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Socorro ao Rio Grande do Sul é vendido como produto no mercado das mentiras

Por Tai Nalon

10 de maio de 2024, 13h22

Aviso: este texto é uma análise e foi publicado originalmente na newsletter O Digital Disfuncional.


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Deveria estar mais do que claro, a esta altura do campeonato, que qualquer esforço individual de contenção de desinformação e ódio derivados de tragédias é, no mínimo, ingênuo. Inócuo, talvez. Desinteressado também. Na verdade, integramos uma estrutura global transacional em que ter razão, independentemente dos fatos, tem valor e gera prazer; mas os fatos em si, não. Este texto não dá dicas de como mitigar o problema porque não trabalhamos na seção de autoajuda.

Na TV, jornalistas e especialistas em desinformação indicam a necessidade de o indivíduo tomar precauções para não cair em golpes e mentiras. Aos Fatos também publicou seu manual para esse fim. Repórteres e produtores de outros veículos me perguntam conselhos sobre como não cair em fake news, num comportamento que remete aos piores dias de 2018, de 2020 e de 2022. Estamos em 2024 e as perguntas, assim como as respostas possíveis, pouco evoluem.

Eu não sei como conter o fluxo de desinformação em nível industrial que estamos novamente presenciando. Não por falta de conhecimento, mas porque não se trata apenas de um problema inerente à qualidade da informação. O problema não é duvidar das trocentas publicações que rolam na timeline todo dia, deixar de compartilhá-las todas, tampouco checá-las uma a uma. A vida de ninguém, nem do mais diligente jornalista, resume-se a conferir a veracidade de toda barbaridade que aparece no feed.

Para isso, há tempos imemoriais — soterrada em terabytes de lixo tecnológico, dancinhas e teorias da conspiração —, existia a ideia do argumento de autoridade. O jornalismo, assim como a ciência e demais atividades especializadas, servia para diminuir a distância entre a informação qualificada e pessoas que preferiam dedicar seu tempo a atividades mais prazerosas do que conversar com fontes e cálculos matemáticos. Mais do que isso: estar de posse de determinadas informações aproximava a sociedade da política, o que ajudava a qualificar as decisões de quem estava no poder.

Isso acabou. A plataformização da vida — e não apenas do jornalismo ou da informação — criou um sistema de recompensas que media absolutamente todas as atividades nas quais nos engajamos ao longo de um dia. O cartão de crédito dá cashback, o like na foto libera serotonina, o aplicativo de treino de corrida desbloqueia medalhas e dicas de rendimento, o aplicativo de comida dá créditos para pedir mais comida, o serviço de streaming traz entretenimento. A compreensão sobre os fatos, bom, ela causa dor de cabeça, exaustão e sensação de impotência.

Nesta quarta-feira (8), a equipe da MetSul publicou no ex-Twitter um desabafo a respeito da crítica de pessoas sobre o fato de um serviço de meteorologia só trazer más notícias para onde está acontecendo um desastre meteorológico: “A mesma aflição sobre o amanhã de vocês é a nossa. Com o agravante que, pelo conhecimento antecipado dos fenômenos, temos ciência antes de situações de desastre”. É absurdo que a vida-cliente transacional das plataformas exija entretenimento dos fatos, das nuvens e do sol que teima em não brilhar.

A estrutura das redes cria uma ilusão de proximidade do usuário com autoridades. Ali se compram roupas, comida, maquiagem, games — por que não uma ou duas agendas políticas. É dever das plataformas dizer que não é assim que funciona: as ansiedades causadas pela diminuição do Estado, pela ausência de segurança pública, pelo achatamento das aposentadorias, pela burocracia do seguro-desemprego, pela falta de remédio na Farmácia Popular, elas não são sanadas pela presença desmediada, eivada de todos os mais problemáticos conceitos de liberdade de expressão, da autoridade local e suas palavras de ordem nas redes.

O governador de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL), publicou um vídeo reclamando de um caminhão da Defesa Civil de seu estado ter sido multado ao levar doações para o vizinho. A mídia foi usada em redes e aplicativos de mensagem para endossar a falsa alegação de que haveria uma ação coordenada de seus opositores políticos para impedir a chegada de auxílio aos afetados pelo devastação. A ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) publicou uma nota afirmando que veículos parados não foram impedidos de seguir viagem, e que quaisquer multas seriam anuladas. A conspiração, entretanto, já estava montada.

E não estava montada porque um ou outro vídeo com evidências anedóticas incentivavam usuários de redes sociais a comprar a parte pelo todo. É porque as plataformas operam dessa maneira há mais de uma década, liberadas de acrescentar contexto aos assuntos importantes e aos desimportantes, como se tivessem igual valor. Igual ao vídeo do governador — que instrumentalizou sua autoridade para dar legitimidade aos relatos de (nem tão) anônimos operadores do caos —, havia vários outros que promoviam pânico social em cima de percepções também anedóticas de desassistência generalizada e escassez. Influenciadores atacam o Estado ao reclamar para si a autoridade que o próprio governador diluiu nas redes.

Estamos vivendo algo próximo do que Naomi Klein classifica como “capitalismo de desastre” em seu livro “A Doutrina do Choque”. À luz do impacto e da reconstrução pós-Katrina, no sul dos Estados Unidos, ela narra as vantagens que grandes empresas tiram de situações de catástrofe para lucrar. O que ocorre aqui não é algo sem precedente.

Enquanto não se qualificar a informação que circula nas plataformas digitais, desde a propaganda pura e simples até o discurso extremista, estaremos em um grande shopping center de insanidades. Não pode o ódio dessas pessoas chegar tão facilmente às vítimas das enchentes enquanto as soluções fraquejam. A retórica do caos — a falsa impressão de que a ajuda não vem, a ideia errada de que ninguém se importa e que o Estado não presta — não pode sobrepor-se aos problemas reais do mundo — a emergência climática, o crescente número de deslocados do clima e as ofertas de socorro.

Socorro ou desassistência não são produtos a serem vendidos, e endossar as patacoadas de políticos nas redes não deve ser confundido com exercício de cidadania.

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