“As eleições de 2024 estão batendo à porta e a inteligência artificial está aqui para revolucionar o jogo!”, promete um anúncio no Instagram, pago pela página Tática Eleitoral e exibido entre 7 e 18 de junho para mais de 175 mil pessoas no Rio de Janeiro, a um custo inferior a R$ 500.
- O Aos Fatos identificou outros 16 anúncios sobre temas políticos nas plataformas da Meta — dona de Facebook, Instagram, WhatsApp e Threads — que ofereciam cursos, mentorias, palestras e ferramentas para uso de IA em campanhas políticas;
- Essas peças publicitárias somaram cerca de 360 mil visualizações no período, por menos de R$ 2.800, e foram impulsionadas por seis anunciantes diferentes;
- A ferramenta de transparência da Meta não informa os números exatos de audiência e custo para o anunciante.
Outro marqueteiro que pagou por anúncios no Facebook para oferecer serviços relacionados a inteligência artificial é Marcos Eraldo Arnaud Marques, que frequentou o noticiário nos últimos anos.
Durante a pandemia, ele assessorou o então ministro da Saúde e atual deputado, Eduardo Pazuello (PL-RJ), que era também general da ativa e espalhava mentiras sobre a Covid-19. Por isso, Markinhos Show — como é conhecido — entrou na mira da CPI. Apesar de os senadores terem marcado data, o depoimento foi postergado e acabou não acontecendo.
Dois anos depois, o profissional que auxiliou Pazuello na pandemia de Covid-19 vende cursos de marketing político com uso de inteligência artificial.
Markinhos pagou cinco anúncios que ofereciam aulas em Belém e Manaus, que somaram cerca de 93 mil visualizações no Facebook.
Também apresentado como hipnólogo, ele participou em 2022 das campanhas eleitorais de três senadores — Sergio Moro (Podemos-PR), Hiran Gonçalves (PP-RR) e Lucas Barreto (PSD-AP) — e do governador de Roraima, Antônio Denarium (PP), além de ter ajudado a eleger o ex-chefe à Câmara dos Deputados.
Markinhos Show disse ao Aos Fatos que deixa o ChatGPT aberto “24 horas por dia”. Nos cursos, o marqueteiro indica a ferramenta para compor jingles de campanha, escrever discursos, planejar estratégias, fazer roteiros de vídeos e até rascunhar propostas de governo.
“Eu já vi vários candidatos que chegam por aí, muitas vezes [ele] está numa reunião e não tá preparado, não sabe realmente a pauta. Com o ChatGPT na ponta do celular dele, ele monta um discurso em cima da hora, na frente de todo mundo.”
Segundo o marqueteiro, “o segredo está em colocar as informações corretas” na ferramenta. “Mesmo com tudo que eu tenho de estudo de neuromarketing, de hipnose clínica, de gestão humana, eu confesso que o texto da inteligência artificial ficou muito mais gostoso de ler.”
Para intermediar e aprimorar o uso do ChatGPT por políticos, o consultor Wesley Mendonça está desenvolvendo um aplicativo próprio para ser usado em campanhas eleitorais, que ele também anuncia nas plataformas da Meta. Na propaganda, ele promete que o produto “mudará o jogo das estratégias eleitorais”.
A ferramenta fornece um formulário para ser preenchido pelo candidato e gera conteúdos a partir disso, como posts de redes sociais, títulos para vídeos, discursos e até textos direcionados a diferentes públicos.
“O candidato só precisará apertar o botão”, afirma o consultor Mendonça.
O aplicativo está sendo desenvolvido com a API do ChatGPT, disponível na versão paga da ferramenta. Desta forma, desenvolvedores podem produzir novas aplicações a partir de usos específicos da ferramenta da OpenAI, como Mendonça está planejando.
Segundo ele, a ferramenta será disponibilizada por assinatura, com foco em campanhas com poucos recursos — levando em consideração o cenário de eleições municipais, em que os candidatos têm menos recursos que políticos que concorrem a governo estaduais ou a cargos federais. O consultor afirma que há 800 pessoas aguardando para testar a versão beta.
Uso proibido. O que é vendido como estratégia infalível, é visto como um risco por pesquisadores do setor. Para Lawrence Lessig, professor de direito da Universidade Harvard, o uso indiscriminado da tecnologia em campanhas políticas pode dominar as eleições e prejudicar a democracia.
Estudos mostram que propagandas geradas por IA podem ter maior poder de persuasão, uma vez que as ferramentas usam dados do público para se aprimorar e podem produzir conteúdos extremamente personalizados para cada usuário.
Além disso, há o risco de sistemas de IA generativa, como o ChatGPT, inventarem informações com o objetivo de tornar uma mensagem mais persuasiva.
No caso de campanhas mal intencionadas, o risco é ainda maior, uma vez que já existem ferramentas que criam conteúdos altamente realistas que podem gerar desinformação contra opositores políticos, como o caso de imagens criadas por IA do ex-presidente Donald Trump sendo preso ou disseminação de áudios falsos que usam a voz de outro candidato.
Reconhecendo os riscos, a OpenAI incluiu nos termos de uso, que abrangem o ChatGPT, a proibição de uso para campanhas políticas ou de lobby quando isso for feito:
- em grandes quantidades;
- para gerar conteúdos personalizados para grupos ou classes específicas;
- ou incorporado a produtos voltados para marketing político.
Questionado a respeito, o consultor Wesley Mendonça afirmou que seu aplicativo disponibilizará avisos sobre o uso ético da tecnologia na produção de materiais de campanha. Além disso, por guiar a produção de comandos para o ChatGPT, ele acredita que minimizará os riscos da geração de conteúdos falsos acidentais pela ferramenta.
Já Markinhos Show reconhece que a geração de conteúdos falsos a partir da tecnologia será um problema para as próximas eleições, mas defende que o risco maior está em ferramentas de imagem e áudio, não de texto, como o ChatGPT.
Regulação. A preocupação também chegou aos legisladores europeus que discutiam a Lei de IA, aprovada pelo parlamento no dia 14 de junho. Eles revisaram o texto para incluir sistemas que influenciam eleitores em campanhas como de “alto risco” na regulação, de forma que os operadores dessas tecnologias terão obrigações de transparência e cuidado maiores.
- Nos Estados Unidos, Lessig propõe que as empresas operadoras de IA proíbam o uso de seus softwares em eleições enquanto os debates regulatórios não avançam. Lá, o uso da tecnologia para campanhas políticas já está na mira de marqueteiros para a disputa presidencial no ano que vem, conforme mostrou o jornal The New York Times;
- No Brasil, a questão não está contemplada de forma explícita nos projetos que tramitam no Senado. Caberia à Justiça Eleitoral criar resoluções específicas sobre o tema, uma vez aprovada a regulação.
“Essa proposta regulatória, se aprovada, e deve ser aprovada, vai estabelecer a fundação desse edifício regulatório. Os andares, tanto de eleições, como saúde ou financeiro, dependerão necessariamente de órgãos reguladores setoriais. Eles podem dar essa camada de especificação”, explica o diretor do Data Privacy, Bruno Bioni.
Ele teme, contudo, que não haja tempo hábil para a aprovação de um marco regulatório antes do período eleitoral. “Há uma pressão de tempo. O quando vamos regular é essencial porque enfrentar no ano que vem um cenário de faroeste de uso de inteligência artificial no campo eleitoral pode ser catastrófico”, avalia.
Já Vânia Aieta, advogada eleitoral e professora de Direito da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), vê a questão sob outro prisma. “Ainda que não se tenha uma normatização precisa sobre IA, a legislação existente de combate à disseminação e aos ilícitos da propaganda me parece bem ajustada para enfrentar a eleição”, afirma.
Aieta diz que uma legislação específica traria maior segurança para aplicação de punições. Segundo ela, novas normas costumam ser publicadas pela Justiça Eleitoral em período mais próximo ao pleito.
Questionado, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) não respondeu ao Aos Fatos sobre como está se preparando para lidar com o uso de IA em campanhas eleitorais. Durante as eleições municipais de 2024, o presidente da corte será o ministro Nunes Marques.