Andréa Rêgo Barros/PCR

🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Agosto de 2020. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Como se calcula o número de recuperados da Covid-19 e por que o dado não indica sucesso contra a pandemia

Por Amanda Ribeiro

12 de agosto de 2020, 18h10

"Todas as vidas importam", escreveu o presidente Jair Bolsonaro em sua conta no Twitter na última quarta-feira (11) ao compartilhar um vídeo institucional que destacava os “quase três milhões de vidas salvas ou em recuperação” da Covid-19. Propagandeado pelo governo em momentos de agravamento da pandemia do novo coronavírus, o alto número de recuperados não é uma consequência positiva de medidas adotadas contra o contágio. Segundo especialistas consultados pelo Aos Fatos, ele apenas reafirma, na verdade, que o país apresenta um alto número de infectados.

Isso porque a taxa de mortalidade da doença gira hoje em torno de 2% a 4%, o que faz com que seja normal que um país com muitos casos de Covid-19 tenha também muitos recuperados. É importante ressaltar, ainda, que o dado não deve ser confundido com cura. Ele computa os pacientes que não transmitem mais o vírus e tiveram alta do isolamento total, mas ainda não se sabe, por exemplo, se essas pessoas estão imunes a uma nova infecção e quais as sequelas que podem surgir a médio e longo prazos.

Ainda assim, entre governistas, o chamado “Placar da Vida” voltou a ganhar destaque como uma notícia positiva na última semana após o país registrar mais de 100 mil mortos pela doença. Desde então, além de Bolsonaro, figuras como o vice-presidente, Hamilton Mourão e o senador e filho do presidente, Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), também veicularam o número em suas redes sociais.

Abaixo, Aos Fatos responde quatro perguntas sobre a divulgação de dados sobre recuperados no Brasil e a terminologia adotada amplamente pelo governo federal.

1. Quem o governo contabiliza como recuperado da Covid-19?

2. Por que um alto número de recuperados não é sinal de controle da pandemia?

3. Por que a comparação com outros países é falha?

4. Como o governo usa os dados de recuperados?


Quem o governo contabiliza como recuperado da Covid-19?

O Ministério da Saúde contabiliza como recuperados da Covid-19 pacientes que, segundo critérios estabelecidos pela OMS (Organização Mundial da Saúde), não transmitem mais o vírus e podem ser liberados do isolamento irrestrito. Segundo a entidade, essa alta pode ser dada até a pacientes que ainda apresentam resultado positivo no exame RT-PCR, que identifica o material genético do vírus, mas não têm mais sintomas da doença. Ou seja, o termo recuperado não é sinônimo de cura.

Em janeiro, a OMS recomendou que o paciente estivesse clinicamente recuperado (sem sintomas) e apresentasse resultados negativos em dois testes RT-PCR para deixar o isolamento total. Porém, com o avanço da pandemia e a dificuldade de muitos países de processar um grande volume de testes, em maio esse critério foi alterado e passou-se a recomendar que assintomáticos fiquem dez dias isolados após o teste positivo do novo coronavírus; já os sintomáticos devem se isolar por dez dias após o início dos sinais da doença e mais três dias após a recuperação clínica.

Segundo a OMS, a mudança foi baseada em "descobertas recentes de que os pacientes cujos sintomas foram resolvidos ainda podem testar positivo para o vírus Covid-19 (SARS-CoV-2) por RT-PCR por muitas semanas. Apesar do resultado positivo do teste, esses pacientes provavelmente não são infecciosos e, portanto, não são capazes de transmitir o vírus a outra pessoa".

Em sua nota metodológica sobre o que considera “recuperado”, o Ministério da Saúde resgata as recomendações da OMS e argumenta que, em muitos países, não tem sido possível aplicar o critério baseado em testes laboratoriais para determinar que uma pessoa está recuperada. De acordo com a pasta, o número que tem propagado é uma estimativa obtida por meio de um cálculo que considera: 1) os números de casos e de óbitos reportados pelas Secretarias de Saúde estaduais; 2) o número de pacientes hospitalizados registrados no Sivep Gripe (Sistema de Vigilância Epidemiológica da Gripe).

Na definição do ministério são somados os pacientes que foram hospitalizados e tiveram alta de acordo com o Sivep Gripe e os casos leves com início dos sintomas há mais de 14 dias, que não estão hospitalizados nem morreram. Esses dados são computados pelos estados e enviados ao Ministério da Saúde, que publica um compilado nacional.

Para o epidemiologista da USP (Universidade de São Paulo) Otavio Ranzani, não seria adequado utilizar o termo "recuperados": “podemos falar de doentes que já passaram do risco de complicações e óbito da fase aguda”.

A publicização do número de recuperados também tem gerado o equívoco de considerar que essas pessoas estão curadas definitivamente da Covid-19. O próprio Ministério da Saúde reforça a confusão uma vez que usa em textos de seu site os termos “curados” e “recuperados” como sinônimos.

No caso da Covid-19, ainda não se sabe se é possível contraí-la mais de uma vez e estudos recentes indicam que até os pacientes considerados curados desenvolvem complicações que ultrapassam o tempo de recuperação da fase aguda da infecção. De acordo com Alain Labrique, epidemiologista e professor da Escola de Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, por exemplo, estão sendo observadas sequelas pulmonares e cardíacas diversas em pessoas que tiveram a doença.


Por que um alto número de recuperados não é sinal de controle da pandemia?

Especialistas consultados por Aos Fatos definiram como simplista e incompleta a estratégia do governo de apresentar dados sobre o número de recuperados para informar a população da situação da pandemia no país. O dado isolado nem sequer atenua a sua gravidade, uma vez que apenas indica que o país teve um grande número de infectados.

Apesar de a taxa de mortalidade da Covid-19 variar dependendo da idade e da existência de comorbidades, mundialmente ela gira de 2% a 4%, segundo dados compilados pelo Our World in Data da Universidade de Oxford. Em comparação com outras doenças causadas por coronavírus, como a Sars e a Mers, com taxas de mortalidade que giram em torno de 15% e 34%. Por isso, é normal que um país com grande número de casos também apresente um alto número de recuperados.

Em nota enviada ao Aos Fatos, o Ministério da Saúde afirmou que, de acordo com recente inquérito epidemiológico divulgado, “é esperada uma cura superior a 98,5% da população para a Covid-19. A divulgação apenas dos casos acumulados de infectados causa a falsa impressão de que todos os pacientes ainda estão em atendimento, sendo que, na verdade, a maior parcela já está curada”.

Para Labrique, a escolha do uso de recuperados é uma estratégia política para apresentar "uma faceta positiva" da pandemia, mas que “não diz muito a respeito do que precisamos entender sobre ela”. A divulgação do número de recuperados não leva em conta, por exemplo, que a comunidade científica atualmente não sabe se uma pessoa que sobreviveu à doença cria imunidade para uma segunda infecção.

O pesquisador Marcelo Brandão avalia que o número pode ser útil quando analisado juntamente com outros dados para avaliar políticas de saúde de uma determinada região. Por exemplo, se em uma cidade o número de recuperados cai em relação ao número de casos ativos ao longo do tempo, ela provavelmente está com problemas no sistema de saúde e precisa de mais recursos e atenção das autoridades.

Dados mais relevantes. Os especialistas consultados por Aos Fatos destacam que, ainda que a informação de recuperados possa ser usada para mostrar a situação epidemiológica do novo coronavírus, dados de testagem são mais relevantes ao entender a efetividade das medidas de combate à Covid-19.

Taxas de testagem positiva baixas ajudariam a mostrar a eficácia de estratégias de saúde pública, como o rastreamento de contatos para a diminuição da transmissão da doença. “Quanto mais testes e menor a positividade, quer dizer que o serviço está buscando os casos ativamente, inclusive contatos, visando diminuir a transmissão”, afirmou Ranzani.

Os dados sobre exames, no entanto, esbarram em um problema que é a deficiência da testagem no Brasil — de acordo com dados do Ministério da Saúde do fim de junho, o país realizou 13,7 testes para cada 1.000 habitantes, mesmo contabilizando os chamados exames rápidos, apontados como menos eficazes no controle da pandemia.

Diferenças regionais. Há, ainda, outro problema a ser levado em consideração no dado nacional sobre recuperados: as diferenças de testagem em cada região. No fim de junho, o G1 publicou que, enquanto Minas Gerais fazia 155 testes para 100 mil habitantes, o Amapá batia a marca de 4.433 testes para cada 100 mil pessoas. Diferenças no número de casos confirmados geram, consequentemente, diferenças no número de recuperados em cada estado, já que, não se sabendo se uma pessoa está ou não com a doença, não há como determinar se ela está ou não recuperada.


Por que a comparação com outros países é falha?

O governo federal costuma propagandear o número de recuperados para destacar que suas medidas ante a pandemia têm dado bons resultados. Diversas vezes, o dado é destacado em comparação com os de outros países. Em tweet no dia 8 de julho, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que o Brasil era “um dos países que mais recupera infectados”.

Essa comparação, no entanto, é inviável por uma série de motivos. O principal deles é que nem todos os países usam a mesma definição de recuperados e alguns sequer têm uma estimativa nacional. Entre os 25 países com mais casos de Covid-19, dois não divulgam dados sobre recuperados: o Reino Unido e o Chile.

Na Alemanha, o RKI (Instituto Robert Koch), responsável pela prevenção e pelo controle de doenças no país, considera recuperados os casos leves com mais de três semanas sem evoluir para internação ou morte, prazo superior ao usado pelo Ministério da Saúde.

Nos EUA não há um dado nacional, pois os estados têm critérios diferentes para definir recuperados. O CDC (Center for Disease Control) lançou apenas diretrizes de segurança para que um infectado saia do isolamento, que dependem da gravidade da doença.

A base de dados da Universidade Johns Hopkins, que agrega informações sobre a Covid-19 em diversos países, se baseia em estimativas fornecidas por governos locais, que podem adotar metodologias diferentes. “São estimativas feitas pelos países com base em relatos da mídia local e podem ser substancialmente inferiores aos reais”, afirmou Douglas Donovan, porta-voz da universidade, em entrevista à CNN no mês de abril.

Outro fator que impede a comparação internacional de recuperados é a diferença nas curvas de infecção. Enquanto o Brasil, por exemplo, ainda não registrou uma diminuição consistente no número de casos e óbitos por dia pela doença – o que significa que também um aumento constante no número de recuperados –, outros países já atingiram outro momento da pandemia – com queda no número de casos e consequentemente no crescimento do grupo de recuperados, explica Marcelo Brandão.

Além disso o número absoluto de recuperados não considera o tamanho populacional. “A Inglaterra, por exemplo, está em curva descendente. A população deles é menor do que a do Sudeste do Brasil. Todos os contaminados da Grã-Bretanha cabem em duas cidades do interior de São Paulo. Você está comparando universos diferentes”, diz Brandão.

Por fim, a além da diferença nas definições de recuperados e no tamanho das populações, a taxa de testagem, novamente, é um complicador para as comparações. Países com menor taxa de testagem podem ter subnotificação do número de recuperados explicou ao Aos Fatos o epidemiologista Alain Labrique.


Como o governo usa os dados de recuperados?

O número de recuperados só começou a ser apresentado pelo governo com o agravamento da pandemia do novo coronavírus. Em 19 de abril, quando o Brasil superou a marca de mil mortes confirmadas em um único dia, a Secom (Secretaria Especial de Comunicação Social) passou a divulgar o número nas redes sociais chamando o dado de "placar da vida".

Na época, o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, afirmou que havia uma "cobertura maciça de fatos negativos" da imprensa. A partir de 21 de abril, o Ministério da Saúde também incluiu o número de recuperados no boletim diário sobre o novo coronavírus divulgado no site da pasta.

Após o Brasil superar a marca de 10 mil mortos, o Ministério da Saúde passou a mencionar o dado de recuperados no título do boletim diário divulgado sobre Covid-19 — até 10 de maio, constava apenas o número de casos e o de óbitos.

Desde 18 de maio, três dias depois da saída de Nelson Teich da pasta, o título do boletim diário sobre Covid-19 passou citar apenas o número de recuperados. O dado também foi incluído no Painel Coronavírus, plataforma ministerial com o balanço detalhado da pandemia. Até 17 de maio, não havia nenhuma menção ao número na plataforma, como é possível ver na versão da página salva na ferramenta WayBackMachine.

Em 5 de junho, quando o Brasil registrou 35 mil mortos de Covid-19, o Painel Coronavírus saiu do ar. No dia seguinte, o site passou a dar mais destaque ao dado de recuperados, ocultando informações consolidadas sobre casos e mortes pela doença.

Atualmente, os dados de recuperados aparecem em destaque, com fonte maior, sobre um quadro colorido na primeira tela. Logo abaixo, aparecem os casos em acompanhamento, também conhecidos como casos ativos — notificados nos últimos 14 dias pelas secretarias estaduais de Saúde e que não receberam alta ou evoluíram para óbito. Ao lado, com menos destaque, estão informações sobre o total de casos acumulados, os novos casos registrados nas últimas 24 horas e o número de óbitos.

Colaborou Ana Rita Cunha.

Referências:

1. UOL (Fontes 1, 2, 3, 4 e 5)
2. OMS (Fontes 1, 2 e 3)
3. Ministério da Saúde (Fontes 1, 2, 3, 4, 5 e 6)
4. BBC Brasil
5. Our World in Data (Fontes 1 e 2)
6. University of Minnesota
7. G1
8. The Guardian
9. CDC
10. Johns Hopkins
11. Dallas News
12. CNN
13. Folha de S.Paulo
14. Poder 360

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