Usaid é alvo de teorias conspiratórias de financiar camisinha ao Hamas até pagar viagem de Ben Stiller

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Enquanto muita gente estava preocupada com o anúncio de Donald Trump sobre o fechamento da Usaid, agência estatal responsável por 42% de toda a ajuda humanitária do planeta, um grupo de pessoas estava em festa: parlamentares e usuários ligados à extrema direita.

O motivo da celebração é que, ao ser criticada por possuir um suposto viés político — ou, nas palavras de Elon Musk, ser “gerida por lunáticos radicais” —, a Usaid se tornou um alvo fácil.

O fato de Trump e seus apoiadores fazerem acusações mentirosas ou sem provas sobre pagamentos a ONGs e sites jornalísticos tachados como “esquerdistas” também ajudou a transformar a agência em uma grande vilã a ser desmascarada.

Como se trata de um instrumento de soft power (termo relacionado à influência internacional exercida por governos sem a ajuda de força militar) e de uma grande organização, com funcionários em todos os cantos do mundo, qualquer acusação soa verossímil.

Com isso, a Usaid acabou se tornando um grande amálgama de teorias da conspiração, que envolvem fraude em eleições em diversos países, financiamento de terroristas e viagens de celebridades. Os braços da agência poderiam estar em todos os lugares ao mesmo tempo — e, logo, ela poderia ser responsabilizada por tudo que há de mal.

O que me lembra um certo PowerPoint…

Visualização faz referência ao PowerPoint de Deltan Dallagnol. Vários círculos cinzas com dizeres como ‘TSE’, ‘Joe Biden’ e ‘Camisinha para terroristas’ apontam para um círculo azul escrito ‘Usaid’.

No Brasil, as acusações viraram munição para bolsonaristas não só ressuscitarem a mentira de que houve fraude nas eleições de 2022 como também tentarem abrir uma CPI na Câmara dos Deputados para investigar a influência da Usaid no país. Na semana passada, Aos Fatos publicou uma reportagem mostrando as fragilidades dos argumentos.

Fora as acusações mais graves — que, repito, já foram desmentidas pela reportagem —, circulam também teses malucas para acusar a Usaid de influenciar o cenário político. Vamos falar sobre três delas:

1. Usaid gastou mais de US$ 40 milhões em camisinhas para o Hamas

Comentário no X afirma que Biden financiou 100 milhões de dólares em camisinhas.
Usuários questionam desde gastos gerais com camisinha até financiamentos direcionados ao Hamas (Reprodução/X)

Citada pela própria Casa Branca e por Elon Musk, uma das teses mais malucas sobre a Usaid dizia que ela teria financiado a entrega de camisinhas para habitantes da Faixa de Gaza durante a gestão de Biden. A história foi se modificando a cada compartilhamento até se transformar na alegação de que a agência teria doado milhões de dólares em preservativos para terroristas do Hamas.

Além do fato de os palestinos em Gaza não serem, necessariamente, relacionados ao Hamas, a história não se sustenta por diversos motivos:

  • No relatório oficial de atividades da Usaid de 2024 (com dados de 2023), há a informação de que não houve gastos com camisinhas no Oriente Médio entre 2021 e 2023;
  • Segundo o mesmo documento, em 2023, no mundo todo, a Usaid gastou US$ 8,2 milhões com preservativos;
  • Especialistas em ajuda humanitária ouvidos pela CNN também afirmaram que a alegação não faz o menor sentido;
  • A IMC (International Medical Corps), organização que teria recebido o dinheiro para fazer a entrega de camisinhas, também desmentiu a alegação. O dinheiro (US$ 68 milhões) da Usaid, entregue desde outubro de 2023, serviu para financiar a operação de hospitais em Gaza.

Duas semanas depois da viralização da alegação, durante uma entrevista diretamente da Sala Oval, Musk foi desmentido ao vivo por uma repórter. Ele, então, respondeu:

“Algumas das coisas que eu digo estarão incorretas e devem ser corrigidas. Ninguém é perfeito. Quero dizer, você sabe, cometeremos erros, mas agiremos rapidamente para corrigir quaisquer erros.” — Elon Musk, ao ser questionado, ao vivo, por uma informação incorreta publicada por ele duas semanas antes.

2. Usaid financiou uma viagem do ator Ben Stiller à Ucrânia

Post mostra vídeo de Ben Stiller na Ucrânia com legenda ‘a Usaid supostamente pagou ao ator liberal Ben Stiller recebeu US$ 4 milhões da Usaid por este encontro com Zelensky. A Usaid era uma máquina de financiar esquerdistas e comunistas a torto e a direito. Trump fez bem em fechar esse lixo’
Conspiração sugere que Usaid bancaria uma ‘agenda comunista’ em todo o mundo (Reprodução/X)

Teorias da conspiração adoram colocar artistas no meio dos esquemas malignos, e a tese da Usaid não foi uma exceção: viralizou nas redes a história de que a agência teria gasto milhões de dólares para pagar a viagem do ator americano Ben Stiller à Ucrânia. A história foi citada, inclusive, por Musk no X.

Stiller de fato visitou o país em 2022 junto com a UNHCR (Agência de Refugiados da ONU), da qual é embaixador. Após a repercussão, o ator negou qualquer financiamento da Usaid e disse que os gastos com a viagem saíram de seu próprio bolso. A UNHCR também se pronunciou, confirmando a versão de Stiller.

Nos Estados Unidos, posts não acusam apenas o ator de ter abocanhado uma parte dos fundos da agência. Também são citadas celebridades como Sean Penn, Jean-Claude Van Damme e Angelina Jolie. Tudo, obviamente, sem prova alguma.

A história tem ainda um outro indício de falsificação: o vídeo viral com a alegação enganosa também é manipulado. O boato foi disseminado por uma gravação que continha uma marca d’água do portal E! News. O site, no entanto, negou que o registro seja de autoria de sua equipe.


3. Usaid está envolvida na falsificação da entrada de Filipe Martins nos EUA

Frame mostra comentarista de programa cuja manchete é ‘Interferência da Usaid no Brasil ajudou a tirar Bolsonaro’. Legenda diz ‘Bomba! Caso do Filipe Martins’
Tese que cita caso de Filipe Martins circula junto de alegação sem provas de que Usaid interferiu nas eleições brasileiras (Reprodução/Instagram)

Em território nacional, a teoria conspiratória da Usaid tem se unido à grande trama bolsonarista de que o Brasil vive uma ditadura da esquerda. Uma das alegações sem nenhum lastro na realidade foi disseminada durante um programa ao vivo no YouTube.

A autora da tese disse ter recebido uma mensagem (que não é mostrada) de um senador (que não tem o nome mencionado) informando que haveria uma investigação para verificar se “houve algum tentáculo da Usaid para entrada nos computadores da imigração dos Estados Unidos que falsificou a entrada de Filipe Martins no país”.

Para resumir a história, ela se refere ao caso do ex-assessor de Jair Bolsonaro, investigado pela PF pelo suposto plano de golpe de Estado em 2022. O ministro Alexandre de Moraes acatou o pedido da PF e decretou a prisão de Martins em fevereiro de 2024 por tentativa de fuga. Segundo os investigadores, ele teria saído do país em dezembro de 2022 e permanecido no exterior por meses.

Martins ficou preso por seis meses até a PGR (Procuradoria-Geral da República) pedir sua soltura, com base no argumento de que não foi possível comprovar que a viagem de fato ocorreu.

Segundo a tese atual, essa confusão toda seria de responsabilidade da Usaid. Além de não ser ancorada em nenhum tipo de prova, a teoria ignora o contexto da investigação, que aponta, na verdade, para uma confusão da PF com base em um erro de uma base de dados americana:

  • Segundo a Polícia Federal, uma das provas de que a viagem teria ocorrido seria um registro de entrada de Martins em Orlando, na Flórida, em 30 de dezembro de 2022, disponível na base do DHS (Departamento de Segurança Interna);
  • O registro foi encontrado no site oficial do governo americano View Travel History com base nos dados pessoais de Martins e seu passaporte;
  • A própria PF, no entanto, disse não ter encontrado registros de saída do ex-assessor no controle migratório brasileiro;
  • Meses depois, em abril de 2024, a alfândega da Flórida também negou que Martins tenha desembarcado em Orlando em dezembro de 2022;
  • Em junho de 2024, o DHS retificou a informação sobre a viagem e passou a alegar que a última entrada do ex-assessor no país teria ocorrido em setembro de 2022;
  • Uma busca nas redes de Martins também mostra que ele esteve no Paraná em janeiro de 2023 — e que, portanto, não poderia ter passado meses no exterior;
  • Além do registro de entrada, a PF disse ter identificado o nome do ex-assessor em uma lista da comitiva presidencial em direção a Orlando. O arquivo, no entanto, era editável e não oficial;
  • Martins foi solto por Moraes seis meses depois da prisão, em agosto de 2024, após pedido da PGR, que considerou que as provas da PF para sustentar a prisão eram frágeis.

A tese também ignora que a advogada de defesa de Filipe Martins, Ana Bárbara Schaffer, disse em entrevista que os dados do View Travel History usados pela PF “não tinham valor legal” e continham um erro: o nome era Felipe Martins, com “E” em vez de “I”.

Com isso, a alegação da teoria conspiratória perde força: a Usaid teria entrado no sistema governamental para alterar um dado sem valor legal, que não seria suficiente para incriminar Martins e poderia ser contestado por informações de outros órgãos americanos e brasileiros.

Aos Fatos também não encontrou nenhum registro na imprensa americana sobre qualquer denúncia de que a Usaid teria invadido e alterado dados do DHS. A reportagem entrou em contato com o departamento para perguntar se há alguma investigação sobre o assunto ou indício de que seus dados foram adulterados, mas não recebeu retorno até a publicação desta newsletter.


O problema é que, no meio dessa caça às bruxas conspiratória, muita gente vai sair perdendo. Um documento do inspetor geral da Usaid publicado na segunda-feira passada (10) disse que as intervenções anunciadas pela gestão Trump podem colocar em risco uma série de compromissos já firmados pela agência.

Isso significa que centenas de milhares de toneladas de comida poderão perder a validade porque não serão entregues, que locais mais perigosos — como Ucrânia e Gaza — ficarão sem assistência e que doações ficarão suscetíveis a fraude ou desvio por conta da falta de pessoal.

Referências

  1. documento

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