Quando você terminar de ler este parágrafo, um brasileiro terá levado um golpe. É isso mesmo: em 2023, o país registrou quase 2 milhões de casos de estelionato — aquele crime em que alguém usa uma artimanha para obter uma vantagem ilícita, dando prejuízo a outras pessoas. Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgados na semana passada, contabilizam exatos 1.965.353 de golpes de variados tipos. São 5.385 estelionatos por dia, 224 por hora, quase quatro por minuto. Um a cada 16 segundos. Parágrafo concluído – alguém acabou de ser enganado.
Os números confirmam a mudança na dinâmica dos crimes contra o patrimônio no Brasil – uma tendência já sinalizada na edição anterior do Anuário, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com base em estatísticas fornecidas pelos governos estaduais.
Entre 2022 e 2023, os roubos a bancos e a estabelecimentos comerciais caíram, enquanto os estelionatos ganharam terreno. De forma geral, a prática cresceu 8,2%. Considerando apenas o meio eletrônico, o aumento foi ainda mais expressivo: crimes desse tipo cresceram 13,6% em um ano.
Duas observações sobre os dados:
- O crescimento acentuado dos estelionatos virtuais pode estar sendo influenciado pela tipificação do crime de fraude eletrônica. Em 2021, foi incluído no artigo 171 do Código Penal um parágrafo específico sobre estelionatos cometidos por meio de redes sociais, contatos telefônicos e afins;
- É possível que esse aumento significativo dos golpes digitais ainda esteja abaixo da realidade, já que, apesar da tipificação da fraude eletrônica, muitas Unidades da Federação, como São Paulo e Rio de Janeiro, não contabilizam esse tipo de ilícito de forma separada do total de estelionatos. Em estados que já fazem essa separação, o aumento é ainda mais expressivo: a prática do crime por meio eletrônico aumentou 153,7% na Paraíba, 143,3% em Roraima, 111,6% no Piauí e 109,3% no Amazonas.
O aumento de crimes virtuais é uma tendência mundial. Está associada ao que os especialistas chamam de plataformização da vida, com a incorporação quase absoluta dos smartphones pela população e a migração de várias de nossas atividades cotidianas para a esfera digital.
No caso brasileiro, de acordo com a análise do Anuário, essas mudanças socioculturais foram rapidamente entendidas pelos grupos criminosos, que alteram e adaptam suas dinâmicas a uma realidade cada vez mais mediada pela digitalização.
“Há investigações que indicam que o PCC (Primeiro Comando da Capital) e o CV (Comando Vermelho) também criaram centrais para a práticas de golpes virtuais e por telefone, muitos deles com a utilização de meios de pagamento como o PIX e de contas ‘laranjas’”, diz o texto da publicação.
Com isso, há menos crimes na rua e mais delitos envolvendo as atividades digitais. Menos roubos a banco e mais ações virtuais.
No mundo dos celulares e das plataformas, o coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Público, David Marques, diz que não há um mapeamento exato dos tipos mais frequentes de golpes digitais. Mas os relatos policiais indicam crimes que se repetem: clonagem do WhatsApp, emails em que fraudadores se passam por sites de compras conhecidos , anúncios duplicados ou intermediados de vendas, sites de comércio eletrônico fraudulentos, golpes dos falsos leilões e, claro, o golpe do amor.
Aos Fatos tem feito da cobertura de golpes virtuais uma de suas linhas de atuação. Com a nova identidade visual, lançada em 7 de julho, criamos também um canal próprio, intitulado fraudes digitais, voltado exclusivamente para a publicação de conteúdos sobre estelionatos virtuais.
É uma linha de investigação à qual nossos repórteres têm dedicado tempo, atenção e método — e para a qual, infelizmente, nunca falta assunto. Dos ingressos falsos para o show de Caetano e Bethânia à enganosa distribuição de cafeteiras, malas de roupas, ovos de Páscoa ou internet grátis, há engodos para todos os gostos – inclusive os que usam inteligência artificial para mentir sobre venda de celulares a R$ 179. Nesse tipo de golpe, o estratagema, com pequenas variações, é oferecer um prêmio ou um desconto inexistentes e cobrar “apenas” pelo envio do produto — e aproveitar para roubar dados pessoais e bancários das vítimas durante o processo.
A cobertura contínua das fraudes digitais revela que não há amadorismo nesse meio. Grupos especializados invadiram sites de prefeituras e órgãos públicos para direcionar os usuários a cassinos virtuais. Outro tipo de fraude comum mimetizando serviços públicos é, a partir de falsos anúncios de iniciativas de programas federais, pedir dados dos usuários para que eles possam receber algum benefício. Tudo mentira.
Aos Fatos tem alertado, por fim, para outro ponto: a omissão das big techs diante desse tipo de crime. Num momento de comoção nacional, as enchentes com centenas de mortos no Rio Grande do Sul, mostramos que a Meta permitiu anúncios que embutiam golpes ao pedir falsas doações para as vítimas.
Mais que omissão, há lucro das big techs com tais anúncios. O Google impulsionou o anúncio falso do ingresso para o show de Caetano. Numa conta modesta, mostramos no começo deste ano que, em três meses, anúncios falsos no Facebook e no Instagram renderam à Meta R$ 3,8 milhões.
Um leitor fiel do Aos Fatos notará que, a cada reportagem, a resposta-padrão das plataformas tem sido a mesma: as big techs são, como todo mundo, contra qualquer tipo de golpe ou abuso. E, quando percebem o ocorrido, tiram o anúncio do ar. É pouco. Mas é assim que as plataformas têm operado há anos, sem preocupação com a integridade da informação que ajudam a fazer circular. E agindo anedoticamente conforme o ditado: apenas depois que o roubo já aconteceu.