Não é verdade que o governo Lula (PT) aprovou a distribuição para escolas do livro “O Avesso da Pele”, (Cia. das Letras, 2021), que tem sido acusado nas redes de tentar sexualizar crianças. A obra foi incluída no PNLD (Programa Nacional do Livro e do Material Didático) em 2022, durante a gestão Bolsonaro (PL), e é indicada para alunos do ensino médio. Cabe às escolas decidir quais livros do programa serão adquiridos. Documentos mostram que “O Avesso da Pele” foi encomendado pela própria autora da denúncia veiculada pelos posts enganosos, diretora de um colégio em Santa Cruz do Sul (RS).
As publicações que criticam o livro e culpam o atual governo pela distribuição circulam principalmente no WhatsApp (fale com a Fátima) e acumulavam centenas de compartilhamentos no Facebook até a tarde desta segunda-feira (4).
URGENTE Governo Lula distribui material pornográfico para escolas de ensino médio! A denúncia foi feita por uma professora de Santa Cruz do Sul-RS.
São enganosas as publicações que dizem que o livro “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório — descrito por uma diretora escolar de Santa Cruz do Sul (RS) como uma obra de “baixo calão” que tem como objetivo “sexualizar crianças” — estaria sendo distribuído para instituições de ensino por iniciativa do governo Lula. As peças se baseiam em duas premissas falsas:
- A obra em questão teve a inclusão aprovada no PNLD em setembro de 2022, ainda durante o governo de Jair Bolsonaro, e é indicada para alunos do ensino médio. A portaria foi assinada pelo então secretário de Educação Básica substituto, Gilson de Oliveira;
- A aprovação da obra pelo programa federal não obriga as escolas a recebê-la: cabe aos administradores das instituições de ensino determinar quais livros serão incluídos em seu acervo. No caso de “O Avesso da Pele”, a aquisição foi solicitada pela própria diretora que fez a denúncia.
“O Avesso da Pele” conta a história de um filho que resgata o passado da família após seu pai ser morto em uma abordagem policial. E aborda a marca do racismo em relacionamentos interraciais, usando inclusive expressões íntimas. Foi aprovado no edital do PNLD 2021, aberto em 2019.
Cada obra passa pela avaliação de dois professores sorteados em meio a uma banca de avaliadores formada por mestres e doutores que se inscreveram para participar ou foram indicados pelo MEC (Ministério da Educação) — na época, comandado por Ricardo Vélez Rodríguez. O livro deve ser aprovado pelos dois ou, em caso de empate, por mais um avaliador sorteado.
Segundo o próprio edital, são selecionadas “obras literárias em intenso diálogo com o pleno exercício da cidadania” que atendem a critérios como qualidade do texto e adequação temática. Isso significa que os avaliadores entenderam que “O Avesso da Pele” apresenta “linguagem adequada aos estudantes” e não tem “teor doutrinário ou panfletário”.
Depois de ser aprovado e incluído no programa, o livro ficou disponível no Guia Digital PNLD 2021, que enumera todas as obras disponíveis para as escolas de ensino médio. Cabe então a cada instituição de ensino escolher os livros que passarão a compor seus acervos. Isso significa, portanto, que não é o governo que decide quais obras vão ser entregues às escolas.
No caso específico da denúncia de Santa Cruz do Sul, quem escolheu o livro “O Avesso da Pele” para compor o acervo da escola foi a própria diretora, que também é autora da denúncia usada pelas peças de desinformação. A Companhia das Letras, editora do livro, publicou documento que prova que a aquisição foi assinada pela profissional no dia 17 de novembro de 2023.
“O que se destaca em “O Avesso da Pele” não é uma cena, tampouco a linguagem, mas sim a contundente denúncia do racismo que se imiscui em todas as nossas relações, até as mais íntimas”, afirmou a editora em suas redes.
Com o livro, os professores recebem material didático e audiovisual que auxiliam nas atividades em sala de aula. No caso de “O Avesso da Pele”, são propostas atividades de língua portuguesa e ciências humanas e sociais aplicadas: “a obra estimula relações transdisciplinares com a Sociologia e a Antropologia, por exemplo, uma vez que, além dos conflitos nas relações de trabalho e familiares que são retratados junto com os processos de amadurecimento dos personagens, ganham destaques cenários cotidianos de preconceito e desigualdade social e racial, isso é, enxergamos nessa narrativa uma cidadania desrespeitada, estimulando assim a ampliação da consciência social nos jovens leitores”.
“O Avesso da Pele” venceu o prêmio Jabuti de melhor romance em 2021 e entrou na lista de livros referência para o vestibular do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) em 2024.
Polêmica. Na última sexta-feira (1º), Janaína Venzon, diretora da Escola Ernesto Alves, de Santa Cruz do Sul (RS), publicou um vídeo no qual lê um trecho do livro “O Avesso da Pele” que, em sua avaliação, tem “vocabulário bastante vulgar” e “inadmissível” dentro de uma escola. A gravação viralizou ainda mais depois que um vereador da cidade passou a criticar o governo Lula pela distribuição do livro.
Após o vídeo viralizar nas redes, a 6ª CRE (Coordenadoria Estadual de Educação) orientou que os diretores das escolas estaduais não distribuíssem a obra para seus alunos. A decisão, no entanto, foi suspensa pela Sedac (Secretaria Estadual da Educação) do governo gaúcho: “O uso de qualquer livro do PNLD deve ocorrer dentro de um contexto pedagógico, sob orientação e supervisão da equipe pedagógica e dos professores. A 6ª Coordenadoria Regional de Educação vai seguir a orientação da secretaria e providenciar que as escolas da região usem adequadamente os livros literários”.
A tentativa de censura do livro foi alvo de críticas de escritores e professores. O grupo Liberdade e Literatura, por exemplo, disse que “‘O Avesso da Pele’ é um grande livro, aborda temas relevantes, critica o racismo e tem o poder de proporcionar ao jovem leitor reflexão e crescimento a partir de sua leitura”.