A tentativa de assassinato do ex-presidente americano Donald Trump foi um dos principais assuntos da semana no mundo todo. Como todo acontecimento de repercussão internacional, ele veio acompanhado de uma onda desinformativa que acabou chegando às redes brasileiras: na última semana, Aos Fatos desmentiu 11 conteúdos enganosos sobre o caso, desde os que criavam falsas identidades para o autor do crime até os que alegavam que o ataque teria sido forjado pelo próprio candidato.
Esses posts enganosos, no entanto, são apenas a ponta do iceberg da desinformação. Enquanto essas publicações com maior impacto circulavam na superfície, na esgotosfera das redes uma teoria da conspiração americana ganhou tração em grupos no Telegram e nos confins do X (ex-Twitter): a de que o atentado teria sido uma tentativa fracassada de uma “ordem mundial” para matar Trump.
Essa tese completamente infundada nasce da narrativa QAnon, uma espécie de seita que vende a ideia de que autoridades do mundo todo fazem parte de um conluio maligno que une, entre outras coisas, satanismo e pedofilia. Segundo essa teoria, Trump seria o principal “combatente” dessa organização e, por isso, seria malvisto por jornalistas, políticos e personalidades.
Como toda desinformação QAnon, a teoria é extremamente mirabolante, cheia de informações não confirmadas e alegações antissemitas ou xenófobas. Alguns pontos da tese, no entanto, podem ser desmentidos.
E é o que vamos fazer agora:
1. ‘Crooks estava morto antes da tentativa de assassinato’
Essa alegação não faz o menor sentido. Pessoas que estavam no comício relataram ter visto o atirador subir no telhado e há imagens que o mostram com a cabeça levantada. Além disso, o pai de Crooks disse que viu o filho sair de casa no sábado em que ocorreu o ataque.
A informação oficial é a de que o atirador foi morto pelos agentes de segurança segundos depois de abrir fogo contra Trump.
2. “Indícios apontam que o crime tem relação com os judeus”
Um dos principais membros da organização maligna imaginada pelos QAnon são os judeus: George Soros e as famílias Rockefeller e Rothschild são comumente citados nas teses malucas e antissemitas como planejadores de ações malignas.
No caso do atentado de Trump, os QAnon apontam, sem provas, que tanto Crooks quanto um dos snipers que supostamente teria demorado para reagir ao ataque seriam judeus.
A foto acima, por exemplo, tem circulado nas redes como se fosse prova de que o atirador seria judeu. O jovem na foto, no entanto, não é Crooks. Por meio de busca reversa, Aos Fatos identificou que a imagem foi registrada em uma sinagoga em Butler em fevereiro deste ano. Em outras fotos do mesmo momento, é possível perceber que o homem não se parece nem um pouco com o atirador.
Em relação ao policial, a prova seria um bracelete vermelho que ele estaria usando no momento da operação. Segundo as peças, o acessório seria uma pulseira da Cabala, vertente do pensamento esotérico judeu que é citada pela teoria QAnon como o nome de uma organização secreta maligna.
A foto em alta resolução, publicada pela RFI, no entanto, mostra que a pulseira que estava sendo utilizada pelo policial tinha partes pretas que não aparecem na peça identificada como judaica.
Até o momento, as investigações não encontraram uma motivação clara — seja política ou ideológica — para o atentado.
3. “O porta-voz do QAnon previu o assassinato de Trump em junho”
Não previu, não. A mensagem que tem circulado como se fosse de autoria do “porta-voz do Q” foi publicada no grupo de Telegram Truth Pups em junho deste ano e compartilhada no canal The Storm Rider, considerado um dos espaços oficiais do culto cibernético.
Além do Aos Fatos não ter encontrado nenhum indício que prove que a mensagem tenha sido criada por um representante QAnon, o próprio texto desmente a teoria conspiratória, já que diz que o atentado que ocorreria não seria real:
“Tentativa de assassinato de Trump vindo! (...) Os chapéus brancos vão encenar o evento (os chapéus pretos tentaram várias vezes nos últimos anos e falharam) e você saberá que foi uma operação de chapéu branco porque Trump sobreviverá ao evento e levará ao desmantelamento do deep state”.
De forma resumida, “chapéus brancos” é o apelido dado a pessoas do governo que apoiam Trump, enquanto “chapéus pretos” seriam o grupo de autoridades que não endossam o ex-presidente.
Logo, os conspiracionistas terão que decidir: ou a mensagem traz de fato uma previsão e Trump não correu risco de vida, ou realmente tentaram matar o ex-presidente e o texto acima não passa de um chute. As duas coisas ao mesmo tempo são impossíveis.
Fatos que não provam nada
Além das mentiras, os usuários também compartilharam informações verídicas para fazer conclusões descabidas sobre o caso:
- A aparição de Crooks em um comercial da BlackRock, empresa de investimentos, foi tomada como prova de que ele teria alguma relação com a “elite global”;
- A presença de mulheres na segurança do evento tem sido apontada como um dos facilitadores do atentado. Afinal, a diversidade de gênero teria diminuído a qualidade da segurança, de acordo com os conspiracionistas. Essa crítica levou, inclusive, o Serviço Secreto a se pronunciar sobre o assunto;
- E a sequência de erros (veja aqui e aqui) por parte dos agentes também foi questionada. Segundo os conspiracionistas, apenas um plano envolvendo o FBI, o Serviço Secreto e outros membros do governo poderia explicar o atentado.
As teorias do grupo QAnon nascem para tentar preencher supostas lacunas de acontecimentos que, na verdade, não parecem tão complexos assim. Trata-se de uma tentativa de relacionar qualquer evento político a uma grande narrativa que colocaria Trump como o salvador do mundo.
Mas a realidade, até o momento, é bem menos cinematográfica do que a conspiração: os agentes responsáveis pela investigação acreditam que Crooks agiu sozinho e sem motivação clara. Um relatório divulgado no final de semana atesta que o ex-presidente foi atingido na orelha e teve um ferimento de dois centímetros de diâmetro.