Com o objetivo de rebater críticas sobre sua afirmação de que o mandatário russo Vladimir Putin não seria preso caso viesse ao Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) disse em entrevista nesta segunda (11) que desconhecia o TPI (Tribunal Penal Internacional).
No entanto, documentos oficiais, discursos e outras declarações de Lula à imprensa mostram que ele participou da indicação de uma juíza brasileira ao tribunal e, em 2003, enviou o então chanceler Celso Amorim como representante do Brasil à sua sessão inaugural. Em nota à época, o Itamaraty disse que a escolha da magistrada refletia “também o compromisso do Brasil com a defesa e a promoção dos direitos humanos”.
Criado em 1998 e atuante desde 2002, o TPI — também conhecido como corte de Haia, por conta da localização de sua sede, na Holanda — julga crimes contra os direitos humanos, como genocídios, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crimes de agressão. A corte é ratificada atualmente por 123 países, incluindo pelo Brasil, mas não possui nenhum membro brasileiro.
Em março deste ano, o tribunal emitiu uma ordem de prisão contra Putin por crimes de guerra. O governante russo é acusado de deportar ilegalmente crianças de áreas ocupadas da Ucrânia.
Veja abaixo, em detalhes, o que Aos Fatos checou:
“Não tô dizendo que eu vou sair de um tribunal. Eu só quero saber, e isso só me apareceu agora, e eu nem sabia da existência desse tribunal [tribunal de Haia], sabe? Eu só quero saber por que que os Estados Unidos não é signatário, porque a Índia não é signatária, porque a China não é signatária” — em entrevista, em 10.set.2023.
Documentos oficiais e registros veiculados na imprensa desmentem a alegação de que Lula não conhece o Tribunal Penal Internacional. Além de já ter feito referência à entidade em diversas ocasiões desde o seu primeiro mandato, em 2003, o petista assinou uma carta de compromisso sobre a submissão do Brasil à corte e enviou representantes do governo à sua sessão inaugural. Durante as eleições de 2018, a defesa de Lula também cogitou recorrer ao tribunal para garantir sua candidatura ao pleito presidencial.
Lula foi questionado sobre uma declaração dada dias antes em entrevista ao veículo indiano Firstpost de que o presidente Vladimir Putin não seria preso caso viesse ao Brasil. A decisão do petista contraria um mandado de prisão emitido pelo TPI em março deste ano, que acusa o líder russo de deportar ilegalmente crianças de áreas ocupadas da Ucrânia.
Confira abaixo uma linha do tempo que mostra as relações de Lula com a corte de Haia:
- Ainda durante a transição com o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), em 2002, Lula e o PT atuaram para apoiar a indicação da primeira brasileira a integrar a corte, a ex-desembargadora Sylvia Steiner, que ocupou o posto de março de 2003 a março de 2012;
- Na ocasião da posse da juíza, o Ministério das Relações Exteriores — já no governo Lula, liderado pelo chanceler Celso Amorim — divulgou nota dizendo que “a eleição de Sylvia Steiner [para o TPI] reflete não apenas o reconhecimento de seus méritos pessoais e qualificações profissionais, senão também o compromisso do Brasil com a defesa e a promoção dos direitos humanos”;
- De acordo com cronologia da Funag (Fundação Alexandre de Gusmão), vinculada ao Itamaraty, Amorim participou em 2003 da sessão inaugural do TPI, na Holanda;
- Em 2004, Lula enviou uma mensagem ao Congresso Nacional se comprometendo a adaptar a legislação do país para fortalecer o Estatuto de Roma, tratado que estabeleceu o TPI;
- No mesmo ano, o Congresso aprovou a emenda constitucional 45, que determinou que o Brasil “se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”;
- Anos depois, em 2018, reportagens da imprensa noticiaram que a defesa do presidente, liderada pelo advogado Cristiano Zanin — indicado por Lula ao STF (Supremo Tribunal Federal) neste ano —, cogitou recorrer ao TPI para tentar libertá-lo da prisão e garantir sua candidatura às eleições de 2018;
- Sem fazer referência direta a Haia, que julga delitos como genocídio e crimes contra a humanidade, Lula defendeu, em abril deste ano, que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) deveria ser julgado “em tribunal internacional” por sua atuação durante a pandemia de Covid-19.
Em entrevista concedida em março deste ano, pouco depois da emissão do mandado de prisão contra Putin, o chanceler brasileiro, Mauro Vieira, afirmou que o país respeita e segue as decisões do TPI e que a presença do russo em um país que seja membro do tribunal poderia “levar a complicações”.
Em diversas ocasiões, o PT também fez referência à corte. Em 2020, por exemplo, o perfil oficial do partido no Facebook publicou notas sobre a denúncia de crime contra a humanidade envolvendo o então presidente Jair Bolsonaro, enviada ao TPI durante a pandemia da Covid-19. A sigla também repercutiu a denúncia da APIB (Associação dos Povos Indígenas do Brasil) por genocídio dos povos indígenas em 2021.
Responsabilidade. Como um dos 123 países signatários do Estatuto de Roma, o Brasil deve, teoricamente, cumprir as ordens da corte, o que inclui determinar a prisão de Putin caso este venha a visitar o território brasileiro. Em nota enviada ao Metrópoles, o TPI disse que não iria comentar a fala de Lula, mas afirmou que o Brasil tem obrigação de cooperar com a corte internacional.
É fato, no entanto, como afirmou Lula, que Índia, China, Rússia e Estados Unidos não são signatários do TPI. Washington chegou a assinar o Estatuto em 2000, durante a gestão de Bill Clinton, mas a decisão não foi enviada ao Congresso para aprovação. Em 2002, George Bush retirou a assinatura.
Outro lado. Aos Fatos entrou em contato com a assessoria do presidente para que ele pudesse comentar, mas não houve retorno até a publicação desta reportagem.