Enquanto os últimos votos eram depositados nas eleições dos Estados Unidos, na última terça-feira (5), a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) divulgou a nova edição de sua pesquisa sobre a qualidade de vida dos cidadãos nos países-membros.
Desde 2010, o país que elegeu Donald Trump não teve piora em indicadores de condição material de vida, de acordo com o relatório. As taxas de desemprego e renda familiar, por exemplo, não sofreram alterações significativas.
No entanto, houve queda em quatro dos nove indicadores de qualidade de vida: taxa de homicídios, suicídios e mortes relacionadas a abuso de substâncias, expectativa de vida e percentual de pessoas que relatam mais sentimentos negativos (raiva, tristeza, preocupação) do que positivos (alegria, felicidade, descanso).
O tempo de convivência entre as pessoas também encurtou, diz a OCDE.
“Diante dos desafios sociais, como a transição digital, as mudanças climáticas e o envelhecimento da população, colocar as pessoas de volta ao centro da tomada de decisões é essencial para proteger o bem-estar”, afirmou ao Valor Econômico o secretário-geral da organização, Mathias Cormann.
A linguagem diplomática-acarpetada de Genebra soa fora de lugar diante da realidade bruta. Após uma campanha sombria e cheia de ódio, Trump teve o melhor desempenho eleitoral de um candidato republicano à Presidência nos últimos 20 anos.
O “desafio social” da “transição digital” piora a vida de todos, mas o bem-estar dos bilionários está garantido.
“Uma estrela nasce: Elon”, derreteu-se o presidente eleito no discurso da vitória, na Flórida, já na madrugada desta quarta (6). “Ele salvou muitas vidas”, disse Trump, referindo-se ao envio de satélites da Starlink à Carolina do Norte durante o furacão Helene. “Ele é um personagem. Ele é um cara especial. Ele é um supergênio.”
Musk comprou o algoritmo e matou o negócio, que nunca foi grande coisa. Dissecou o Twitter e usou as partes desmembradas, tal como o cientista de Mary Shelley, para ressuscitá-lo numa versão amorfa chamada X. Uma ferramenta pessoal de influência global.
Em maio de 2022, semanas após arrematar a rede social por US$ 44 bilhões, Musk foi informado que uma reportagem seria publicada mostrando que a Tesla pagou US$ 250 mil em indenização a uma comissária de bordo que o acusou de assédio sexual.
Dentro de seu jatinho prestes a decolar ao Brasil, onde teria reunião com o então presidente Jair Bolsonaro (PL), ele tuitou: “No passado, votei nos democratas, porque eram (na maioria) o partido da gentileza. Mas se tornaram o partido da divisão & do ódio, de modo que não posso mais apoiá-los, e vou votar nos republicanos. Agora, prestem atenção nos truques sujos deles contra mim que vão aparecer”.
“Os ataques contra mim deveriam ser vistos por uma ótica política — este é o modo de agir (desprezível) padrão deles —, mas nada vai me impedir de lutar por um bom futuro e pelo direito à liberdade de expressão”, continuou Musk.
Segundo o biógrafo Walter Isaacson, “quando a matéria foi publicada, as ações da empresa caíram 10%, e os ressentimentos políticos ficaram ainda mais inflamados”. “Ele acreditava que a história havia sido vazada por um amigo da mulher, que era, nas palavras dele, ‘um ativista, democrata de extrema-esquerda’.”
O espaço publicitário no X custa hoje uma pequena fração do que já valeu no Twitter. Mas há pilhas de dinheiro maiores para buscar.
Nesta semana, a montadora BYD anunciou receita trimestral maior que a da Tesla pela primeira vez. Apesar da competição chinesa, o acesso irrestrito que Musk terá na Casa Branca pode garantir a manutenção de subsídios e incentivos fiscais e o afrouxamento regulatório, como mostrou o New York Times. Nesta quarta (6), as ações da Tesla tiveram alta de 14%.
Há outros exemplos de fundadores e executivos de empresas de tecnologia que acenaram a Trump, e a convergência entre ele e as big techs foi uma marca da disputa eleitoral.
Jeffrey Bezos, fundador da Amazon e outro bilionário que recebe dinheiro público do governo dos Estados Unidos, também foi ao X parabenizar o presidente eleito. Durante a campanha, Trump se reuniu com executivos da Blue Origin, empresa de exploração espacial de Bezos, como revelou a Associated Press.
Dono do Washington Post, Bezos suspendeu a publicação de um editorial em apoio à vice-presidente Kamala Harris, o que levou ao cancelamento de mais de 250 mil assinaturas, segundo o próprio jornal. Há pilhas de dinheiro maiores para buscar.
O que por lá chamam de “onda vermelha” — cor do Partido Republicano — pode desaguar no Brasil em pressão política pela impunidade para golpistas do 8 de Janeiro e, no limite, pela volta de Jair Bolsonaro (PL) às urnas em 2026, invalidando as condenações aplicadas a ele pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Arthur Lira (PP-AL) prometeu em entrevista à Folha de S.Paulo que irá votar o projeto para livrar os criminosos antes do fim de seu mandato como presidente da Câmara dos Deputados, em janeiro. Valdemar da Costa Neto, presidente do PL, defendeu à CNN Brasil que “esse embate com o Bolsonaro não pode ser resolvido dessa forma como foi no TSE”.
“Anistia a Bolsonaro para torná-lo elegível é juridicamente possível?”, questiona título de reportagem no JOTA. Há controvérsia, mas há quem diga que sim.
Isso tudo no mesmo Congresso Nacional que fez que votaria a regulação das redes sociais e a regulação do uso de inteligência artificial — mas não votou e pode ter perdido a janela de oportunidade, se é que um dia esteve aberta. O vento sopra agora para outros cantos.
E se nos países da OCDE a vida piorou, imagina por aqui. Em um post que viralizou em julho, uma usuária desabafou: “Um dos meus dilemas da vida adulta tem sido a pergunta ‘será que isto é uma crise depressiva motivada por um desequilíbrio químico pontual de meu célebro [sic] OU eu só preciso de condições socioeconômicas mínimas para viver com dignidade e voltar a sorrir?’”
Difícil discernir.
“O contato direto entre seres humanos não se confunde nem pode ser comparado com a simples troca ou transmissão de palavras, imagens ou informações”, escreve em seu livro mais recente o crítico e ensaísta Jonathan Crary, professor de teoria e arte moderna da Universidade Columbia.
“Encontros não acontecem em espaços vazios e tampouco estão limitados pelas bordas de uma tela. São uma imersão, a habitação de uma atmosfera, algo que, conscientemente ou não, afeta todos os sentidos. Esse tipo de encontro, essa proximidade, é literalmente uma con-spiração, um respirar juntos.”
“Eu sou só um velho professor que quis provocar as pessoas”, ele explicou em entrevista ao Globo. “Em nenhum momento no meu livro eu sugiro que as pessoas parem de usar a internet. A questão é entender que são necessárias mudanças estruturais, não só reformas. Não basta ajustar como usamos as redes.”
“A própria qualidade da vida humana está sendo degradada neste mundo que nunca desliga. A consequência disso é terra arrasada, é um mundo erodido, significativamente danificado. Os prejuízos não são só ambientais, mas também sociais. Somos encorajados a interagir com telas durante todas as horas que passamos acordados, o que elimina nossa possibilidade de sonhar acordado, de nos deslumbrar, de sentir a textura da experiência. Imaginação se tornou fluxo contínuo e monetizado de imagens e informação e temos até medo de desligá-lo.”
“Se é assim, como vamos nos engajar nas tarefas essenciais para evitar a catástrofe?”
Ao menos, o bem-estar dos bilionários está garantido.