Após desinformação, Ministério da Saúde suspende nota sobre aborto legal que apenas reforçava lei de 1940

Por Luiz Fernando Menezes

29 de fevereiro de 2024, 18h29

Após ataques e desinformação sobre o tema circularem nas redes, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, suspendeu nesta quinta-feira (29) uma nota técnica sobre aborto legal que havia sido editada na véspera (28). Entre outros pontos, o texto defendia que não há limite gestacional para a interrupção da gravidez nos casos previstos em lei.

A pasta comandada por Nísia informou que a decisão foi tomada porque “o documento não passou por todas as esferas necessárias do Ministério da Saúde e nem pela consultoria jurídica”.

A suspensão, no entanto, contradiz um posicionamento do próprio ministério que, em setembro de 2023, publicou uma nota técnica que dizia que impor “às vítimas de violência sexual que buscam os serviços de saúde com gravidezes mais avançadas (acima de 22 semanas) a obrigatoriedade de manter a gravidez até o término para posterior doação” representaria uma “grave violação de direitos humanos”.

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A decisão da ministra também aumenta a confusão em torno do tema. Logo que a nota técnica foi publicada, peças desinformativas surgiram para sugerir que o governo Lula (PT) estaria “liberando o aborto até os nove meses de gestação”, o que é falso.

Especialistas consultadas pelo Aos Fatos apontam que o documento apenas esclarecia o que já é previsto pela lei desde 1940. O artigo 128 do Código Penal determina que o aborto é permitido nos casos em que a gravidez traz risco de vida à mãe ou foi resultado de um estupro.

O STF (Supremo Tribunal Federal), em 2012, decidiu também que as gestantes poderiam interromper a gravidez em situações em que o bebê é anencéfalo. Em nenhuma das duas hipóteses há um prazo máximo para a realização do procedimento.

“Essa nota [do Ministério da Saúde] apenas reforça o que já está previsto no Código Penal desde 1940. Não há inovação. Não há no Código Penal, que é a única lei sobre aborto, limite de tempo gestacional para realização do aborto legal nos casos limítrofes em que são autorizados no país hoje”, explicou ao Aos Fatos Gabriela Rondon, pesquisadora e advogada da Anis Instituto de Bioética, organização que advoga pelos direitos reprodutivos.

“Não há [na nota suspensa] ampliação das situações em que o aborto é legalmente permitido. A lei e a ciência não prevêem limite de idade gestacional", disse ao Aos Fatos Marinella Afonso de Almeida, especialista em direito médico do escritório Marzagão e Balaró Advogados.

A reportagem questionou ao Ministério da Saúde se a suspensão não contradiz o posicionamento adotado pela pasta no ano passado. Até a publicação deste texto, no entanto, não houve retorno.

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EXISTE LIMITE DE 22 SEMANAS?

Algumas publicações que criticavam o documento suspenso pelo Ministério da Saúde alegavam que uma nota técnica de 2022 — publicada, portanto, no governo Bolsonaro (PL) — teria definido como limite máximo para a realização do aborto legal um limite de 22 semanas de gestação (cerca de cinco meses). Isso, no entanto, é uma informação incorreta.

Intitulado “Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento”, o documento de 2022 afirmava que “sob o ponto de vista médico, não há sentido clínico na realização de abortamento com excludente de ilicitude em gestações que ultrapassem 22 semanas”. Era recomendado que, passado esse limite, a conduta deveria ser a “manutenção da gravidez com eventual doação do bebê após o nascimento”.

Notas técnicas do Ministério da Saúde não têm força de lei. Juliana Cesário Alvim, professora da Faculdade de Direito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e da Central European University, explicou que a nota editada durante o governo Bolsonaro violava a legislação, já que nenhuma legislação anterior estabelecia as condições que o texto buscava impor.

Vale ressaltar que, na época em que foi publicado, o manual foi alvo de críticas de diversas entidades. Uma nota conjunta assinada por 103 organizações ligadas à ciência e à defesa dos direitos reprodutivos, por exemplo, afirmou que “na lei brasileira não há limitação de idade gestacional à realização do aborto legal, não cabendo ao MS criar restrições não previstas em lei, sob pena de gerar omissão de socorro”. As entidades apontaram ainda que a Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) possui uma diretriz para o abortamento acima das 22 semanas.

A nota do governo Bolsonaro citava recomendações da Figo (Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia) para embasar seus argumentos, mas omitia que a organização possui recomendações para a indução de aborto em gestações acima de 22 semanas (veja abaixo).

Documento que dizia que abortos não poderiam ser feitos após 22 semanas trazia recomendações internacionais para interrupções de gestações de mais de 28 semanas
FIGO. Federação internacional prevê métodos de interrupção de gravidez para mais de 28 semanas de gestação (Reprodução/MS)

O manual foi derrubado em 2023 por meio da portaria nº 13. Meses depois, em meio ao julgamento da ADPF 989, que pede que o STF assegure o aborto nas hipóteses permitidas no Código Penal, o Ministério publicou o posicionamento que afirma que não há na lei limite gestacional para a interrupção de gravidez: “Os autores [da nota de 2022] construíram uma transposição artificial que induz os profissionais ao erro de considerar que o código penal brasileiro estabelece limites de idade gestacional para a realização do aborto legal, o que é inverídico e não condiz com o atual ordenamento jurídico sobre o tema.”

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Cesário Alvim ressalta que o Ministério da Saúde possui uma norma técnica desde 2005 — que foi atualizada em 2014 — que classifica o abortamento como “interrupção da gravidez até a 20ª-22ª semana e com produto da concepção pesando menos que 500g”. Esse trecho é interpretado por alguns como uma possível limitação ao procedimento, mas a professora discorda: a norma traz a definição de aborto em termos médicos, mas é incompatível com a legislação vigente.

A posição vai ao encontro de declaração dada ao jornal O Globo pela coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Rio, Flávia Nascimento, quando uma menina de 11 anos teve o direito do aborto recusado porque sua gestação foi identificada já com 22 semanas: “Esses limites se referem à forma do procedimento, e não podem ser usados como limitação do direito. Até porque uma norma técnica não é superior a uma lei. O profissional de saúde tem a obrigação de assegurar o direito da mulher”.

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