O Supremo Tribunal Federal volta a analisar na quarta-feira (21) um recurso que pode alterar a forma como o Judiciário interpreta o porte de drogas para uso pessoal no Brasil. A partir do caso de um homem condenado em 2011 por portar 3 gramas de maconha, os ministros analisam a constitucionalidade de um artigo da Lei de Drogas que considera crime transportar entorpecentes, mesmo que não seja com a intenção de praticar tráfico.
Nas redes, usuários apontam que o julgamento pode resultar na legalização das drogas — o que é mentira, dada a diferença entre “descriminalizar” e “legalizar” no âmbito jurídico.
- A depender do veredicto, o porte de drogas para consumo pessoal pode deixar de ser tratado como crime, o que não significa que pessoas que forem abordadas com entorpecentes não possam ser alvo de medidas administrativas, como multas e advertências;
- A decisão pode ter impacto significativo no sistema prisional: pesquisa do Ipea estima que, caso o voto do ministro Luís Roberto Barroso seja seguido pela maioria do tribunal, cerca de 27% dos condenados por tráfico de maconha podem ser absolvidos — os que portavam até 25 gramas da droga no momento do flagrante —, porque deixariam de ser considerados traficantes e passariam à condição de usuários;
- Não está em pauta a discussão sobre o tráfico de drogas, que continuará sendo crime independentemente do resultado.
“A falta de clareza na diferenciação entre usuários e traficantes pode dificultar a implementação de políticas efetivas de redução de danos”, explica o médico Luís Fernando Tófoli, professor do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Unicamp e pesquisador de políticas públicas de drogas.
O Aos Fatos conversou com especialistas do direito e da saúde para destrinchar o que está em debate no julgamento do STF e também para explorar quais são os efeitos indesejáveis da legislação atual.
- O que diz a lei brasileira sobre o porte e o consumo de drogas?
- Quais são os problemas da lei atual?
- O que está sendo julgado pelo STF?
- O julgamento do STF pode legalizar as drogas no país?
1. O que diz a lei brasileira sobre o porte e o consumo de drogas?
Sancionada em 2006, no segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a Lei de Drogas substituiu a Lei de Tóxicos, em vigor desde a ditadura civil-militar (1964–85). Ao contrário da norma anterior, que previa a detenção e a possibilidade de internação compulsória de usuários, a lei atual não penaliza indivíduos pelo consumo, mas endureceu as punições por tráfico:
- Segundo o artigo 28, quem “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar” pode ser penalizado por meio de advertência, prestação de serviços à comunidade e medidas educativas. As punições chegam a cinco meses, prazo que pode ser dobrado em caso de reincidência. Não há pena de prisão prevista;
- Já o tráfico — atividade em que um indivíduo armazena ou produz drogas para fins de fornecimento a outras pessoas sem determinação legal — possui penas mais severas, que podem chegar a 20 anos, e incluem multas, detenção e reclusão.
Apesar de trazer previsões de punição diferentes para cada caso, a lei atual não possui critérios claros que permitam distinguir usuários e traficantes.
De acordo com o parágrafo segundo do artigo 28, “para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.
A legislação atual também prevê que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) determine quais entorpecentes são permitidos via prescrição médica, quais podem ser autorizados por meio de pedidos especiais e quais são proibidos. A agência já autorizou tanto pessoas físicas como empresas a importar produtos derivados da cannabis e até mesmo as flores in natura.
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2. Quais são os problemas da lei atual?
Usuário ou traficante. O ponto mais sensível da lei é justamente a ausência de parâmetros objetivos que diferenciam o usuário que porta entorpecentes para consumo pessoal do indivíduo que transporta a droga com o intuito de traficá-la. Para especialistas consultados pelo Aos Fatos, a situação abre margem para que juízes usem critérios discriminatórios de raça e classe social.
Além da forma de armazenamento, do local de apreensão e da quantidade, o advogado criminalista Rafael Paiva aponta que magistrados têm usado parâmetros subjetivos para distinguir o tráfico do consumo, como a apreensão de valores e de instrumentos de precisão, como balanças.
“A quantidade de droga, local em que foi encontrada e demais condições pessoais são usadas por juízes para manter determinadas pessoas presas, em tratamento distinto ao que se dispensa a casos similares, porém em bairros privilegiados da cidade. Isso é um problema grave à democratização do sistema de justiça”, completou o advogado criminalista Antonio Pedro Melchior.
Emilio Figueiredo, advogado na Rede Reforma, afirmou que essa falta de clareza acaba alimentando o punitivismo e promovendo um desequilíbrio entre a defesa e a polícia. “O Brasil não tem critérios a partir de decisões judiciais, cada juiz decide como quer”, diz.
“Há os que são garantistas e que adotam critérios mais abrangentes, e há os punitivistas, que não importa o que a defesa fala, o que importa é que a polícia disse que aquela pessoa é traficante e isso já se torna uma verdade absoluta”, conclui o advogado.
A questão também gera impactos à saúde pública. “Usuários de drogas podem ser relutantes em procurar ajuda ou tratamento por medo de serem classificados como traficantes”, afirmou o médico e professor da Unicamp Luís Fernando Tófoli, que pesquisa políticas públicas de drogas.
Crime sem pena. Ainda que um dos objetivos da Lei de Drogas tenha sido atenuar as punições contra usuários, o porte para consumo nunca deixou de ser crime. “O porte de entorpecente para uso pessoal é considerado um crime sem pena, o que é bastante estranho, se levarmos em conta a dogmática penal”, explicou o advogado Rafael Paiva.
Em março de 2022, a Segunda Turma do STF decidiu que um indivíduo não perde a condição de réu primário caso seja condenado por porte de drogas para consumo pessoal. A despenalização do consumo, aliada à falta de um parâmetro preciso que diferencie traficantes e usuários, gera um impasse jurídico que aumentou o número de encarceramentos.
O ministro Alexandre de Moraes comentou sobre essa questão na sabatina do Senado que precedeu sua aprovação para o STF em 2017. “Na lei [de drogas], em 2006, nós ficamos no meio do caminho e aqueles que antes eram tipificados como usuários acabaram passando a ser tipificados como traficantes, mesmo que com quantidades pequenas”, analisou.
Encarceramento. É fato que, após a aprovação da Lei de Drogas, o número de indivíduos condenados por tráfico cresceu. De acordo com dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais, em 2005, um ano antes da aprovação da norma, cerca de 12% da população prisional havia sido condenada por tráfico ou tráfico internacional de entorpecentes (32 mil dos 268 mil pesos). Em 2022, de acordo com a mesma base de dados, esse número saltou para 24% (201 mil dos 832 mil presos).
A legislação também endureceu a punição por tráfico: a pena mínima do crime, que era de três anos, passou a ser de cinco anos.
Pesquisa do NEV-USP (Núcleo de Estudos da Violência) publicada em 2011 apontou que a maior parte dos casos de prisão por tráfico analisados (70% delas) possuía como testemunha apenas a autoridade policial que efetuou a prisão. “Por mais experiente que seja o policial e levando em conta todo o conhecimento adquirido por ele, este policial é parte na ação e adota um posicionamento, sendo que seu testemunho sempre será no sentido de validar sua ação”, diz o estudo.
3. O que está sendo julgado pelo STF?
No caso concreto, o STF analisa um recurso apresentado pelo defensor público Leandro de Castro Gomes contra decisão do Judiciário paulista. Ele pede a absolvição de um homem de 50 anos que trabalhava como mecânico e foi flagrado com 3 gramas de maconha em um centro de detenção provisória em Diadema (SP), em 2009.
Na época, o homem foi condenado a dois meses de serviço comunitário com base no artigo 28 da Lei de Drogas, mas o defensor entendeu que a sentença se baseava em um dispositivo inconstitucional, porque violava os princípios da intimidade e da vida privada. Por outro lado, a PGR (Procuradoria-Geral da República) defendeu a constitucionalidade do artigo e a criminalização do porte de drogas para consumo próprio.
A partir do caso, os ministros analisam questões mais abrangentes: se um usuário de drogas gera, de fato, algum tipo de dano à sociedade para que sua conduta seja tipificada como crime, e se o Estado pode interferir na escolha de um indivíduo de consumir qualquer tipo de substância, dado o princípio constitucional da intimidade e da vida privada.
Como o caso tem repercussão geral, a decisão deve impactar o julgamento de todos os processos similares.
A discussão no Supremo teve início em 2015 e tem relatoria do ministro Gilmar Mendes. Confira abaixo uma linha do tempo sobre o caso:
- Primeiro a votar, Mendes deu razão ao recurso. Ele entendeu que a posse de quaisquer drogas para uso pessoal não deveria ser considerada crime, porque “fere o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas diversas manifestações” e “desrespeita a decisão da pessoa de colocar em risco a própria saúde”. De acordo com o ministro, no entanto, devem ser mantidas sanções como advertências e comparecimento a cursos educativos;
- Em agosto de 2015, Edson Fachin pediu vistas, mas declarou seu voto menos de um mês depois. O ministro defendeu a liberdade e a autonomia e a imposição de limites para a “interferência estatal sobre o indivíduo”. No entanto, segundo ele, deveria haver descriminalização apenas para o porte de maconha e os critérios de diferenciação entre usuários e traficantes seriam de responsabilidade do Congresso, cabendo ao Judiciário suprir o vácuo legal até a aprovação de uma norma;
- O voto de Fachin foi seguido por Luís Roberto Barroso, que também defendeu apenas a descriminalização do porte para consumo de maconha. Usando como base critérios adotados em outros países, o ministro defendeu que indivíduos que sejam encontrados com até 25 gramas ou seis plantas fêmeas de maconha sejam considerados usuários;
- Ainda em 2015, o julgamento voltou a ser paralisado após pedido de vistas do ministro Teori Zavascki (1948–2017), que morreu em um acidente aéreo antes de declarar o voto;
- Alexandre de Moraes, indicado por Michel Temer (MDB) para a vaga aberta após a morte de Teori, herdou o pedido de vista e liberou o recurso para julgamento em 2018. Desde então, o processo podia ser incluído na pauta do STF;
- A previsão é que a discussão seja retomada na quarta-feira (21).
4. O julgamento do STF pode legalizar as drogas no país?
Não. O julgamento no STF analisa a possibilidade de descriminalização do porte para consumo próprio, o que é muito diferente de afirmar que as drogas serão legalizadas no país. Em seu voto no julgamento, o ministro Luís Roberto Barroso explicou a diferença:
- Despenalizar significa deixar de punir com pena de prisão, mas punir com outras medidas. Nesse caso, a ação continua sendo crime. Esse é o status atual do artigo 28 da Lei de Drogas;
- Descriminalizar significa deixar de tratar como crime, mas não tornar lícito. Isso impede que haja sanções penais, mas permite sanções administrativas, como multas, apreensão e proibição de consumo em lugares públicos. Essa é a medida defendida pelos três ministros que já votaram;
- Já legalizar significa que o direito considera o fato como algo lícito, normal, e portanto não suscetível a qualquer tipo de sanção.
Caso o artigo 28 da Lei de Drogas seja considerado inconstitucional, portanto, o porte de drogas para consumo deixaria de ser criminalizado, o que significa que ainda poderia ser punido com medidas administrativas.
Os especialistas consultados pelo Aos Fatos apontam alguns possíveis impactos na saúde pública e no Judiciário, a depender dos resultados do julgamento.
- Com a descriminalização, o porte de drogas para uso pessoal deixaria de ser tratado como um problema do Judiciário e se tornaria exclusivamente uma questão de saúde pública, o que poderia gerar impactos positivos em iniciativas de redução de danos;
- Como menos pessoas seriam processadas e possivelmente presas por porte de drogas para consumo, haveria um redirecionamento dos recursos judiciais e policiais. “Poderia potencialmente aliviar o sistema judiciário e prisional brasileiro, que está sobrecarregado”, afirmou Luís Fernando Tófoli;
- A possível definição de critérios que diferenciam usuários e traficantes pode impactar casos em andamento. Pesquisa do Ipea estima que, caso o entendimento de Barroso seja seguido pela maioria, cerca de 27% dos condenados por tráfico de maconha podem ser absolvidos, porque foram flagrados com até 25 gramas da droga e deixariam de ser considerados traficantes.
Ainda que Gilmar Mendes tenha defendido a descriminalização do porte de todos os tipos de entorpecentes, Fachin e Barroso divergiram do relator neste ponto e deram votos para que o julgamento seja transformado em uma discussão específica sobre a maconha, citada na ação que deu origem à discussão. A depender dos votos dos outros ministros e da maioria formada, portanto, pode-se chegar a uma decisão apenas sobre a cannabis.
Emilio Figueiredo apontou que o afunilamento do julgamento faz com que os ministros se afastem do que é determinado no artigo 28. “A conduta não separa a substância. O artigo 28 da Lei de Drogas não separa as substâncias”, ele disse. “Não tem por que o julgamento separar as substâncias. O mesmo problema que tem a pessoa que é presa com maconha, tem a pessoa que é presa com cocaína, com crack, com LSD, com MDMA.”