varia de acordo com os estados.

Vídeo publicado pela Fembrapp representa o PLP como uma faixa que silencia motoristas
‘Lei da contramão.’ A Federação Brasileira de Motoristas de Aplicativos organizou um abaixo assinado contra o PLP e convocou uma manifestação nacional para o dia 2 de abril (Reprodução)

Previdência. Outro ponto que pode impactar no bolso dos motoristas é a contribuição previdenciária. Atualmente, os trabalhadores da categoria que queiram contribuir com o INSS devem estar inseridos no regime MEI (Microempreendedor Individual). De acordo com uma pesquisa do Ipea, apenas 23% dos motoristas de aplicativo contribuem atualmente para a Previdência.

Caso o PLP seja aprovado, todos os motoristas passarão a contribuir com 7,5% sobre 25% do valor bruto recebido por hora trabalhada. As empresas também passarão a pagar 20% sobre o mesmo valor.

A contribuição previdenciária garante direito não só à aposentadoria, mas também a benefícios como pensão por morte, benefício por incapacidade temporária, auxílio-acidente e auxílio-maternidade.

“Cada motorista pode, como seria recomendável, recolher o INSS como contribuinte facultativo para gozar dos benefícios previdenciários, mas isso raramente acontece. Além disso, as empresas de aplicativo não recolhem a contribuição patronal ao INSS sobre os valores recebidos pelos motoristas, com grande perda de arrecadação para o governo. O projeto visa mudar isso”, explicou ao Aos Fatos Carlos Eduardo Ambiel, professor de direito e processo do trabalho da Faap (Fundação Armando Alvares Penteado).

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3. O que muda na jornada de trabalho?

Diferentemente do que sugerem publicações nas redes, os motoristas não serão obrigados a aderir ao regime CLT ou a ter jornadas fixas de trabalho. O projeto apresentado pelo Executivo cria a categoria dos “trabalhadores autônomos por plataforma” e estipula as seguintes regras:

  • As empresas não poderão exigir exclusividade: os motoristas poderão trabalhar para quantas plataformas quiserem e organizar seus horários da maneira que preferirem;
  • Cada motorista só poderá ficar conectado a um mesmo aplicativo por, no máximo, 12 horas diárias. O professor Carlos Eduardo Ambiel ressalta que estar conectado não significa necessariamente estar trabalhando, já que o motorista pode não aceitar corridas ou pode trabalhar ao mesmo tempo para duas plataformas concorrentes;
  • Os motoristas serão representados por sindicatos, que ficarão responsáveis por realizar as negociações coletivas com as empresas e atuar em nome da categoria em demandas judiciais. A associação sindical, no entanto, será opcional;
  • Como irão contribuir com o INSS, os motoristas poderão usufruir dos direitos previdenciários, como o auxílio-doença e o auxílio-maternidade.

4. Os consumidores vão pagar mais?

Especialistas consultados pelo Aos Fatos acreditam que o valor das corridas tende, sim, a aumentar caso o projeto seja aprovado da maneira que foi proposto.

Para Ambiel, esse reajuste dependerá das empresas: “Se as plataformas não reduzirem sua margem [de lucro] nem reduzirem o que pagam aos motoristas, a matemática indica um provável aumento de custo para o consumidor. O desafio das plataformas será calibrar bem esse repasse de custo, conforme a realidade de cada local do país, para não resultar em perda de clientes”.

Paulo Renato Fernandes, professor de direito do trabalho na FGV (Fundação Getúlio Vargas), concorda com a premissa e acredita que o aumento não deverá tirar a competitividade dos aplicativos de mobilidade, já que é de interesse das empresas se manter no mercado.

Fernandes ressalta ainda que a população deve entender que o aumento do preço representa uma dignificação do motorista: “São direitos básicos, mínimos, que por certo irão encarecer o serviço. O preço das corridas provavelmente vai aumentar, mas isso não afasta a importância da inclusão dessas pessoas na rede de proteção social constituída pelo INSS”.

Em vídeo publicado nas redes, o secretário-executivo do MTE, Francisco Macena, disse que a estimativa é que o projeto irá aumentar em R$ 2,20 o valor pago por hora de viagem, mas não explicou qual cálculo levou ao resultado.

O valor é semelhante à contribuição ao INSS (27% de R$ 8,03) proposta pelo projeto. É possível que a conta do ministério, portanto, determine que esse seria o reajuste considerando que a taxa seja integralmente repassada aos consumidores. Aos Fatos questionou a assessoria da pasta se esse foi o raciocínio usado no cálculo, mas não recebeu resposta.

Aos Fatos questionou a Uber, a 99, o MTE e a Amobitec (Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia) se o valor das corridas deve aumentar caso o projeto seja aprovado. A Uber e a associação enviaram posicionamentos defendendo a proposta, mas não responderam a questão. A 99 e o ministério não retornaram o contato.

Referências:

1. Câmara dos Deputados (1 e 2)
2. Ministério do Trabalho e Emprego
3. Planalto
4. EBC (1 e 2)
5. IBGE
6. g1
7. INSS (1, 2 e 3)
8. Amobitec
9. Uber

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