Como sites driblam a Justiça usando perfis falsos ao espalhar desinformação

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O uso de perfis com fotos e informações falsas para espalhar desinformação nas redes, estratégia comum a sites como o Jornal da Cidade Online, o República de Curitiba.net e o Gazeta Informante, pode gerar problemas com a Justiça pelo uso indevido de imagem, de falsa identidade e até injúria, calúnia ou difamação. Porém, o anonimato e a falta de leis específicas dificultam — e, em alguns casos, até impossibilitam — que os responsáveis por esses perfis sejam punidos judicialmente, de acordo com especialistas em direito penal, civil, eleitoral, digital e constitucional, além de pesquisadores de novas tecnologias e internet ouvidos por Aos Fatos.

Com poucas restrições e possibilidades de punição, os perfis falsos funcionam como centros de distribuição de desinformação. De acordo com o advogado e pesquisador de políticas públicas de tecnologia do Internet Lab, Francisco Cruz, eles ajudam a inocular conteúdos extremistas nas redes. “O que acontece, então, é que a informação fermenta para que outros comprem”. Aos poucos, ele afirma, os conteúdos passam a ser compartilhados por pessoas reais que acreditam no que foi dito mesmo sem saber exatamente por quem.

A advogada especialista em direito digital Flávia Penido concorda. Para ela, esses perfis atuam como catalisadores, permitindo que a desinformação circule de uma maneira muito mais rápida; “é por isso que as atitudes das plataformas, como Twitter e Facebook, precisam ser efetivas, em consonância com a legislação e com o poder público”.

Anônimos ou robôs. Pesquisadora do ITS Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro) e especialista em direito constitucional, Priscilla Silva salienta que, nesses casos, há dois tipos de perfis a serem considerados: os bots (contas automatizadas), que fazem com que a desinformação circule mais rápido, e contas que emulam pessoas reais para dar a impressão de que têm domínio ou influência sobre determinado assunto. Ambos são moralmente condenáveis.

A primeira irregularidade está prevista no artigo 5º da Constituição Federal: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. De acordo com a professora de direito civil da UnB (Universidade de Brasília) Ana Frazão, o trecho constitucional pode ser usado em decisões judiciais para condenar o uso de perfis falsos para divulgar desinformação em sites na internet.

O procurador do MPF (Ministério Público Federal) Wellington Saraiva corrobora a afirmação em artigo e diz que o usuário pode "ser responsabilizado em duas esferas: a criminal, por crime contra a honra, e a civil, para ser condenado a pagar indenização às pessoas atingidas”.

Porém, há controvérsias sobre essa interpretação. Para a pesquisadora Priscilla Silva, a criação do perfil em si não viola a Constituição: “algumas pessoas fazem confusão com o artigo que veda o anonimato, mas esse não é o problema. De acordo com a jurisprudência do STJ [Superior Tribunal de Justiça], se a pessoa que usa o perfil falso dá condições à plataforma para ser identificada, não há problema”.

Cruz ressalta que o uso de pseudônimo é protegido pela legislação brasileira, desde que a conduta adotada pelo usuário não viole a liberdade de expressão. “Existem situações em que a identificação imediata daquele que está falando pode colocar a pessoa em perigo. É por isso que se permite pseudônimo. Isso não significa que a pessoa não tem que pagar pelo que falou.”

No caso do República de Curitiba.net, por exemplo, cujos repórteres Carla Ribeiro e Marco Aurélio Moretti não têm informações disponíveis, ele crê ser difícil enquadrar a prática judicialmente, pois o site poderia alegar uso de pseudônimos para "proteger" a integridade dos autores. O fato de utilizarem apelidos, segundo ele, não consistiria propriamente em um delito.

Uso de imagem. Caso mais grave, no entanto, é o uso da imagem de outra pessoa em um perfil falso. A pesquisadora Priscilla Silva ressalta que, se o usuário usa fotos de uma pessoa morta ou viva pode incorrer no delito de falsa identidade, previsto no Código Penal. “Isso vai depender, no entanto, de a família ou a pessoa atingida entrar com um processo na Justiça”, diz.

De acordo com a lei, o crime caracteriza-se por “atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa identidade para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a outrem”. As penas previstas vão de detenção de três meses a um ano ou multa. Punições mais graves também podem ser aplicadas, a depender das infrações cometidas.

Para Cruz, o usuário incorre na prática de falsa identidade no momento em que usa a foto de outra pessoa. No República de Curitiba.net, o editor, que se denominava Lucas Pianovski, utilizava como fotos de perfil no site e em sua conta do Instagram imagens do georgiano Archil Asatiani. Também poderia ser considerado o exemplo do perfil da jornalista Amanda Acosta, do Jornal da Cidade Online, com imagens da escritora Thalita Rebouças.

A advogada Daniella Meggiolaro, presidente da Comissão de Direito Penal da OAB de São Paulo, ressalta que o enquadramento desse tipo de caso no delito de falsa identidade depende da vantagem obtida pelo usuário ao usar a foto de outra pessoa ao divulgar desinformação. “Se não for para ter qualquer tipo de vantagem, não pode ser considerado crime”.

Sob a ótica do direito civil, o República de Curitiba.net e o Jornal da Cidade Online também cometeram violações do direito de imagem de Archil Asatiani e Thalita Rebouças, de acordo com Ana Frazão, especialista em direito civil e professora da UnB (Universidade de Brasília). A penalidade prevista para esse tipo de delito seria o pagamento de uma indenização à pessoa lesada.

O direito de imagem é violado no uso de fotos de bancos de imagens, como é o caso do repórter do Jornal da Cidade Online Otto Dantas. A advogada Flávia Penido afirma que, mesmo que a imagem tenha sido comprada, não há autorização para que seja usada para falsificar a identidade. “Você tem duas questões: o direito de imagem do fotógrafo e o direito de imagem do fotografado. Muito provavelmente, o banco de imagens não deu direito a essa utilização, então você tem, além de violação de direito autoral, violação de direito de imagem”.

Vácuo legal. A falta de uma lei específica para lidar com a disseminação de desinformação nas redes por perfis falsos dificulta o enquadramento da prática na esfera criminal. Dentre os especialistas consultados por Aos Fatos, foi unânime a afirmação de que é necessário analisar caso a caso para definir qual foi a infração cometida.

Pela análise dos conteúdos, os advogados e pesquisadores consideram possível caracterizar as condutas em crimes contra a honra: calúnia, injúria e difamação. As penas, de maneira geral, são detenção e multa.

A pessoa que for vítima de alguma informação falsa divulgada por esses perfis também pode ajuizar um processo por danos morais. Incorre no delito quem ofende a honra, a saúde a imagem ou a liberdade de uma pessoa. A pena mais comum é o pagamento de uma indenização à vítima, que deve ser responsável por entrar com o processo na Justiça.

Esse é o caso do Jornal da Cidade Online, processado por seis desembargadores do Rio de Janeiro por conta de uma matéria assinada pela conta falsa da repórter Amanda Acosta. De acordo com o texto publicado no site, os magistrados teriam se beneficiado de favores obtidos de Adriana Ancelmo, esposa do ex-governador do Rio Sérgio Cabral. Até agora, o site perdeu dois processos: um que resultou no pagamento de uma indenização R$ 150 mil para Flávio Marcelo de Azevedo Horta Fernandes e outra que gerou a dívida de R$ 120 mil com Inês da Trindade Chaves de Mello.

Para que essas pessoas sejam efetivamente punidas, no entanto, é necessário encontrá-las. Essa é uma das maiores dificuldades de se combater esse tipo de delito. De acordo com o advogado especialista em direito eleitoral Alberto Rollo, uma solução, caso o autor não seja encontrado, seria punir o beneficiário da mensagem, ou seja, o que criou o perfil falso ou o que autorizou sua criação para obter benefício pessoal. No caso de um perfil relacionado a um site de notícias, caso dos portais investigados por Aos Fatos, pode-se punir a empresa.

Domínio protegido. Outro problema relacionado à identificação é o uso de estratégias digitais para manter o anonimato. A hospedagem de sites fora do Brasil evita que os servidores sejam obrigados a prover os dados de identificação do responsável pelo portal. Mascarando o uso de IP, também é possível burlar esse método de identificação.

As informações sobre o registro do domínio do site República de Curitiba.net., por exemplo, estão protegidas, segundo consta na plataforma WhoIs, que mostra dados como o nome do responsável por um site, seu e-mail e sua localização. Os administradores podem ocultar tais informações comprando um serviço de proteção oferecido por empresas que hospedam páginas na internet.

Um estudo da Universidade de Cambridge sobre o abuso de serviços de proteção de domínio lista as várias possibilidades que levam um usuário a contratar esse tipo de serviço: “Alguns temem receber spam em seus e-mails cadastrados, outros desejam evitar que suas opiniões radicais nas redes tenham impacto na vida real, outros registram domínios para atividades criminosas e desejam evitar ser identificados pela Justiça”.

Apesar de dificultar o acesso ao responsável pelo portal, o serviço não é ilegal, de acordo com os especialistas consultados por Aos Fatos. Isso porque os dados não são apagados: só deixam de ser apresentados ao público geral. Segundo Cruz, do Internet Lab, não há problemas em contratar o serviço, desde que o usuário forneça dados e documentos verdadeiros que permitam que seja encontrado, caso necessário.

Assim, para identificar o responsável por um site que dissemina desinformação, o primeiro passo seria verificar qual é a empresa que realiza sua hospedagem. Os caminhos para realizar esse processo de identificação, no entanto, podem ser tortuosos na Justiça, especialmente se o provedor estiver instalado fora do Brasil.

“A internet é global, o direito é nacional e nem sempre a gente vai ter uma resposta satisfatória”, afirma Cruz.

A proteção de domínios só é permitida para sites que não terminem com a extensão .br. Para estes, a contratação viola as regras do Registro.br, que gerencia dados de portais com essa extensão. Por isso, o Jornal da Cidade Online não poderia ter domínio protegido, mas o República de Curitiba.net, sim.

Redes sociais. Fora da alçada da Justiça, a criação de perfis falsos em redes sociais como Facebook, Twitter e Instagram viola os termos e condições de uso das plataformas, com as quais o usuário concorda antes de criar sua conta. O desrespeito às regras de conduta dessas redes pode fazer com que o perfil seja excluído.

Em seus termos de serviço, o Facebook detalha que, para usufruir da plataforma, é necessário “usar o mesmo nome que usa em sua vida cotidiana”, “fornecer informações precisas sobre você” e “criar somente uma conta (sua própria) e usar sua linha do tempo para fins pessoais”. Isso significa que, ao criar perfis apócrifos para disseminar conteúdos do Jornal da Cidade Online na rede social, os repórteres Otto Dantas e Amanda Acosta estão violando os termos de uso.

O Instagram também não permite que o usuário forneça informações precisas ou se passe por outras pessoas. Ou seja: ao criar um perfil na rede com fotos de Archil Asatiani, o editor do República de Curitiba.net também viola as regras da plataforma.

A criação dos perfis falsos seria suficiente para que o Instagram e o Facebook deletassem os perfis de Otto, Amanda e Lucas. Apesar de a medida ser aplicada em algumas situações, ela não vem sendo efetiva para combater esse tipo de problema, segundo Flávia Penido; “não adianta a rede social desativar a conta de uma pessoa e manter a conta substituta, coisa que a gente sabe que acontece, porque isso não vai interromper a desinformação”.

Tanto o Facebook quanto o Instagram proíbem que o usuário crie uma conta se já foi anteriormente banido pela plataforma. Basta, no entanto, um endereço de e-mail diferente para que a regra seja burlada.

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