Não há evidências de que o uso de ivermectina, azitromicina e AAS infantil antes mesmo da confirmação do diagnóstico de Covid-19 possa curar ou atenuar a infecção, como sustenta uma médica em vídeo nas redes sociais (veja aqui). Na gravação, ela relata sua experiência com os medicamentos após contrair a doença e recomenda a prescrição precoce deles para “salvar vidas”, na contramão do que orientam autoridades sanitárias e especialistas. Até o momento, nenhum remédio se provou eficaz contra o novo coronavírus.
O vídeo tem sido veiculado em perfis pessoais no Facebook que, juntos, reuniam ao menos 123 mil compartilhamentos e 2 milhões de visualizações na tarde desta terça-feira (14). Por trazer orientações de saúde sem respaldo científico, o conteúdo foi marcado com o selo FALSO na ferramenta de verificação da rede social (saiba como funciona).
Não tem nada melhor do que tratamento precoce [com ivermectina, azitromicina e AAS infantil], não deixar aumentar a doença. Até que se faça o exame, que o exame venha, que dê positivo, o vírus já tomou conta do nosso organismo. Vamos prevenir, prevenir.
Em vídeo que circula nas redes sociais, a médica Neide Maria de Souza Freitas, de São Lourenço do Sul (RS), narra como teria sido a sua infecção pelo novo coronavírus e diz ter sido curada por que iniciou o uso de ivermectina, azitromicina e ASS logo nos primeiros sintomas. Porém, não há provas ou mesmo indícios disponíveis hoje de que a medicação com essas drogas antes ou após o diagnóstico tenha alguma eficácia contra a Covid-19.
Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde) e o Ministério da Saúde, não existe remédio disponível atualmente que seja comprovadamente capaz de deter a infecção. As autoridades sanitárias orientam somente o uso de medicamentos para o alívio dos sintomas da Covid-19, como antitérmicos para atenuar a febre alta. Além disso, a automedicação com as substâncias citadas no vídeo pode oferecer riscos à saúde.
Antiparasita. As pesquisas que, até agora, apontaram alguma eficácia da ivermectina contra o novo coronavírus foram feitas em laboratório, como o estudo publicado na Austrália em abril que identificou que a substância provocou a redução de 99,8% na carga viral de células infectadas. Apesar do resultado, os pesquisadores indicaram que não há evidências de que as doses disponíveis do medicamento no mercado poderiam reproduzir em humanos o mesmo efeito ocorrido in vitro. Para isso, concluem, são necessários testes clínicos.
Indícios disponíveis hoje, como os divulgados por um estudo preliminar, apontam que a dose necessária de ivermectina para se atingir concentração suficiente para ação antiviral teria de ser 17 vezes maior do que a máxima permitida em seres humanos. Essa dosagem limite, por sua vez, é dez vezes superior à recomendada na bula do medicamento vendido em farmácias. Tais resultados também foram obtidos por análises de laboratório.
Como consta em informe da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia), muitos dos medicamentos antiparasitários que demonstraram ação antiviral em laboratório não apresentam o mesmo efeito em humanos. Dessa maneira, somente estudos clínicos poderiam atestar a segurança e a eficácia do medicamento contra a Covid-19.
A SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) também destacou recentemente em carta aberta que a ivermectina já foi proposta como o possível tratamento de outras infecções como HIV, dengue, influenza e zika vírus, mas em nenhum dos casos apresentou resultados antivirais eficazes e foi descartado em todas as ocasiões.
Outra autoridade de saúde que aponta cautela na indicação do ivermectina é a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que afirma que o medicamento só possui eficácia comprovada no tratamento da estrongiloidíase intestinal, elefantíase, sarna e contra infestação de piolhos e lombrigas.
Antibiótico. Já a azitromicina age contra bactérias, não vírus, pois é um antibiótico. Médicos têm usado a substância em pacientes graves de Covid-19 que também apresentam infecções bacterianas por estarem com o sistema imunológico debilitado. Uma suposta ação viral do medicamento é recorrentemente citada em peças de desinformação.
O uso da azitromicina combinado ao de difosfato de cloroquina ou sulfato de hidroxicloroquina é recomendado atualmente pelo Ministério da Saúde para tratar pacientes com Covid-19, mas apenas sob recomendação médica. Mesmo assim, a pasta afirma em seu boletim de evidências científicas que ainda não há como confirmar se a droga, sozinha ou combinada, seja eficaz para tratar a infecção pelo novo coronavírus.
Além disso, o consumo de antibióticos sem prescrição é nocivo à saúde e pode fazer com que as bactérias criem resistência à substância, como explicou, em checagem anterior, a infectologista e professora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) Raquel Silveira Bello Stucchi.
AAS infantil. Por fim, não existem estudos publicados que apontem que o ácido acetilsalicílico, substância presente no AAS infantil indicado no vídeo, seja eficaz no tratamento da Covid-19. Segundo especialistas ouvidos por Aos Fatos, a associação feita pela médica no vídeo pode ter surgido de um entendimento distorcido sobre a ação de anticoagulantes em pacientes graves da doença.
De acordo com Gildo Girotto, do Instituto de Química da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), a alegação enganosa pode ser derivada do fato de que quadros de Covid-19 desenvolvem coágulos sanguíneos semelhantes aos da trombose, doença que pode ser tratada com AAS. Ele afirma, porém, que isso não quer dizer que a droga seja eficaz, pois “as causas e mecanismos de formação de coágulo na trombose e na Covid-19 não são necessariamente as mesmas”.
A pneumologista do Hospital Sírio Libanês (SP) Elnara Márcia Negri concorda e afirma ainda que não há estudos que comprovem que o AAS possa agir no tratamento da Covid-19 ou que atenue a infecção se ingerido pelo paciente nos primeiros sintomas.
Consequência. Pesquisadores afirmam que relatos que atribuem a cura da Covid-19 ao uso precoce - ou “profilático” - desses medicamentos sugerem uma causalidade que muitas vezes não se comprovam em estudos científicos.
“Sintomas de gripes, resfriados, alergias, e da própria Covid-19 tendem a desaparecer por conta própria na maioria das vezes. Atribuir o alívio à hidroxicloroquina tem tanta lógica quanto atribuí-lo ao café da manhã ou à música que tocou no rádio meia hora antes do último espirro”, escreveram a bióloga Natália Pasternak e o jornalista Carlos Orsi em artigo publicado pelo Instituto Questão de Ciência.
Na carta aberta que divulgou, a SBPC também destaca a importância de estudos clínicos sólidos que atestem a eficácia das drogas antes que sejam feitas indicações de uso contra a Covid-19. “Convém ressaltar que devido à alta taxa de recuperação espontânea da Covid-19 (cerca de 80% – 85%), as eficácias terapêuticas desses produtos indicados só podem ser estabelecidas por meio de pesquisas clínicas com grupos de comparação”, afirma a entidade em um trecho do documento, que ressalta ainda que a promoção desses medicamentos provoca “aplicação de recursos de forma equivocada, geram falsas expectativas e falsa sensação de segurança na população.”
E [se estiver com Covid-19] não toma remédio pra febre! Não toma remédio pra febre! Aguenta!
No vídeo, a médica faz ainda outra recomendação que vai em direção oposta ao que orientam autoridades de saúde e especialistas: não usar antitérmicos caso esteja com febre, um sintoma comum entre os acometidos pela Covid-19.
A OMS (Organização Mundial da Saúde), em seu Manuseio Clínico da Covid-19, recomenda o uso de antitérmicos para tratar o sintoma em casos moderados da infecção pelo novo coronavírus. Além disso, a entidade afirma que os pacientes devem manter alimentação e hidratação adequadas.
O químico Gildo Girotto afirma que, embora o remédio não deva ser ingerido em qualquer situação febril, não é possível sustentar que o antitérmico impediria que o corpo combata a doença por atenuar a febre.
“Para ‘dar conta do vírus’, o corpo precisa estar em condições adequadas, o que envolve a temperatura controlada. Mas como isso varia muito de acordo com a doença e com o próprio organismo, fica difícil estabelecer um padrão. O que posso dizer é que antitérmicos só são recomendados [em quadros de Covid-19] quando a febre for acima de 38 graus e persistente”, disse, ao analisar a declaração enviada por Aos Fatos.
A partir desta temperatura, afirma o pesquisador da Unicamp, a febre pode causar irritabilidade, delírios e até crises convulsivas, o que justificaria o uso de antitérmicos.
Outra instituição que indica antitérmicos para o tratamento da febre causada pela Covid-19 é a Harvard Medical School. Em seu site, a faculdade sugere que os pacientes com febre e dores no corpo tomem paracetamol.
A médica também cai em contradição ao desaconselhar remédios para febre logo após ter recomendado a ingestão de AAS infantil para tratar a doença. A droga, além de antiinflamatória e analgésica, tem propriedades antitérmicas, segundo consta na bula.
Autora. A mulher que faz o relato no vídeo é Neide Maria de Souza Freitas, médica de São Lourenço do Sul (RS) com cadastro regular no CFM (Conselho Federal de Medicina) e que foi vereadora da cidade entre 2008 e 2016 pelo PT, onde permanece filiada, segundo o TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Hoje, ela é suplente na Câmara Municipal. Aos Fatos não conseguiu localizá-la por meio dos telefones informados no registro do CFM. Ela também não respondeu a mensagens enviadas pelo Facebook.
Vídeos gravados por médicos que propagam informações sobre medicamentos contra a Covid-19 que não têm respaldo científico têm aparecido com frequência nas redes sociais com a evolução da pandemia no Brasil. Aos Fatos já checou recomendações enganosas de tratamentos com remédios ou até por meio de suplementos vitamínicos.
Referências:
1. OMS
2. Science Direct
3. MedXriv
4. Revista Questão de Ciência (Fontes 1 e 2)
5. SBI
6. SBPC
7. Aos Fatos (Fontes 1, 2, 3 e 4)
8. Ministério da Saúde (Fontes 1 e 2)
9. Dráuzio Varella.UOL
10. Harvard
11. Consulta Remédios
12. CFM
13. TSE
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